Preto no branco, texto de Sonia Carneiro Leão

20 03 2024

Quarto principal, c. 1965

Andrew Wyeth (EUA, 1917-2009)

 

 

 

Preto no branco

 

A cama era de laca branca, onde insone permanecia. A camisola de cetim já mostrava no tecido alvo as manchas do tempo e o lençol e a colcha, de tão lavados, escondiam um outrora branco luminoso. Os chinelos de renda, junto à cama, eram da cor da neve e até o lampião de vidro acetinado refletia o fogo esmaecido da lareira. O medo embranquecera a pálida face que já não dormia há vários dias e um olhar imóvel de torpor lembrava as alvas nuvens opacas de um céu de abril. A mesma branca agonia marcava hora no mostrador leitoso do carrilhão que ficava pendurado na parede da sala, já mofada de  um branco esverdeado. Gotas geladas de uma chuva fina e constante desciam pelas frestas do telhado deixando no quarto um eco insólito a ressoar na negra noite que chegava. Negra também era a morte que batia insistentemente no vidro da janela.

 

Em: Curtos-circuitos, Sonia Carneiro Leão, Olinda, Editora Babeco: 2015 pp. 46-7

 

 

 





A chegada da primavera, texto de Olga Tokarczuk

30 08 2023

Pessoa lendo na paisagem, 2005

Erni Kwast (Holanda, 1959)

 

 

 

“Os primeiros indícios da primavera ainda não tinham chegado à cidade. Ela deveria ter se acomodado nos arredores, nas hortas das chácaras, nos vales dos riachos, como as tropas inimigas antigamente. Sobre os paralelepípedos, o inverno deixou um monte de areia usada para cobrir as calçadas escorregadias, e agora, ao sol, empoeirava tudo e sujava os sapatos primaveris recém-tirados do armário. Os canteiros municipais estavam debilitados e os gramados sujos de fezes de cães. Nas ruas passavam pessoas com um aspecto acinzentado e olhos semicerrados. Pareciam grogues. Formavam filas em frente aos caixas eletrônicos, para tirar de lá um valor de vinte zlotys, exatamente o valor necessário para se alimentar durante um dia. Estavam com pressa para chegar ao posto de saúde, pois tinham uma consulta marcada para as 13h35, ou estavam a caminho do cemitério para trocar as flores de plástico do inverno pelos narcisos naturais da primavera.”

Em: Sobre os ossos dos mortos, Olga Tokarczuk, tradução de Olga Baginska-Shinzato,  São Paulo, Todavia: 2020, p.118





Em um concerto de jazz, eu me procuro…

6 08 2023

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Viúva há dezesseis meses, ouço que o luto é um processo único, específico para cada caso. Pode ser. Descrições em livros e na web são insatisfatórias.  Para mim, este período tem sido irreal, com traços de realismo fantástico.  Continuei com obrigações como pude.  Depois de intervalo, retornei às aulas até dezembro de 22.  Mas o período está envolto em brumas, memórias nebulosas. Lidar com a burocracia é um passeio pelo mundo de Kafka, interminável.  Vivi distante de mim mesma.  Éramos duas:  a que agia e a que vegetava e ia junto. Fantasma de mim mesma, mas consciente. Um ano atípico em todos os aspectos.  Tive Covid duas vezes, quando ninguém mais estava de recesso em casa; meu bônus foram sequelas que contorno até hoje.  Eu poderia ter previsto essa consequência: meu corpo sofre com choques emocionais.  A hepatite me pegou logo após meu primeiro marido sair de casa, apaixonado por outra mulher. Viver esse lugar comum, tão banal, deprimiu e afetou a autoestima. Sobrevivi, em parte, graças ao repouso obrigatório da doença e aos amigos.

Ao longo destes meses, percebi que havia necessidade de mostrar a mim mesma que agora é um novo mundo, outra realidade. Mandei pintar o apartamento: nova cor, brilhante. Uma longa extensão decorei com papel de parede. Em menos de um ano, os pintores voltaram: para nova cor; e o papel de parede foi removido.  Aquela pessoa que escolhera essas coisas, essas cores, não era eu.  Começou então o processo de achar quem sou.  Quem sou sem meu marido?  O que importa para essa mulher:  o que quer, como quer, nesta realidade? Minha procura me leva, nos dias de hoje ao passado, próximo e longínquo.

Comecei a questionar o corriqueiro: a televisão. No ano que passou, não parei em nenhum dos canais de esporte. O interesse sobre os jogos de basquete foi adquirido por estar casada? E o futebol americano, que depois de aprender as regras se tornou um queridinho das minhas semanas do outono? Por que não vi nenhum jogo? Continuo com isso?  Continuo com HBO?  Netflix anda esquecida, vejo menos ainda a Amazon Prime.  O que quero?  O que me pertence?  Passei setenta e cinco por cento de minha vida, casada. Dois maridos.  E o período entre eles foi pequeno.  Viver com alguém envolve adaptar-se ao outro. Às vezes as pessoas julgam que é um submeter-se.  Mas não penso assim: até Leonard Hofstadter se adaptou a Sheldon Cooper.  Você se adapta, porque quer viver com o outro, entendê-lo, agradar.  Porque aprecia seus valores. Porque ama.

Nessa busca, desencaixotei fotos, agendas, diários, cadernos de notas e ainda não cheguei ao fim.  Fotos minhas de criança, jovem, adulta, só, com um ou outro marido.  Viagens que fiz.  Onde estávamos?  O que eu pensava na época?  Eu era feliz, neste ponto, naquela cidade em que vivi, por meses, anos, cinco anos? Oran, São Paulo, Coimbra, Baltimore?  Belgrado?  Washington D.C., Agen? Aqui, no Rio de Janeiro, onde nasci, o que me fazia e me faz feliz?  Que me segura aqui?  E por que? Ainda não tenho respostas. Não sei se terei. Estou passando em revista a vida que construí.  Encontro uma mulher interessante, com um passado rico, determinada e sensível; mais sensível do que parece e repleta de incertezas sobre o que fazer do futuro.

Minhas buscas têm me levado ao teatro, a shows, a concertos.  Não é fácil.  Não é fácil fazer essas coisas sozinha.  Sem a intimidade do olhar amigo, do sorriso de uma piada no palco, sem aperto de mão discreto, acentuando um acorde inesperado.  Mas tenho ido.

E me surpreendi semana passada; a imaginação é fértil e ajuda nas nossas buscas.  Além disso a experiência de vida dá maior precisão às nossas escolhas. Fui à Sala Cecília Meireles, Nico Rezende Canta Chet Baker era o nome do espetáculo.  Foi excelente. Gosto de jazz. Meu lugar, fila M, com bom declive teve cadeiras vazias dos dois lados. Com a música começada, vieram as ponderações.  E a imaginação rolou à solta.

Lembrei-me que meus dois maridos gostavam de jazz.  Lembrei-me de duas ocasiões específicas: uma vez, em Baltimore, fomos a Left Bank Jazz Society no Famous Ballroom, na North Charles St. onde vimos Stan Getz tocar seu saxofone como ninguém.  Stan Getz que abrira o caminho da bossa-nova nos EUA, cuja apresentação trouxe o espetáculo à loucura quando tocou Hey Jude, dos Beatles.  E me lembrei também, de um show em Raleigh, na Carolina do Norte, não me lembro do nome do grupo, quando o trompetista, interagindo com a plateia, veio à nossa mesa, e depois de breve conversa conosco, sabendo que meu marido tocara saxofone, queria porque queria que ele, à moda de Bill Clinton, se inserisse na banda.

O espetáculo na Sala Cecília Meireles, por causa de minhas memórias, trouxe para mim um de cada lado, os maridos, sentados à direita e à esquerda.  O primeiro, companheiro de vida dos dezesseis aos vinte e nove anos, estava comigo em quase todas as minhas descobertas até o divórcio. Mais velho que eu dois anos, descobrimos a fase adulta juntos. O segundo já veio feito, mais velho que eu oito anos, americano, crescido na própria cultura que criara o jazz; familiarizado com essa música desde da infância.  Este era mais dos blues.  Cada qual com seu jeito e preferência musical.  Nossa convivência, formou meu gosto, que agora, acredito ser diferente do deles; gosto dos quartetos ou quintetos de jazz, de Duke Ellington a Madeleine Peyroux e a Samara Joy, que uma pessoa amiga me recomendou recentemente.  Não que eles não pudessem gostar dessas combinações musicais, não sei, mas talvez não fosse a preferência dominante para nenhum deles.

Fui das lágrimas aos risos naqueles noventa minutos.  Agradeci estar sozinha. Os lenços de papel não foram suficientes para, molhados, também esconder as discretas risadas. Chorei pela ausência de referências, pelo árido caminho das memórias não-compartilhadas, pelo lapso de cumplicidade. Ri das aventuras passadas, da inocência de situações inesperadas, gravadas hoje em mim e só para mim.  Este repassar da vida é para os fortes.  Esse meu momento, que pode ser cruel, trouxe à mente a conhecida advertência de Alexander Pope em seu ensaio Criticism: “For fools rush in where angels fear to tread” [Os tolos se apressam no caminho que os anjos temem pisar]. É um caminho difícil. Há ratoeiras à beira da estrada que podem nos pegar pelo pé e nos levar para onde não há saída.  É caminhada triste, solitária mas às vezes incrivelmente satisfatória. É um momento de perdoar erros passados, meus, deles, de todos nós.

©Ladyce West, Rio de Janeiro, 7 de agosto de 2023





Uma questão de autoria? texto de Umberto Eco

15 04 2023

No. 217, 1998

Davi dalla Venezia (Itália, 1965)

óleo sobre tela, 162 x 130 cm

 

“Um amigo de infância que não encontrava havia anos me escreveu após a publicação do meu segundo romance, O pêndulo de Foucault: “Caro Umberto, não me recordo de ter-lhe contado a história patética do meu tio e da minha tia, mas acho que você foi muito indiscreto ao usá-la em seu romance.” Bem, no meu livro eu conto alguns episódios envolvendo um certo Tio Charles e uma certa Tia Catherine, que na história são os tios do protagonista, Jacopo  Belbo. É verdade que essas pessoas de fato existiram. Com algumas alterações, eu estava contando uma história da minha infância envolvendo um casal de tios meus — mas é claro que eles tinham nomes diferentes dos personagens. Respondi ao meu amigo dizendo que o Tio Charles e a Tia Catherine eram meus parentes, e não dele (e, portanto, os direitos autorais eram meus), e que eu nem sequer sabia que  ele tivesse um tio ou uma tia. Meu amigo se desculpou: deixara-se envolver tanto pela história que achou que havia identificado certos incidentes ocorridos com seus tios — o que não é impossível, pois em tempo de guerra (o período ao qual remontavam minhas lembranças) coisas semelhantes podem acontecer a diferentes tios e tias.

O que acontecera com meu amigo? Ele buscara na minha história algo que estava, isto sim, na sua lembrança pessoal. Não estava interpretando meu texto, mas usando-o. Não é propriamente proibido usar um texto para sonhar acordado, e todos nós o fazemos com frequência — mas não é uma questão pública. Usar um texto dessa maneira significa mover-se nele como se fosse nosso diário íntimo.”

 

Em: Confissões de um jovem romancista, Umberto Eco, tradução de Clóvis Marques, Rio de Janeiro, Record: 2018, p. 33





Narrativa versus poesia, Umberto Eco

7 10 2022

Sem título

Daniela Astone (Itália, 1980)

óleo sobre tela

“… um romance não é apenas um fenômeno linguístico. Na poesia, é difícil traduzir as palavras porque o que importa é o seu som, assim como seus significados deliberadamente múltiplos, e é a escolha das palavras que determina o conteúdo. Numa narrativa, temos a situação contrária: o universo que o autor construiu, os acontecimentos que neles ocorrem é que ditam o ritmo,, o estilo e até a escolha das palavras. A narrativa é governada pela regra latina, “Rem tene, verba sequentor” — “Prenda-se ao tema e as palavras virão” — ao passo que na poesia a formulação deve ser mudada para: “Prenda-se às palavras e o tema virá.”

Em: Confissões de um jovem romancista, Umberto Eco, tradução de Clóvis Marques, Rio de Janeiro, Record: 2018, p. 15





O crime, José Américo de Almeida

1 09 2022

A leitora, 1901

Auguste Frederic Dufaux (Suiça,1852-1943)

óleo sobre tela

 

O crime

 

Morava no engenho uma mulher por nome Josefa, conhecida como feiticeira. Tinha três filhos homens: João Duda, Antônio Cuíca e Felizardo, o melhor cortador de cana, que voltou da cidade, num dia de feira, em toda carreira, com a polícia no encalço. Chegando,gritou de longe para meu pai dizendo que acabara de cometer um crime e pedindo proteção. Matara Mesquece, um vendedor de cocada, por uma questão de troco.

Meu pai negou-lhe asilo.  Não admitia criminoso em sua terra, mas nesse dia não jantou e dormiu tarde.

Veio o comandante do destacamento, tenente Moreirinha, e pediu licença para correr a propriedade. Contrariando a tradição de inviolabilidade dos engenhos, meu pai permitiu.

Além de varejar todas as casas, a polícia surrou a mãe do assassino e sua cunhada, mulher de Antônio Cuíca, o que causou indignação a meu pai.

Diziam os moradores que, com a diligência na ilharga, Felizardo tornara-se invisível por ter virado a camisa pelo avesso.  Fugiu e homiziou-se numa usina em Pernambuco, só voltando a Areia depois de prescrito o crime.

 

Em: Memórias: antes que me esqueça, José Américo de Almeida, Rio de Janeiro, Francisco Alves: 1976, pp. 60-61





“Irritações”, texto de Marques Rebelo

27 08 2022

Sem título

Antonella Masetti Lucarella (Itália, 1954)

Técnica mista sobre tela

 

 

22 de fevereiro

 

É extenso o capítulo de irritações. Acrescentamos: a lentidão de Vera para comer, que aguento a duras penas para não botar mais fogo na canjica; a impontualidade de Mário Mora; o jeito de Euloro Filho nos apertar a mão, entre preguiça e descaso; a grosseria congênita de Nilza, e o Gasparini estava louco varrido quando a transformou de enfermeira e amante em esposa; a cara ofendida e reprovante de Susana se ouve uma palavra menos limpa, vestal insensível à sujidade de certos preconceitos e opiniões que vicejam em seu salão; a voz pamonha de Anita, que relembra a de Beiçola fazendo adormecer toda a classe com a leitura de vinte linhas da Antologia Nacional; e a maníaca perseguição que Garcia move aos meus cavalos, como se fossem eles as únicas pedras valiosas do tabuleiro — no décimo lance, rarissimamente tenho ainda um para manobrar.”

 

Em: O trapicheiro, Marques Rebelo, 1º volume de O Espelho Partido, São Paulo, Martins: 1959, 1ª edição, numerada,  p. 345





Ricardo Coração de Leão na Áustria

22 06 2022

Ricardo Coração de Leão

Iluminura, MS Royal 14 C VII f.9

Data do manuscrito !250-1259

Biblioteca Britânica

 

 

 

“…Mas, depois de sua partida, o senhor de Zara enviou um emissário secretamente a seu irmão avisando-lhe que detivesse o rei quando ele chegasse às suas terras. Quando o rei chegou e entrou na cidade onde morava o irmão daquele senhor, este imediatamente convocou um homem em quem tinha toda confiança, Rogério, um normando de Argenton, que estava junto dele havia vinte anos e a quem dera sua sobrinha em casamento; ordenou-lhe que inspecionasse atentamente todas as casas onde houvesse visitantes alojados, e que tentasse identificar o rei por sua maneira de falar ou por qualquer outro detalhe. Prometeu dar-lhe a metade da cidade se conseguisse capturar o rei.

O homem localizou e examinou todas as casas onde havia viajantes; Ricardo ocultou por bastante tempo  sua identidade, depois, vencido pelas súplicas e pelas lágrimas do leal investigador, confessou sua identidade. Imediatamente o outro exortou-o , chorando, a fugir às escondidas, e ofereceu-lhe um cavalo excelente. Pouco depois, voltando para junto de seu senhor, disse que aquilo que se contava  a respeito da chegada do rei não tinha fundamento, mas que se tratava de Balduíno de Béthune e de seus companheiros, voltando da peregrinação. O senhor, furioso, mandou prender todos eles.

O rei deixou a cidade às escondidas com Guilherme de Etang e um jovem servidor que falava o alemão; viajou três dias e três noites sem se alimentar. Depois, compungido pela fome, foi até uma cidade chamada Viena, na Áustria, às margens do Danúbio, onde, por cúmulo de infelicidade, naquele momento  encontrava-se o duque da Áustria. O jovem servidor do rei foi trocar dinheiro; tirou muitos besantes , mostrando-se arrogante e pretensioso. Então os habitantes da cidade apoderaram-se dele imediatamente e lhe perguntaram quem era; respondeu que estava a serviço de um mercador muito rico que chegaria à cidade três dias depois. Foi libertado e voltou discretamente para junto do rei, em seu refúgio, exortando-o a fugir o mais depressa possível e contando-lhe o que acontecera. Mas o rei, ainda sob o efeito da fatiga causada por sua dura navegação, desejava descansar alguns dias naquela cidade. O servidor ia com frequência ao mercado para comprar o necessário, e certa vez, no dia de São Tomé Apóstolo, enfiara inadvertidamente sob seu cinto as luvas do patrão.Vendo-as, os magistrados da cidade voltaram a deter o servidor, maltrataram-no rudemente, infligiram-lhe muitas torturas, feriram-no e ameaçaram arrancar-lhe a língua se não se apressasse em dizer a verdade. O servidor, vencido por um sofrimento insuportável, contou-lhes tudo. E eles informaram o duque imediatamente, cercaram o alojamento do rei e instaram-no a entregar-se voluntariamente.

O rei permaneceu marmóreo em meio ao alarde de todas aquelas pessoas que palravam; deu-se conta de que sua bravura não poderia defendê-lo contra tantos bárbaros, e exigiu a presença do duque, garantindo que só se entregaria a ele. O duque chegou imediatamente e o rei deu alguns passos em sua direção, depois colocou sua espada e sua pessoa  em suas mãos.  O duque,muito satisfeito, levou o rei com ele, com grandes honras. Depois entregou-o à guarda de bravos cavaleiros que, noite e dia, vigiaram-no estreitamente em todos os lugares, de espada na mão.” *

 

* Narrativa baseada em diversos relatos da época de Ricardo I, de Inglaterra, conhecido como Ricardo Coração de Leão. 

 

Em: Ricardo Coração de Leão; história e lenda, Michele Brossard-Dandré e Gisèle Besson, tradução de Monica Stahel, São Paulo, Martins Fontes: 1993, pp: 224-6





As irmãs, texto de Jun’ichiro Tanizaki

9 08 2021

Três moças passeando com sombrinhas

Torii Kiyonaga ( Japão, 1752-1815)

Xilogravura policromada

da Série: Modos modernos na Brocado Leste

(Mundo flutuante)

 

 

 

“De fato, as três irmãs juntas constituíam um espetáculo único de beleza: eram parecidas, é verdade, mas de forma indefinida.  Cada uma possuía uma característica que a transformava num tipo de beleza contrastante com as demais, mas, ao mesmo tempo, todas elas tinham pontos que lhes eram indiscutivelmente comuns.  Para começar, a altura — que de Sachiko para Yukiko e desta para Taeko diminuía aos poucos de acordo com a idade — já consistia em interessante detalhe a chamar atenção dos que as viam passar juntas. Pelo tipo de vestuário e complementos que usavam, assim como pela aparência geral, Yukiko teria gosto genuinamente nipônico, e Taeko, gosto ocidentalizado. Já Sachiko seria considerada um meio-termo entre as duas irmãs. Taeko tinha nariz e olhos bem definidos num rosto arredondado e físico robusto com ele condizente, enquanto Yukiko, ao contrário, possuía rosto fino e corpo esguio. Quanto a Sachiko, constituía outra vez uma mistura das melhores características desses dois tipos físicos opostos. Taeko usava sempre roupas ocidentais, Yukiko, quimonos, enquanto Sachiko vestia roupas ocidentais no verão e quimono nas demais estações. No aspecto semelhanças, Sachiko e Taeko, ambas parecidas com o pai, tinham um tipo de beleza exuberante.  Yukiko era a única diferente. Mas apesar de possuir uma beleza algo sombria, ficava bem apenas em quimonos de crepe de seda com estampas vistosas, do tipo usado pelas antigas cortesãs. Os listrados de tonalidade suave, tão ao gosto das mulheres de Toquio, não lhe eram indicados.”

 

Em: As irmãs Makioka, Jun’ichiro Tanizaki,  tradução de: Leiko Gotoda, Kanami Hirai, Neide Hissae Nagae e Eliza Atsuko Tashiro, São Paulo, Estação Liberdade: 2005, p. 47





A professora de São Cristóvão, texto de Gilberto Amado

23 11 2020

Figura de mulher, 1929

Ismael Nery (Brasil, 1900 -1934)

óleo sobre cartão, 38 x 46 cm

Galeria Almeida e Dale

 

“Maria Cândida, solteira, magra, sempre de enxaqueca com rubores súbitos, vivia a passar a mão sobre a cabeça dolorida. Certos dias colava nas venezianas um papel azul, para coar o sol e criar na sala da escola uma atmosfera opalina. Mas papel azul não podia ser obstáculo a que o sol de Itaporanga ferisse com sua violência a cabeça sensível da solteirona frágil, moça velha de peito murcho nas desesperanças do celibato. Maria Cândida, professora pública não ilustrada como Sá Limpa, professora particular.  Sá Limpa “puxava” pelos meninos. “Mulher não precisa saber”, dizia no tempo a maioria dos pais. Mas o meu, querendo dar a Iaiá instrução melhor, andou procurando professora; veio uma de São Cristóvão, grandalhona, muito recomendada. Abriu aula na Praça do Mercado.  Meninas das melhores famílias deixaram a escola pública para se matricular na dela. Viu-se logo, porém, que a recomendação não tinha fundamento. Num exemplo escandaloso, revelou-se-lhe a impreparação. Ensaiando as meninas para um recital, não se soube por que artes do demônio obrigou a que devia recitar o “Navio Negreiro” a pronunciar “albátros” em vez de albatroz, “albatroz, albatroz, águia do oceano”, dizia o poeta; albátros queria a professora que as meninas dissessem. Passava a esse tempo por Itaporanga Baltazar Góis, literato, professor do Liceu em Aracaju. Hospedado lá em casa, soube do fato. “É maluca… e escangalhou o decassílabo!”  A história propagou-se; a professora encalistrou, raspou-se sem se despedir, deixando os trastes; reintegrou São Cristóvão onde talvez não fizessem questão da pronúncia do nome da ave.”

 

Em: História da minha infância, Gilberto Amado, Rio de Janeiro, José Olympio:1966, 3ª edição, pp. 68-9