O gato vaidoso, Monteiro Lobato

9 04 2024

Companheiros de casa, 2003

Reynaldo Fonseca (Brasil, 1925-2019)

óleo sobre tela

 

 

 

 

O gato vaidoso

 

Monteiro Lobato

 

Moravam na mesma casa dois bichanos, iguais no pelo mas desiguais na sorte. Um, pela dona, dormia em almofadões. Outro, no borralho. Um passava a leite e comia no colo pela mão da senhora. O outro por feliz se dava com espinhas de peixe colhidas no lixo.

Certa vez cruzaram-se no telhado e o bichano de luxo arrepiou-se todo dizendo:

— Passa de largo, vagabundo! Não vês que és pobre e eu rico? Que és gato de cozinha e eu, de salão? Respeita-me, pois, e passa de largo…

— Alto lá, senhor orgulhoso!  Lembra-te que somos irmãos, criados no mesmo ninho.

— Sou nobre! Sou mais que tu!

— Em quê? Não mias como eu?

— Mio.

— Não caças rato como eu?

— Caço.

— Não comes rato como eu?

— Como.

— Logo, não passas de um simples gato igual a mim. Abaixa, pois, a crista desse orgulho idiota e lembra-te que mais nobreza do que eu não tens — o que tens é aoenas um bocado mais de sorte…

Quantos homens não transformam em nobreza o que não passa de um bocado mais de sorte na vida!

 

—- x—–

 

Em: Fábulas, São Paulo, Brasiliense: 1956, p. 155





Fábula, Cleómenes Campos

31 08 2021
Autoria desta ilustração, desconhecida.

 

 

Fábula

 

Cleómenes Campos

 

 

No começo do mundo,

quando tudo falava, um Monte, certo dia,

interrogou a um Vale, a quem mal conhecia:

— “Quem é mais alto de nós dois?”

 

O Vale respondeu-lhe. admirado, depois:

“Eu só te sei dizer que é o mais profundo…”

 

 

Em: Poesia Brasileira para a Infância, Cassiano Nunes e Mário da Silva Brito, São Paulo, Saraiva: 1967, Coleção Henriqueta, p. 113.

 





A flor e a nuvem, fábula de Lachambeaudie e Paula Brito

25 01 2021
 
 
A flor e a nuvem

 

Paula Brito

 

[ Fábula de Lachambeaudie]

 

Reina o estio.  — No vale

Lânguida flor emurchece

E  chama, p’ra socorrê-la

Uma nuvem, que aparece.

 

“Tu que do Aquilão nas asas

Vais pelo espaço a correr,

Vê que de calor me abraso,

Vem, não me deixes morrer.

 

“Com essas águas, que levas

A minha dor, refrigera.”

“— Tenho missão mais sagrada,

Agora não posso — espera.”

 

Disse e foi-se!… De abrasada

Cai e espira a flor tão bela:

Volta a nuvem e despeja

Quanta água tinha sobre ela…

 

Era tarde!…

 

MORALIDADE

 

Quase sempre

Quando um desditoso chora,

Rara vez no mundo encontra

Remédio ao mal que o devora;

 

Mas quando sucumbe ao peso

Da desgraça que o persegue,

Mudam-se as cenas — louvores

Então não há quem lhe negue.

 

Mas que vale esse aparato

Da verdade ou da impostura?

Nem lírios, nem goivos tiram

Os mortos da sepultura.

 

Em: O Espelho, revista de literatura, modas, indústria e artes, 4 de setembro de 1859, página 21.

 

 

Francisco de Paula Brito  ( RJ 1809 – RJ 1861) –  tipógrafo, editor, jornalista, escritor, poeta, dramaturgo, tradutor e letrista.   Foi aprendiz na Tipografia Nacional.   Trabalhou em seguida, em 1827 no Jornal do Comércio. Em 1831 passa a livreiro e editor com  Tipografia Fluminense de Brito & Cia.  Em 1833 lança o jornal O Homem de Cor, primeiro jornal brasileiro contra o preconceito racial.  É na sua editora que se forma a “Sociedade Petalógica”, grupo de poetas, compositores, atores, líderes da sociedade, ministros de governo, senadores, jornalistas e médicos que “constituíam movimento romântico de 1840-60”  Por outro lado, a tipografia de Paula Brito serviu também de ponto de encontro entre músicos populares [ Laurindo Rabello e Xisto Bahia, por exemplo] e poetas românticos.  A combinação produziu muitas parcerias musicais, principalmente no gênero das modinhas, que serviriam de embrião para a música popular urbana, popular no Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX.

 Obras:

Anônimas, poesia, 1859

O triunfo dos indígenas, teatro, sd

Os sorvetes, teatro, sd

O fidalgo fanfarrão, teatro, sd

A revelação póstuma, conto, 1839

A mãe-irmã, conto, 1839

O Enjeitado, conto

A marmota na Corte, periódico humorístico, 1849  

A Maxambomba, teatro   

A mulher do Simplício, ou A fluminense  exaltada, periódico humorístico, 1832  

Ao dezenove de outubro de 1854, dia de S. Pedro de Alcântara, nome de S. M. o Sr. D. Pedro II, poesia   

Biblioteca das senhoras, 1859  

Elegia à morte de Evaristo Xavier da Veiga, poesia, 1837  

Fábulas de Esopo para uso da mocidade, arranjadas em quadrinhas, poesia, 1857  

Monumento à memória do brigadeiro Miguel de Frias Vasconcellos e de seu irmão Francisco de Paula, 1859  

Norma, teatro, 1844  

Oferenda aos brasileiros, sd   

Os Puritanos, teatro 1845  

Poesias de Francisco de Paula Brito, poesia, 1863  

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Pierre Lachambeaudie (França, 1807 – 1872) foi um escritor de fábulas francês.





A aranha e as uvas, fábula de Leonardo da Vinci

8 12 2020
Lloyd Nelson Grofe (EUA, 1900-1978), Capa da Nature Magazine, Vol. 16 nº4, Outubro, 1930.

Você encontrará neste blog diversas fábulas de Leonardo da Vinci.  Além de grande pintor, arquiteto e cientista, o gênio da Renascença italiana também ficou conhecido por sua arte de conversar, de contar histórias.  Também escreveu e anotou fábulas e contos populares, lendas e anedotas, organizando-as em volumes diversos.   Algumas dessas lendas foram traduzidas por Bruno Nardini e publicadas no Brasil em 1972.  Transcrevo aqui a fábula  A aranha e as uvas do volume de Leonardo chamado: Fábulas, Atl. 67 v.b.)  Em: Fábulas e lendas, Leonardo da Vinci, São Paulo, Círculo do Livro: 1972, p.31.

A fábula de hoje, tem uma moral conhecida nossa, sabedoria popular, vinda da tradição latina através de Portugal: Quem o mal deseja a seu vizinho, vem o seu pelo caminho.

 

A aranha e as uvas

 

Uma aranha observou durante dias a fio os movimentos dos insetos, e notou que as moscas ficavam em torno de um grande cacho de uvas muito doces.

— Já sei o que fazer, disse ela para si mesma.

Subiu para o alto da parreira e, por meio de um tênue fio, desceu até o cacho de uvas, onde instalou-se num pequenino espaço entre duas frutas.

De dentro do esconderijo começou a atacar as pobres moscas que vinham em busca de alimento. Matou muitas delas, pois nenhuma suspeitava que houvesse ali uma aranha.

Porém em breve chegou a época da colheita.

O fazendeiro foi para o campo, colheu o cacho de uvas e atirou-o para dentro de uma cesta, na qual se viu espremido junto com outros cachos.

As uvas foram a armadilha fatal para a aranha impostora, que morreu exatamente como as moscas que enganara.





A lebre e a tartaruga — La Fontaine, trad. Curvo Semedo

3 12 2020
Ilustração, desconheço a autoria.

A lebre e a tartaruga

“Apostemos, disse à lebre

A tartaruga matreira,

Que eu chego primeiro ao alvo

Do que tu, que és tão ligeira!”

Dado o sinal da partida,

Estando as duas a par,

A tartaruga começa

Lentamente a caminhar.

A lebre, tendo vergonha

De correr diante dela,

Tratando uma tal vitória

De peta ou bagatela,

Deita-se e dorme o seu pouco;

Ergue-se e põe-se a observar

De que parte sopra o vento,

E depois entra a pastar;

Eis deita uma vista d’olhos

Sobre a caminhante sorna,

Inda a vê longe da meta,

E a pastar de novo torna.

Olha; e depois a vê perto,

Começa a sua carreira;

Mas então apressa os passos

A tartaruga matreira.

À meta chega primeiro

Apanha o prêmio apressada,

Pregando a lebre vencida

Uma grande surriada.

Não basta só haver posses

Para obter o que intentamos;

É preciso por-lhe os meios,

Quando não atrás ficamos.

O contendor não desprezes

Por fraco, se te investir;

Porque um anão acordado

Mata um gigante a dormir.





O leão e o camundongo, Olavo Bilac

20 07 2020

 

 

Willy ARACTINGI (1930-)Ilustração de Willy Aractingi (1930-)

 

 

O leão e o camundongo
Fábula de Esopo

 

Olavo Bilac

 

Um camundongo humilde e pobre

Foi um dia cair nas garras de um leão.

E esse animal possante e nobre

Não o matou por compaixão.

 

Ora, tempos depois, passeando descuidoso,

Numa armadilha o leão caiu:

Urrou de raiva e dor, estorceu-se  furioso…

Com todo seu vigor as cordas não partiu.

 

Então, o mesmo fraco e pequenino rato

Chegou: viu a aflição do robusto animal,

E, não querendo ser ingrato,

Tanto as cordas roeu, que as partiu afinal…

 

Vede bem: um favor, feito aos que estão sofrendo,

Pode sempre trazer em paga outro favor.

E o mais forte de nós, do orgulho se esquecendo,

Deve os fracos tratar com caridade e amor.

 

Em: Poesias infantis, Olavo Bilac, Rio de Janeiro, Francisco Alves: 1949, pp 132-3





A rã e o touro, Olavo Bilac

25 06 2020

 

 

illustrations_couleur_fables_de_la_Fontaine_par_Vimar_-_la_grenouille_qui_veut_se_faire_aussi_grosse_que_le_boeufIlustração de Auguste Vimar (1851-1916)

 

 

A rã e o touro
Fábula de Esopo

 

Olavo Bilac

 

Pastava um touro enorme e forte, à beira d’água.

Vendo-o tão grande, a rã, cheia de inveja e mágoa,

Disse: “Por que razão hei de ser tão pequena,

Que os outros animais só faça nojo e pena?

Vamos! quero ser grande! Incharei tanto, tanto,

Que imensa, causarei às outras rãs espanto!”

Pôs-se a comer e a inchar. E inchava, inchava, inchava!…

Mas em vão! Tanto inchou que num tremendo estouro

Rebentou e morreu, sem ficar  como um touro.

 

Essa tola ambição da rã que quer ser forte

Muitos homens conduz ao desespero e à morte.

Gente pobre, invejando a gente que é mais rica,

Quer como ela gastar, e inda mais pobre fica:

— Gasta tudo que tem, o que não tem consome,

E, por querer ter mais, vem a morrer de fome.

 

Em: Poesias infantis, Olavo Bilac, Rio de Janeiro, Francisco Alves: 1949, pp 127-8

 





Sobre a Inocência, Lachambeaudie

19 07 2018

 

 

03-woman-combing-her-hair-in-front-of-a-mirror degasMulher penteando os cabelos em frente a espelho, 1877

Edgar Degas (França, 1834 -1917)

óleo sobre tela, 46 x 32 cm

Norton Simon Art Foundation

 

 

“Tendo perdido a roupa, diz-se que a Inocência em vão, para encontrá-la, procurou o Prazer, a Fortuna e o Poder.
Quem lha resistiu?
Foi o arrependimento.”

 

Lachambeaudie (França, 1806-18720

Lachambeaudie

 





O reformador do mundo, fábula de Monteiro Lobato

10 03 2017

 

 

DSC01027Zé da Roça tira uma soneca na sombra de uma árvore. © Estúdios Maurício de Sousa

 

 

O reformador do mundo

 

Monteiro Lobato

 

Américo Pisca-Pisca tinha o hábito de por defeito em todas as coisas.  O mundo para ele estava errado e a Natureza só fazia asneiras.

—  Asneiras, Américo?

—  Pois então?!…  Aqui mesmo, neste pomar, você tem a prova disso.  Ali está uma jabuticabeira enorme sustendo frutas pequeninas, e lá adiante vejo uma colossal abóbora presa ao caule duma planta rasteira.  Não era lógico que fosse justamente o contrário? Se as coisas tivessem que ser reorganizadas por mim, eu trocaria as bolas, passando as jabuticabas para a aboboreira e as abóboras para a jabuticabeira.  Não tenho razão?

Assim discorrendo, Américo provou que tudo estava errado e só ele era capaz de dispor com inteligência o mundo.

— Mas o melhor – concluiu, é não pensar nisto e tirar uma soneca à sombra destas árvores, não acha?

E Pisca-pisca, pisca piscando que não acabava mais, estirou-se de papo para cima à sombra da jabuticabeira.

Dormiu.  Dormiu e sonhou.  Sonhou com o mundo novo, reformado inteirinho pelas suas mãos.  Uma beleza!

De repente, no melhor da festa, plaf!  Uma jabuticaba cai do galho e lhe acerta em cheio o nariz.

Américo desperta de um pulo; pisca, pisca; medita sobre o caso e reconhece, afinal, que o mundo não era tão mal feito assim.

E segue para casa refletindo:

—  Que espiga! … Pois não é que se o mundo fosse arrumado por mim a primeira vítima teria sido eu? Eu, Américo Pisca-pisca, morto pela abóbora por mim posta do lugar da jabuticaba?  Hum!  Deixemo-nos de reformas.  Fique tudo como está, que está tudo muito bem.

E Pisca-pisca continuou a piscar pela vida em fora, mas já sem a cisma de corrigir a Natureza.

 

 

Em: Fábulas, Monteiro Lobato, São Paulo, Brasiliense:1966, 20ª edição, pp.19-20.

 





Panchatantra, uma das mais antigas coleções de fábulas

19 10 2015

 

 

syrischer_maler_von_1354_001Ilustração do Panchatantra, na versão síria de 1354. Aqui está ilustrada a história em que o coelho engana o elefante mostrando a ele a lua refletida na água. (Bodleian Library, Oxford).

 

 

Panchatantra, quer dizer ‘Cinco Princípios‘ e é uma coleção de fábulas indianas provavelmente compiladas no século III antes da era comum, escritas originalmente em sânscrito.  Os originais já se perderam. Mas a coleção, ainda é muito conhecida. Foi traduzida do hebreu para o latim por João de Capua, em 1270.  Assim como muitas coleções de fábulas, hoje o Panchatantra tem inúmeras publicações em inglês, francês e outras línguas ocidentais, a maioria como livros para crianças.  Mas seus ensinamentos são universais e para todas as idades…