Resenha: As filhas moravam com ele, André Giusti [contos]

1 07 2024

Homem lendo à luz de lampião

Adrien Hebert (França-Canadá, 1890-1966)

óleo sobre tela

 

 

Terminei hoje a leitura de As filhas moravam com ele, uma coleção de contos do escritor e jornalista André Giusti, [Nova Lima, MG, Editora Caos e Letras: 2023]. Há muito tempo não me dedicava a um grupo de contos com tanto prazer. Para mim, contos, crônicas e poesia são coletâneas que leio aos poucos, um texto por dia, porque por serem pequenos, em geral, entregam muito, já que não podem se perder na narrativa.  Todos os três gêneros têm a habilidade de causar impacto rápido e certeiro. E isso acontece com as histórias deste autor carioca, radicado em Brasília.

Giusti traz contos enraizadas no desvario que nos rodeia e que sem querer assimilamos ao viver numa grande cidade, hoje.  Ele retrata a insensatez que nos instiga, corrompe, empurra e muitas vezes atraiçoa na vida cotidiana.  Constante nessas vinte histórias é a incredulidade da pessoa de bem que quer simplesmente tocar a vida com calma, segurança e bom-senso.  Invariavelmente nos vemos nos personagens das histórias.  Se não nos vemos, conhecemos alguém que entra direitinho naquele perfil. No entanto, frequentemente as situações em que elas se encontram, mesmo que corriqueiras, trazem consequências inesperadas, quase absurdas, que as deixam pasmas, beirando a inércia.  E fica o profundo sentido de frustração permeando as histórias; pois não é raro, diante de uma consequência imprevisível, que a resposta do homem comum seja apenas uma série de impropérios que aliviam só de modo superficial os desatinos que encontrou.

 

 

 

 

Vale salientar que André Giusti não é um iniciante no trato da palavra.  Jornalista por profissão e autor de pelo menos doze livros, ele traz na sua narrativa algumas preciosas imagens e descrições diretas que não deixam dúvidas sobre sua capacidade de dizer exatamente o que pretende. Cito aqui dois exemplos, o primeiro pela divertida e carinhosa descrição de uma mulher:  “Mariana ri com os olhos levemente vesgos e intensamente alegres. Os olhos de Mariana parecem esquilos escapulindo por árvores de um parque.” [110]  E em segundo lugar, um exemplo da maneira direta com que nos conta muita coisa com apenas uma frase:  “Para desfazer o possível constrangimento real, Robério toma um grande gole de chope, arrota sem conseguir ser discreto e anuncia que tem novidade: vai ser avô, e faz uma cara que nos deixa em dúvida se ele acha bom ou ruim. [60] Estas maneiras variadas na escrita revelam completo domínio da arte.  É narrativa que seduz o leitor.

André Giusti

Não sei se estou certa ao dizer que a escrita de Giusti tem o tom do carioca. Penso que ele foi para Brasília, mas que o Rio de Janeiro não saiu dele. Ritmo, irreverência, diálogos e filosofia de vida de seus personagens parecem saídos dos meus vizinhos, dos meus conhecidos, dos meus ouvidos. Mas além disso, sinto nessa coletânea o retrato de como está realmente dura, difícil de gerenciar a vida nos nossos dias, sobretudo o cotidiano do homem, daquele que só pretende levar uma vida comum, de conhecedor de alguma coisa, de vivenciador de algumas belezas e tristezas, de cidadão que quer acertar na educação da filha, no romance com a mulher, no convívio no emprego. Em nenhum momento, que fique claro, isso é explícito nessas histórias. Mas ao terminar a leitura, repassando o que li, fica essa consideração: está difícil manobrar a vida com as exigências que nos foram impostas, a impaciência geral e a intransigência generalizada. Você quer um retrato da vida de hoje? É aqui que vai encontrar.

Recomendo sem qualquer objeção a leitura desse delicioso livro. Cinco estrelas.

NOTA: este blog não está associado a qualquer editora ou livraria, não recebe livros nem incentivos para a promoção de livros.





Leituras de 2022: “Oscarina” de Marques Rebelo, resenha.

19 06 2022

Senhora lendo jornal, 1902

William Worchester Churchill (EUA, 1858-1926)

óleo sobre  tela

Boa surpresa ver a reedição das obras de Marques Rebelo pela editora José Olympio.  Desde que me dediquei aos três volumes de O trapicheiro,  comprados num sebo do centro da cidade, não me lembro o ano, sou admiradora da prosa de Marques Rebelo, um dos mais cariocas dos escritores, que andava um tanto esquecido no fundo do nosso baú literário.  Além de prosa deliciosa, de fácil leitura, com narrativa direta, temos na obra dele o retrato da cidade na primeira metade do século passado. 

Não se trata da capital do país glamorosa, construída na arquitetura art déco, cidade de requinte, luxo, peles sobre os vestidos de noite nos bailes no  Hotel Glória, Copacabana Palace, dos luxuosos cassinos,  cidade de residência de diplomatas de  todo mundo, elegante paraíso tropical à moda Hollywoodiana de Voando para o Rio [Flying down to Rio] filme icônico do Distrito Federal em 1933 ou o local de nascimento de um dos personagens mais queridos de Walt Disney: Zé Carioca. A época é a mesma, sem dúvida.   Mas é o Rio de Janeiro dos subúrbios construídos às margens da estrada de ferro.  Estes compõem o pano de fundo das dezesseis histórias contadas em Oscarina.

A preocupação maior de Marques Rebelo está na caracterização do homem comum, seus anseios, desejos, preocupações, o sobreviver diário.  Na prosa  estão estampados valores, padrões de comportamento, crenças, regras, moral tudo que colabora para o ponto de equilíbrio cultural do carioca.  Não há nenhum super-herói, vencedor de grandes batalhas, de odisseias esplendorosas.  Ao contrário participamos das frustrações e pequenas vitórias cotidianas, na melhor tradição literária brasileira com raízes na obra de Manoel Antônio de Almeida, Machado de Assis,  Aluízio Azevedo, passando por Lima Barreto, uma única geração acima de Rebelo.  Do naturalismo-realismo do século dezenove, ele acena ao modernismo por contos sem fechamento, porque a vida é contínua, pelo humor que nos leva de volta ao notável Memórias de um Sargento de Milícias  com semelhante olhar carinhoso sobre a classe trabalhadora brasileira e também pelo linguajar comum, direto, repleto de expressões populares.

Carioca, Marques Rebelo mudou-se ainda criança para Minas Gerais.  É em Barbacena que lê.  Lê muito.  Não só os livros que faziam parte da biblioteca do pai, como jornais e revistas diversos e clássicos. Voltando ao Rio de Janeiro, na adolescência, já tem conhecimento literário mais sólido do que muitos adultos, ciente dos clássicos das literaturas brasileira, portuguesa, francesa.  Mais tarde, quando abandona os estudos no terceiro ano da Escola de Medicina para se dedicar à escrita tem cabedal na arte literária produzida aqui e na Europa, apreciador sobretudo de Manoel Antônio de Almeida e Machado de Assis. Está formado e destinado a escrever. Oscarina é seu primeiro livro, publicado em 1931.

Marques Rebelo

Dos dezesseis contos neste volume destaco o que nomeia o livro, Oscarina, Em maio, História de abelha, do qual retiro esta passagem, para revelar o sabor da prosa encontrada aqui:

“Assim… assim… o diabo é que a missa seria em dia útil. Manhã perdida. Poucas vendas. Era preciso forçar a freguesia, correr os subúrbios, dar uma repasso nas lojas de Madureira, ver se desencantava um tal de seu Arlindo que prometera, de pedra e cal, pagar as duplicatas vencidas do Pirelli, um caloteiro que lhe passara a casa. Não há por onde escapar: não iria ao cinema ver Greta Garbo, o domingo é que seria perdido e toca a acompanhar o Esteves, estava casando dinheiro como para o Caju. E se não fosse? que sofreria com isso? Pelo contrario ganharia que a fita era muito falada. O Antunes tinha elogiado: uma beleza! O Antunes era uma besta! Mas o Gomes, sim o Gomes era um rapaz inteligente e tinha gostado especialmente do pedaço em que ela mata o marido com um tiro, “um troço muito bem arranjado”, afirmara.” [153]

Se você não se vê na prosa de Marques Rebelo, certamente reconhecerá seu vizinho, o tio de Marechal Hermes, a madrinha de sua prima do Engenho de Dentro, a colega de trabalho de Olaria, o músico trompetista de Riachuelo, o pai do amigo torcedor de futebol, que não perde um jogo no Maracanã, mesmo que seu time não seja grande. Entramos no mundo do vendedor de sapatos de Piedade, do funcionário público sem ambições do Cachambi, do gerente do supermercado do Jardim Sulacap, do dono da quitanda de Rocha Miranda, do apostador no jogo do bicho de Madureira, da feijoada mensal na Pavuna. E com certeza, brincamos com todos esses personagens nas festas características do carioca, da Igreja da Penha como no Carnaval na Avenida Central. O Rio de Janeiro, repleto de carioquices, é tridimensional no mundo de Marques Rebelo.

Recomendo para todos. Leitura agradável, divertida, no melhor estilo literário. Faltou dizer que Marques Rebelo é pseudônimo de Eddy Dias da Cruz e que em 1964 entrou para a Academia Brasileira de Letras. Merecidamente.

 

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Leituras de 2022: Primeiros contos, Truman Capote, resenha

30 01 2022

Dia de chuva

Josephine Miles Lewis (EUA, 1865 – 1959)

 

Acho que foi um erro começar meu relacionamento com Truman Capote através desses Primeiros Contos, com tradução de Clóvis Marques.  Conhecido por sua obra À sangue frio, também escreveu outros textos adaptados para o cinema como Bonequinha de luxo (Breakfast at Tiffany’s) além de scripts para o teatro ou scripts feitos diretamente para filmes.  Nunca havia lido nada dele.  Mas neste Natal recebi de presente este livro de contos, seus primeiros, que só foram publicados depois de seus sucessos, quando redescobertos nos arquivos da Biblioteca Pública de Nova York.

Acredito que essas histórias escritas na adolescência e no início da idade adulta teriam mais interesse para o estudioso da obra de Capote, do que alguém, como eu, que gostaria de se familiarizar com o autor.  Essas histórias são bem escritas.  Parecem todas perfis de personagens interessantes, talvez para uso futuro.  É provável que tenham tido origem em pessoas que o autor conheceu, vizinhos, pessoas da cidade onde cresceu. 

 

Falta em muitas dessas narrativas conflitos interessantes levando a resoluções ou não de alguma questão. A mim pareceu um catálogo de personagens, com belas descrições de caráter e de hábitos peculiares.  Capote demonstra compaixão e empatia pelos tipos que descreve. E apesar de ser bastante detalhista nas descrições, sua destreza no contar de histórias (que parece herança da tradição oral comum no sul dos EUA) não chegam a interromper o fluxo narrativo, nem distrair o leitor.

Truman Capote

Voltarei a me familiarizar com a obra de Capote.  Certamente essas primeiras histórias tenho certeza não poderiam ser representativas de sua obra madura. Por enquanto não posso dizer que conheço seu trabalho e nem mesmo se gostei de suas observações.

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Peço um conto e levo todos!

16 12 2018

 

 

 

Vladimir Volegov Finished pantingFrench swing, 92x73 cm, oil on canvas, 2014Balanço francês, 2014

Vladimir Volegov (Rússia, 1957)

óleo sobre tela, 92 x 73 cm

 

Quando vi que foi lançada uma antologia de contos de autores brasileiros contemporâneos e que um dos meu escritores favoritos, Ronaldo Wrobel, havia sido incluído neste volume, corri a procurar o conto.

Descobri que podemos adquirir os contos individualmente ou comprar o volume com 30 contos na Amazon.  O livro é digital e publicado pela Amazon.  Não tive dúvidas e comprei o conto “A história de Joseph Koppel” de Wrobel.

A história tem dois locais Brasil e Alemanha da Segunda Guerra Mundial.  Lá ela se desenvolve entre esconderijos e fugas do judeu Joseph Koppel, que se torna um faz-tudo com diversas profissões. Fugindo dos nazista, ele encontra abrigos variados.  Em uma fuga é resgatado por uma mulher por quem se apaixona. Chama-se Louise.  E ela lhe dá abrigo na casa em que mora numa pequena aldeia povoada só por mulheres: os homens, quatro deles, eram velhos ou crianças.  Isso torna difícil convencer o militar alemão que a cortejava a aceitar a eventual gravidez de Louise.  Como?  De quem?  A paixão entre Louise e Joseph deixara provas concretas na barriga de três meses que ela tentava esconder.  A partir daí a narrativa se acelera.  E em típica criação de Wrobel, quando a gente pensa que vai indo para um lado… somos enganados e levados para outro.  Como pode alguém com tão poucas palavras nos iludir tão bem? É mágica!  O final desta história, contada por Joseph,  que emigrou para o Brasil e se estabeleceu no bairro do Catumbi, no Rio de Janeiro, tinha que ser surpreendente. E é.

Gostei tanto deste conto que, depois de terminá-lo, verifiquei os autores presentes na coletânea.  E como alguns também me agradam, vou comprar a Coleção Identidades.  Está valendo a pena!





Panchatantra, uma das mais antigas coleções de fábulas

19 10 2015

 

 

syrischer_maler_von_1354_001Ilustração do Panchatantra, na versão síria de 1354. Aqui está ilustrada a história em que o coelho engana o elefante mostrando a ele a lua refletida na água. (Bodleian Library, Oxford).

 

 

Panchatantra, quer dizer ‘Cinco Princípios‘ e é uma coleção de fábulas indianas provavelmente compiladas no século III antes da era comum, escritas originalmente em sânscrito.  Os originais já se perderam. Mas a coleção, ainda é muito conhecida. Foi traduzida do hebreu para o latim por João de Capua, em 1270.  Assim como muitas coleções de fábulas, hoje o Panchatantra tem inúmeras publicações em inglês, francês e outras línguas ocidentais, a maioria como livros para crianças.  Mas seus ensinamentos são universais e para todas as idades…





Eça de Queiroz sobre um livro de contos

14 05 2015

 

 

Giuseppe Perissinotto (1881-1965) Sra lendoSenhora lendo, s.d.

Giuseppe Perissinotto (Itália,1881- Brasil,1965)

óleo sobre tela

 

 

“Um livro de contos é um livro ligeiro de emoções curtas: deve portanto ser leve, portátil, fácil de se levar na algibeira para debaixo de uma árvore, e confortável para se ter à cabeceira da cama. Não pode ter o formato dum relatório, que, sendo destinado em definitivo a embrulhar objetos, deve ter de antemão o tamanho cômodo do papel de embrulho; nem pode ter o volume dum calhamaço de erudição histórica, impresso com o fim de ornamentar uma biblioteca”

 

Eça de Queiroz





Fantasias, conto infantil de Wilson W. Rodrigues

12 05 2015

 

 

ursinho equilibrista

 

Fantasias

 

Os dois Ursos haviam se convertido na atração máxima do grande baile de Carnaval do Teatro Municipal.

Um deles, entre risos dos foliões, acabara, havia pouco, com todas as frutas que ornamentavam as mesas, devorara um enorme peixe e a mais volumosa bandeja de salada russa. Nem por isso parecia saciado, pois se atirara à geleia e ao creme com a volúpia de um menino. Bebeu dúzias e dúzias de cervejas geladinhas; comeu dezenas de camarões recheados, coxinhas de galinha, ovos, uma quantidade assombrosa de comida e doces sem conta.

Perto da meia-noite, os alto-falantes convocaram os foliões para o famoso desfile do Concurso de Fantasias.

Todos aplaudiram:

— Os Ursos! Os Ursos!

O primeiro deles levantou-se e apontou a passarela:

— Vamos, seremos os Reis do Baile.

— Eu não, resmungou o outro.

— Não vai participar do desfile?

— Não.

— Sem você … que será de mim?

E numa confissão melancólica:

— Um casal de Ursos não é a mesma coisa que um Urso solitário. Perderei o prêmio.

— Não vou, nem devo ir… já é muito tarde.

— Mas a festa mal começou!

— Por isso mesmo, não quero estragar a alegria de ninguém. À meia noite, todos terão de arrancar as máscaras.

— E que tem isso?

— Acontece que eu não uso máscara. Eu sou um Urso mesmo.

 

***

Em:Contos dos caminhos, Wilson W. Rodrigues, Torre Editora, Estado da Guanabara, s/d, pp: 31-34





Resenha: Segredo de justiça de Andréa Pachá

27 11 2014

 

gilles sacksickMulher lendo

Gilles Sacksick (França, 1942)

 

Acabo de ler Segredo de Justiça, a nova coletânea de crônicas da juíza Andréa Pachá. Gostei tanto deste volume quanto do anterior. Esse também é de fácil leitura, grande entretenimento e como no primeiro volume virei a última página e fiquei com uma sensação de otimismo pelo futuro, coisa rara cá pelas minhas bandas.

Após a leitura do primeiro livro, A vida não é justa [Nova Fronteira: 2012] há dois anos, lembro-me de ter-me surpreendido com a criatividade das soluções encontradas no dia a dia pelos brasileiros comuns, antes mesmo dessas soluções serem testadas pelo sistema judiciário. Nessa segunda coletânea, há a mesma exuberância de soluções para o que nos aflige no cotidiano, mas minha reação foi diferente: fiquei estranhamente absorta, entregue à reflexão, considerando a disparidade entre os sonhos que trazemos conosco e possibilidade de suas realizações. Como na publicação anterior, essa coletânea de casos da vara de família mostra os seres humanos em momentos de grande fragilidade, e pelos olhos considerados da juíza, conseguimos aceitar comportamentos que, não fosse a maneira como são retratados, provavelmente não imaginaríamos aceitá-los tão prontamente. Andréa Pachá habilmente mostra a seus leitores um espelho, onde podemos ver de maneira nítida a reflexão dos nossos próprios preconceitos.

 

capa_-_segredo_de_justica_ed

 

O sucessivo desfilar dos casos nessa coletânea me levou a alguns dias de recolhimento, à reconsideração de experiências minhas, de familiares e amigos próximos, aos divórcios, casamentos longevos, heranças, divisão de bens, orfandade, morte súbita e demais acontecimentos não programados, que presenciei em família ou através de amigos. Todos os casos são únicos e peculiares porque os participantes são indivíduos. E é nesses momentos que se vê as verdadeiras feições de cada um dos envolvidos e os princípios respeitados pelos familiares. Acabei dedicando algumas horas a repensar as soluções de que participei em horas críticas, por ocasião de luto, de divórcios, separações ou nascimentos fora do casamento, paternidade ou maternidade inesperadas, enfim, um leque inteiro de vivências inevitáveis no convívio de uma família e na pluralidade das soluções encontradas por aqueles que conheço. Dessa vez as crônicas de Andréa Pachá me pegaram em um momento diferente, produzindo muita reflexão, sobre o passado e trazendo um pouco mais de compaixão para os meus amigos, familiares e conhecidos, protagonistas desses eventos. Não há solução genérica, ideal e feliz, que agrade a todos os envolvidos em um divórcio, em uma guarda de menores ou de idosos, ou de qualquer outra crise familiar. Existe apenas “o melhor que se pode fazer naquelas circunstâncias”. Olhei com carinho e compaixão para os divórcios, heranças, e soluções encontradas após mortes súbitas na família. Nem sempre essas soluções foram do agrado de todos, mas certamente foram o que de melhor poderia ter sido feito em cada ocasião. Dar-se esse perdão, ter-se essa compreensão das águas passadas, não tem preço!

 

ANDRÉA-PACHÁ-CRÉDITO-PARA-FÁBIO-SEIXOAndréa Pachá, foto: Fábio Seixo.

 

Recomendo a leitura dessas crônicas. Elas mostram o Brasil e os brasileiros de maneira diferente da que vemos na televisão e nos romances. Outra coisa que fazem, e muito bem, é mostrar um pouco de como a nossa justiça funciona. Diga-se que é estranho que através de filmes e de programas na televisão estejamos frequentemente mais familiarizados com o processo judicial americano do que com o brasileiro. São obras como esta que nos ensinam a função das decisões judiciais e como elas ocorrem por aqui. Uma verdadeira aula de civilidade dada de forma leve, divertida e ponderada.





Ruminando sobre famílias, texto de Andréa Pachá

23 11 2014

 

Tarsila do Amaral, A família, 1925, ost, 79x101,5cm Coleção Torquato Sabóis Pessoa, SPA família, 1925

Tarsila do Amaral (Brasil, 1886-1973)

óleo sobre tela, 79 x 101 cm

Coleção Torquato Sabóia Pessoa, SP

 

É uma pena que os reencontros nem sempre suscitam os sentimentos de que o tempo não passa. Festas de família, amigos e  parentes afastados pelo fluxo natural da vida costumam, de alguma maneira, resgatar o frescor da juventude e a carinhosa atividade quando vez ou outra se juntam compulsoriamente na maturidade. Não é rara a transformação de velório, antessalas de hospitais, missas e Natais em datas de celebração da saudade e de desejo de reviver momentos nos quais a única preocupação era compartilhar as mesmas alegrias e os mesmos prazeres.

 

É verdade que nem todas as famílias e nem todos os amigos traduzem esse desejo. Há os que a vida sepulta e afasta para sempre, roubando de cada um o pedaço de humanidade e do que temos de melhor na experiência de dar e receber amor.

Eu olhava os cinco irmãos, todos com mais de meio século de idade, se acomodando para o início da audiência e me perguntava em que momento eles perderam a intimidade que seguramente existiu, ainda que em uma longínqua infância. Brincaram de pique e de amarelinha? Mataram aulas em segredo? Foram cúmplices nas traquinagens e nos primeiros amores?

Não se olhavam com saudade e, exceto pelo gesto de Letícia que aos 53 anos buscava acolhida nos ombro de Lígia, a mais velha, pareciam estranhos ou, no máximo, conhecidos.  Aos 62 anos de uma vida que não deve ter sido fácil, Lígia parecia mãe da irmã caçula. Os três do meio eram homens. Fisicamente se pareciam bastante, tanto pelos traços marcantes quanto pelo destino duro que a vida lhes impôs.

A mãe morreu quando todos já eram maiores de idade. Na ausência do pai, cresceram como foi possível. Econômicos nas manifestações de carinho, tinham urgência de sair rapidamente do fórum, cada qual com o seu compromisso. ”

 

Em: Segredo de Justiça, Andréa Pachá, Rio de Janeiro, Agir: 2014, pp: 102-103, capítulo 21: Acerto sem contas.





O Príncipe, conto de Wilson W. Rodrigues, uso escolar

27 08 2014

 

WTBendaIlustração de W.T. Benda para capa da revista LIFE de agosto de 1923.

 

 

O Príncipe

 

Wilson W. Rodrigues

 

 

As feições do príncipe eram desconhecidas.

Jamais alguém vira o seu rosto.

Em sua corte trabalhavam os artesãos mais hábeis, os melhores desenhistas, as costureiras mais famosas.

A observação era invariável:

— É preciso que essa máscara fique mais bela; do contrário, o Príncipe recusará.

As máscaras deviam ser sempre mais belas, pois, desde menino, o Príncipe usava todos os dias, uma nova máscara.

Dir-se-ia que elas o fascinavam, pois sempre parecia feliz.

Um dia, quando tomava parte numa caçada, o Príncipe afastou-se de sua gente e se perdeu.

Pela noite inteira, ninguém o encontrou.

De manhã, quando cruzava o vale, o Príncipe avistou uma donzela que voltava da fonte, bilha ao ombro.

Estava sedento, pediu:

— Posso beber da tua bilha?

A jovem reconheceu o Príncipe Mascarado, e com galanteria ofereceu:

Só se beberes na concha das minhas mãos.

O Príncipe desmontou. Em terra, curvou-se; nesse instante, ela, num gesto tão rápido quanto impensado, arrancou-lhe a máscara, e deu um grito de espanto.

— Sou tão feio assim?

— Não. Tu és mais belo que todas as tuas máscaras.

 *****

Em: Contos do Rei do Sol, Wilson W. Rodrigues, Rio de Janeiro [Estado da Guanabara], Editora Torre: s/d, pp: 21-26