DETALHE**
Os sentidos: toque, audição e paladar, c. 1620*
Jan Brueghel (Flandres, 1568-1625)
óleo sobre tela, tamanho do original 176 x 264 cm
Museu do Prado
* acima temos um detalhe. O original pertence a um par de quadros enormes, representando os cinco sentidos.
** Veja abaixo esta tela completa
Em abril de 2014 postei uma pergunta aos leitores: você se lembra de alguma refeição literária memorável? O questionamento veio de um artigo que eu havia acabado de ler na revista Smithsonian daquele mês, onde a exposição fotográfica de Dinah Fried, Fictitious Dishes [Pratos fictícios] retratavam refeições descritas em conhecidas obras literárias. Naquele dia, próximo à Páscoa, me lembrei de uma refeição descrita por José de Alencar, no livro Senhora, um de meus livros favoritos quando jovem adolescente, que li e reli diversas vezes. Nesta última semana tive a oportunidade de reler outro livro favorito da minha adolescência, A cidade e as Serras, de Eça de Queiroz, votado como livro do mês pelo grupo Encontros na Praça. É claro que tinha que passar para vocês a deliciosa primeira refeição no interior de Portugal de Jacinto, recém-chegado de Paris. Aqui vai para vocês esta refeição memorável, que é a porta de entrada para toda a segunda metade do livro, a vida de Jacinto, o citadino ao interior de seu país natal.
“Na mesa, encostada ao muro denegrido, sulcado pelo fumo das candeias, sobre uma toalha de estopa, duas velas de sebo em castiçais de lata alumiavam grossos pratos de louça amarela, ladeados por colheres de estanho e por garfos de ferro. Os copos, de um vidro espesso, conservavam a sombra roxa do vinho que neles passara em fartos anos de fartas vindimas. A malga de barro, atestada de azeitonas pretas, contentaria Diógenes. Espetado na côdea de um imenso pão reluzia um imenso facalhão. E na cadeira senhorial reservada ao meu Príncipe, derradeira alfaia dos velhos Jacintos, de hirto espaldar de couro, com madeira roída de caruncho, a clina fugia em melenas pelos rasgões do assento puído. Uma formidável moça, de enormes peitos que lhe tremiam dentro das ramagens do lenço cruzado, ainda suada e esbraseada do calor da lareira, entrou esmagando o soalho, com uma terrina a fumegar. E o Melchior, que seguia erguendo a infusa do vinho, esperava que Suas Incelências lhe perdoassem porque faltara tempo para o caldinho apurar… Jacinto ocupou a sede ancestral — e durante momentos (de esgazeada ansiedade para o caseiro excelente) esfregou energicamente, com a ponta da toalha, o garfo negro, a fusca colher de estanho.
Depois, desconfiado, provou o caldo, que era de galinha e recendia. Provou — e levantou para mim, seu camarada de misérias, uns olhos que brilharam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu, com espanto: — “Está bom!” Estava precioso: tinha fígado e tinha moela; o seu perfume enternecia; três vezes, fervorosamente, ataquei aquele caldo. — Também lá volto! — exclamava Jacinto com uma convicção imensa. — É que estou com uma fome… Santo Deus! Há anos que não sinto esta fome. Foi ele que rapou avaramente a sopeira. E já espreitava a porta, esperando a portadora dos pitéus, a rija moça de peitos trementes, que enfim surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado — e pousou sobre a mesa uma travessa a trasbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominava favas!… Tentou todavia uma garfada tímida — e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara, luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala. Depois um brado: — Ótimo!… Ah, destas favas, sim! Ó que fava! Que delícia! E por esta santa gula louvava a serra, a arte perfeita das mulheres palreiras que em baixo remexiam as panelas, o Melchior que presidia ao bródio…
— Deste arroz com fava nem em Paris, Melchior amigo! O homem ótimo sorria, inteiramente desanuviado: — Pois é cá a comidinha dos moços da quinta! E cada pratada, que até Suas Incelências se riam… Mas agora, aqui, o Sr. D. Jacinto, também vai engordar e enrijar! O bom caseiro sinceramente cria que, perdido nesses remotos Parises, o Senhor de Tormes, longe da fartura de Tormes, padecia fome e minguava… e o meu Príncipe, na verdade, parecia saciar uma velhíssima fome e uma longa saudade da abundância, rompendo assim, a cada travessa, em louvores mais copiosos. Diante do louro frango assado no espeto e da salada que ele apetecera na horta, agora temperada com um azeite da serra digno dos lábios de Platão, terminou por bradar: — “É divino!” Mas nada o entusiasmava como o vinho de Tormes, caindo de alto, da bojuda infusa verde — um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo. Mirando, à vela de sebo, o copo grosso que ele orlava de leve espuma rósea, o meu Príncipe, com um resplendor de otimismo na face, citou Virgílio: — Quo te carmina dicam, Rethica? Quem dignamente te cantará, vinho amável destas serras? Eu, que não gosto que me avantajem em saber clássico, espanejei logo também o meu Virgílio, louvando as doçuras da vida rural: — Hanc olim veteres vitam coluere Sabini… Assim viveram os velhos Sabinos. Assim Rómulo e Remo… Assim cresceu a valente Etrúria. Assim Roma se tornou a maravilha do mundo! E imóvel, com a mão agarrada à infusa, o Melchior arregalava para nós os olhos em infinito assombro e religiosa reverência.
Ah! Jantámos deliciosamente sob os auspícios do Melchior — que ainda depois, próvido e tutelar, nos forneceu o tabaco. E, como ante nós se alongava uma noite de monte, voltamos para as janelas desvidraçadas, na sala imensa, a contemplar o suntuoso céu de verão.Filosofamos então, com a pachorra e facúndia.”
Em: A cidade e as Serras, Eça de Queiroz. Em domínio público. Esta versão Amazon, Kindle.
Aqui a tela completa do início da postagens: