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Dançarinas, c. 1890
Fabio Fabbi (Itália, 1861-1946)
Óleo sobre tela
Clarke Auction House
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As duas filhas do rei Hassan
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Humberto de Campos
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Quando os árabes se reuniram pela primeira vez para, fixando-se na terra, interromper a sua tradição de povo nômade, resolveram eleger, também, entre os varões mais prudentes que vagavam com eles pelos desertos, um que lhes servisse de chefe. A escolha recaiu no xeique Hassan, notável, na mocidade, pela sua sabedoria. Era um ancião de grande estatura e de barbas grisalhas que lhe cobriam o peito inteiro, e tão ágil ainda, e tão robusto, que não chamava, jamais, os moços de sua tribo quando se precisava, na sua tenda, da pele de um leão.
Hassan possuía duas filhas, que o auxiliavam conforme a necessidade e a ocasião. A uma, dera o nome de Mentira. A outra, o de Verdade. Irmãs, embora as duas não tinham entre si, a menor semelhança. A Mentira erra mais velha, mais bonita. Na sua vida errante, enfeitava-se a cada hora, não usando, jamais, em um dia, o manto, de pele de leopardo ou de cordeiro que havia posto na véspera. A verdade não era feia, mas era triste, e de fisionomia severa. E apresentava, ainda, a desvantagem de não variar de vestuário. Por isso mesmo, não gostavam de andar uma em companhia da outra. Quando a Verdade chegava, a Mentira retirava-se, rapidamente. Mas, como era mais sedutora que a irmã, esta não conseguia, jamais, tomar-lhe o lugar na estima dos homens.
Os árabes foram, sempre, um povo de poetas. A cadência da marcha do camelo, ou do passo manso do cavalo do beduíno, deu-lhes o ritmo para o canto. Onde havia uma caravana, havia poetas. Onde se levantava uma tenda, erguia-se a modulação de uma voz. E os poetas tomaram-se de paixão pela Mentira. Debalde a outra se aproximava deles. Nenhum se apercebia da sua formosura grave, porque a Mentira sempre lhes parecia mais bonita que a Verdade.
Tornando chefe do povo árabe, o primeiro cuidado do xeique Hassan constituiu em consolidar a estabilidade das tribos errantes, fundando a primeira cidade. Para maior segurança da ordem, e prestígio da sua palavra, proclamou-se rei. E nomeou os seus ministros. E escolheu os seus generais. E, com o desenvolvimento crescente da nação, fundou uma corte de onde tirava os emires, os vizires, os cadiz, os que deviam distribuir a justiça ou governar as províncias, que se estenderam pelo deserto e pelas margens do mar. E quem, no palácio do rei Hassan mandava em tudo, e dirigia tudo, era a Mentira. Como a Verdade era austera e fria, seu pai, como todos os governantes que vieram depois, não gostava de ouvi-la. A Mentira, não. A Mentira era alegre e vivaz, e, dessa maneira, todos gostavam dela. A política do reino dos árabes, como a de todos os governos do mundo que surgiram mais tarde, passou a ser obra sua, trama ideada pelo seu cérebro e tecida pelas suas mãos.
Entre os governadores mais ricos das províncias vizinhas do mar, um havia, chamado Ahmad, o qual possuía uma filha, Amina, moça de grande e estranha formosura. Informado da sua beleza e da sua fortuna, Mahmud, chefe dos guardas do rei Hassan, mandou-lhe, por uma escrava, o seu juramento de amor. Ao mesmo tempo, enviava-lhe o mesmo juramento o príncipe Mansur, senhor do s oásis de Al-Kanfa. O príncipe era, no palácio real, amigo da Verdade. Mahmud, amigo da Mentira. E foi Mahmud quem venceu no coração da princesa Amina, porque em negócios de amor a Mentira é mais experiente que a verdade.
Por esse tempo, o reino dos árabes, dirigido pela sabedoria de Hassan, que sempre recorria à habilidade da filha mais velha, estendia-se já, por toda a península, compreendendo montanhas e vales, praias e desertos. Redigidas pelas Mentira os tratados de aliança ou de paz acabavam sempre, por anexar aos seus domínios os domínios dos seus vizinhos. E foi então, quando o grande monarca pensou na maneira de pensar aos sucessores a notícia de seus próprios feitos, e a história de formação do seu povo. A velhice extrema anunciava-lhe de modo preciso, que a morte não vinha longe. E o rei Hassan chamou dois vizires que sabiam escrever a língua árabe, e disse-lhes:
— Quero que narreis em papiro, para conhecimento dos homens do futuro, como nasceu a nação árabe, e como surgiu no deserto, a primeira cidade. Estou sem forças para vos narrar todos os fatos. Minhas duas filhas, se acham, porém, ao corrente de tudo, e vos contarão todos os sucessos que constituem a história do meu reino.
— Por qual das duas nos devemos guiar, senhor? – indagaram os dois primeiros historiadores. – Pela Mentira ou pela Verdade?
— Escolhei, vós mesmos, – respondeu o rei Hassan.
E morreu.
Habituada a ver-se preterida pela irmã, a Verdade resolveu conquistar o lugar, como informante dos historiadores. Para isso, vestiu o mais soberbo e vistoso manto que havia no palácio, pintou os olhos como os da Mentira, e foi para o salão em que devia ser procurada pelos vizires. Por sua vez, a Mentira, certa de que homens tão severos procurariam, de preferência, para informações tão graves, aquela das irmãs que lhes parecesse mais discreta e modesta, escolheu os trajes mais recatados, que a irmã abandonara, e foi colocar-se ao seu lado. Os vizires chegaram, entre reverências, trocaram algumas palavras em voz baixa. E encaminhavam-se para aquela das duas irmãs que se achava mais discretamente vestida, pedindo-lhe que lhes ditasse a história do povo árabe. Essa era a Mentira.
Data desse tempo, o costume que têm os historiadores, de, ao escrever a história dos povos, se servirem da Mentira como se fosse a Verdade.
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Em: À sombra das tamareiras (contos orientais), Humberto de Campos, São Paulo, W. M. Jackson Inc. : 1941, publicação original de 1934.
Humberto de Campos (Brasil, 1886-1934) poeta, jornalista, escritor e político. Membro da Academia Brasileira de Letras.