Outono: Elizabeth George Speare

17 04 2024

Paisagem com homem e arado, 1889

Vincent van Gogh  (Holanda, 1853-1890)

óleo sobre tela, 33 x 41 cm

Hermitage, Rússia

 

 

 

 

“Depois dos dias grandiosos de setembro, o sol de outubro encheu o mundo com calor ameno… A árvore de bordo frente à entrada queimava como uma gigantesca tocha vermelha.  Os carvalhos ao longo da estrada brilhavam em amarelo e bronze. Os campos se estendiam como um tapete de joias, esmeralda e topázio e granada.  Para qualquer lado que ela fosse a cor gritava e cantava à sua volta… Em outubro qualquer evento inesperado é possível.”

 

Elizabeth George Speare, The Witch of Blackbird Pond  — tradução deste trecho: Ladyce West

 

 

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“After the keen still days of September, the October sun filled the world with mellow warmth…The maple tree in front of the doorstep burned like a gigantic red torch. The oaks along the roadway glowed yellow and bronze. The fields stretched like a carpet of jewels, emerald and topaz and garnet. Everywhere she walked the color shouted and sang around her…In October any wonderful unexpected thing might be possible.”
― Elizabeth George Speare, The Witch of Blackbird Pond




Pomares de limoeiros na Itália, texto de Barbara Pym

29 10 2023

Coleção cítrica dos Medici, 1715

Espécies de limões e laranjas [DETALHE]

Bartolomeu Bimbi (Itália, 1648-1723)

Óleo sobre tela

Hoje, Palácio Pitti, Florença

 

 

 

“Ianthe ficou aliviada quando a levaram para o seu quarto e a deixaram sozinha para desfazer as malas. Saiu para a varandinha um tanto nervosa, achando que não parecia muito segura,e olhou para baixo para bosques de limoeiros. As árvores eram todas emaranhadas, deixando os frutos quase escondidos, mas Ianthe pode sentir que havia centenas, talvez milhares de limões pendendo entre as folhas. Todos aqueles limões, pensou, a enfermeira Dew diria que eles quase lhe davam arrepios. Para além dos bosques de limoeiros, pode enxergar o mar, o que a reconfortou, pois além do mar ficavam a Inglaterra, a sua casinha, a biblioteca e John.”

 

 

Em: Uma relação imprópria, Barbara Pym, tradução de Isabel Paquet de Araripe, Rio de Janeiro, Editora Record: 1982, p. 143

 

 

 

 





A chegada da primavera, texto de Olga Tokarczuk

30 08 2023

Pessoa lendo na paisagem, 2005

Erni Kwast (Holanda, 1959)

 

 

 

“Os primeiros indícios da primavera ainda não tinham chegado à cidade. Ela deveria ter se acomodado nos arredores, nas hortas das chácaras, nos vales dos riachos, como as tropas inimigas antigamente. Sobre os paralelepípedos, o inverno deixou um monte de areia usada para cobrir as calçadas escorregadias, e agora, ao sol, empoeirava tudo e sujava os sapatos primaveris recém-tirados do armário. Os canteiros municipais estavam debilitados e os gramados sujos de fezes de cães. Nas ruas passavam pessoas com um aspecto acinzentado e olhos semicerrados. Pareciam grogues. Formavam filas em frente aos caixas eletrônicos, para tirar de lá um valor de vinte zlotys, exatamente o valor necessário para se alimentar durante um dia. Estavam com pressa para chegar ao posto de saúde, pois tinham uma consulta marcada para as 13h35, ou estavam a caminho do cemitério para trocar as flores de plástico do inverno pelos narcisos naturais da primavera.”

Em: Sobre os ossos dos mortos, Olga Tokarczuk, tradução de Olga Baginska-Shinzato,  São Paulo, Todavia: 2020, p.118





Uma questão de autoria? texto de Umberto Eco

15 04 2023

No. 217, 1998

Davi dalla Venezia (Itália, 1965)

óleo sobre tela, 162 x 130 cm

 

“Um amigo de infância que não encontrava havia anos me escreveu após a publicação do meu segundo romance, O pêndulo de Foucault: “Caro Umberto, não me recordo de ter-lhe contado a história patética do meu tio e da minha tia, mas acho que você foi muito indiscreto ao usá-la em seu romance.” Bem, no meu livro eu conto alguns episódios envolvendo um certo Tio Charles e uma certa Tia Catherine, que na história são os tios do protagonista, Jacopo  Belbo. É verdade que essas pessoas de fato existiram. Com algumas alterações, eu estava contando uma história da minha infância envolvendo um casal de tios meus — mas é claro que eles tinham nomes diferentes dos personagens. Respondi ao meu amigo dizendo que o Tio Charles e a Tia Catherine eram meus parentes, e não dele (e, portanto, os direitos autorais eram meus), e que eu nem sequer sabia que  ele tivesse um tio ou uma tia. Meu amigo se desculpou: deixara-se envolver tanto pela história que achou que havia identificado certos incidentes ocorridos com seus tios — o que não é impossível, pois em tempo de guerra (o período ao qual remontavam minhas lembranças) coisas semelhantes podem acontecer a diferentes tios e tias.

O que acontecera com meu amigo? Ele buscara na minha história algo que estava, isto sim, na sua lembrança pessoal. Não estava interpretando meu texto, mas usando-o. Não é propriamente proibido usar um texto para sonhar acordado, e todos nós o fazemos com frequência — mas não é uma questão pública. Usar um texto dessa maneira significa mover-se nele como se fosse nosso diário íntimo.”

 

Em: Confissões de um jovem romancista, Umberto Eco, tradução de Clóvis Marques, Rio de Janeiro, Record: 2018, p. 33





Carnaval, texto de Marques Rebêlo

6 02 2023

Claudio Faciolli - Carnaval no Rio de Janeiro - o.s.e - ass. c.i.e - datado de 2010 med 46x61 cmCarnaval no Rio de Janeiro, 2010

Claudio Faciolli (Brasil, 1955)

óleo sobre eucatex, 46, x, 61 cm

[25 de fevereiro de 1938]

“A minha estreia nos salões do High-life foi com Clotilde, de odalisca, (Zuza ficara de serviço),  e Tatá nos acompanhava sem companheira, meio chateado — tivera uma rusga com Dulce Sampaio, que aceitara por despique um convite para o Clube Naval. Mas desacompanhado não entrou. Nas imediações da bilheteria e da porta de entrada, aglomerava-se uma pequena legião de mulheres se oferecendo, com maior ou menor agressividade, para completar o ingresso que dava direito a uma dama — mascaradas, todas, na maioria gordas, de pijama, de dominó de surradas roupas masculinas, com luvas para esconder a denunciadora evidência das mãos, e ventarola abanando o rosto sufocado pela máscara de pano, de papelão, de tela metálica. Tatá, com o ingresso na mão, rodou uma perfunctória e despreciativa olhada e escolheu o desbotado dominó carmezim:

— Vamos, vovó!

A escolhida fez que não entendeu, tomou-lhe o braço numa forçada mesura, e entramos, as luzes profusas, a ornamentação oriental, faixas e correntes de papel de seda cruzando o teto de estuque das três salas térreas, que mais tarde, numa abolição gradativa das paredes de pau a pique, se transformaram num único salão, e logo nos perdemos, só nos encontrando de espaço em espaço, ora no capricho das danças, ora nos breves intervalos da música, à beira do bufê, entornando a sua cerveja “gelada como rabo de foca”, ou sentado, descansando, na incômoda borda de cimento dos canteiros. No penúltimo encontro, diante do repuxo que irradiava rumor de esguincho e frescura, já se descartara do dominó carmezim. Aderira à cigana sem máscara, e soprou-me:

— Bofe por bofe, este não é antediluviano…

Realmente era jovem, mas feia e maltratada, o nariz de cavalete, os pés de lancha com sujos coscorções, um descomunal dente de ouro. E com ela é que saiu, depois do furioso galope final, com destino ao seu quartinho da Rua Taylor, cercado de prostíbulos, como ele dizia, por todos os lados, exíguo como um ovo, mas onde conseguira prodigiosamente encaixar uma mesa redonda, na qual domingueiramente pegava uns pacas no pôquer, acolitado por Miguel, sem que isto, honra lhe seja prestada, implicasse em combinação e trapaça — era um viciado bafejado por uma sorte invulgar.

Os corpos se colavam na promiscuidade, a poeira cegava os olhos, o calor sufocava, a música estrondava, os gestos de incontida lubricidade tomavam as mãos, as brigas se sucediam. O éter era cheirado à solta. Contra as paredes formava-se um lambrim de gente de lenço no nariz, alguns desequilibrando-se iam cair no meio dos dançarinos, que continuavam, tendo o cuidado apenas de contornar o corpo estendido como se recortassem uma figura no chão. De vez em quando, o estouro duma lança-perfume e o grito:

— Oh, que pena!

Clotilde era imitativa:

— Deixe eu cheirar um pouco.

— Para quê?  Bobagem!

— Que bobagem! É gostoso… friozinho… danado de bom!

— Não cheira não.

— Uma prise só…

Acabou cheirando. Acabei cheirando também, curioso e foi uma sensação angustiante, como se tivesse bolas girando dentro de mim, bolas frias, dum perfume enjoado de jasmim, se entrechocando. Parei na experiência:

— Não convence não.

Clotilde prosseguiu, esvaziou o tubo, quis outro sem que eu o desse, os olhos ficaram injetados, custou a se recompor. Quando chegamos no quarto da Rua Barroso, o sol já nascera e ela estava indócil, excitadíssima.

— E se o Zuza chegar duma hora para outra? Olha que o serviço termina às seis horas…

— Dane-se!”

Em: O trapicheiro, Marques Rebelo, 1º volume de O Espelho Partido, São Paulo, Martins: 1959, 1ª edição, numerada,  p. 347-348.





Sublinhando…

13 10 2022

Leitura

Washington Magueta (Brasil, 1942)

óleo sobre tela, 23 x 27 cm

 

 

“Anos mais tarde, tentando cumprir o sonho de poeta, escrevi Terraplanagem, um poema incompleto como os outros. Levei uma vida até descobrir que a incompletude terá sido o meu único dom poético.”

 

 

 

Em: Eliete: a vida normal, Dulce Maria Cardoso, Kindle Edition: 2022





Sublinhando…

9 10 2022

Jovem lendo

Vera Alabaster (GB, 1889–1964)

Harbour Cottage Gallery

 

“O convívio social tem o grande mérito de abrandar a idiotice do casal que não conversa, jamais descobre que não tem muitas afinidades. A companhia do outro tem o mesmo efeito da aposentadoria para as pessoas da classe média, ou seja, causa divórcio.”

 

Em: Esnobes, Julian Fellowes, tradução de Beatriz Horta, Rio de Janeiro, Fabrica 231: 2016, p.164.





Palavras para lembrar

5 10 2022

Atualizando-se, 2021

Anna Reznikova (Chipre, contemporânea)

óleo sobre tela, 60 x 50 cm

 

“Ler…

é ir a algum lugar sem precisar pegar um trem ou navio, desvendar mundos novos e incríveis. É viver uma vida que você não nasceu para viver e uma chance de ver algo colorido pela perspectiva de outra pessoa. É aprender sem ter que enfrentar as consequências dos fracassos, é aprender como ter sucesso da melhor maneira.”

 

 

Em: A última livraria de Londres de Madeline Martin, tradução de Simone Reisner, Kindle edition, 2022.





O crime, José Américo de Almeida

1 09 2022

A leitora, 1901

Auguste Frederic Dufaux (Suiça,1852-1943)

óleo sobre tela

 

O crime

 

Morava no engenho uma mulher por nome Josefa, conhecida como feiticeira. Tinha três filhos homens: João Duda, Antônio Cuíca e Felizardo, o melhor cortador de cana, que voltou da cidade, num dia de feira, em toda carreira, com a polícia no encalço. Chegando,gritou de longe para meu pai dizendo que acabara de cometer um crime e pedindo proteção. Matara Mesquece, um vendedor de cocada, por uma questão de troco.

Meu pai negou-lhe asilo.  Não admitia criminoso em sua terra, mas nesse dia não jantou e dormiu tarde.

Veio o comandante do destacamento, tenente Moreirinha, e pediu licença para correr a propriedade. Contrariando a tradição de inviolabilidade dos engenhos, meu pai permitiu.

Além de varejar todas as casas, a polícia surrou a mãe do assassino e sua cunhada, mulher de Antônio Cuíca, o que causou indignação a meu pai.

Diziam os moradores que, com a diligência na ilharga, Felizardo tornara-se invisível por ter virado a camisa pelo avesso.  Fugiu e homiziou-se numa usina em Pernambuco, só voltando a Areia depois de prescrito o crime.

 

Em: Memórias: antes que me esqueça, José Américo de Almeida, Rio de Janeiro, Francisco Alves: 1976, pp. 60-61





“Garden-parties” antes da Primeira Guerra Mundial, texto Agatha Christie

15 08 2022

Leitura de verão

John Michael Carter (EUA, 1950)

óleo sobre tela

 

 

“Os garden-parties antes de 1914 eram algo que merecia ser recordado. Todo mundo se vestia com muita elegância, de sapatos de salto alto, vestidos de musselina com faixas, grandes chapéus de palha italiana com rosas pendentes. Os sorvetes  eram deliciosos- de morango, de baunilha, de pistache, de laranja e de framboesa, à escolha — além de várias espécies de doces e de creme de leite, sanduíches, uvas moscatel, e de uma variedade de pêssegos sem penugem.  Desses pormenores deduzo que os garden-parties eram quase sempre dados no mês de agosto.  Não me recordo de servirem morangos com creme de leite.  É claro que não era fácil chegar ao porto.  Os que não dispunham de carruagem, se eram idosos ou inválidos, alugavam uma; a gente moça, porém, caminhava uma milha e meia ou duas milhas e vinha de diferentes pontos de Torquay; alguns tinham a sorte de morar perto, outros moravam bastante afastados, porque Torquay é construída sobre sete colinas. Não há dúvida de que caminhar por uma colina em cima de saltos altos, segurando a longa saia na mão esquerda, o chapéu de sol na direita, era uma provação.  Mas valia a pena ir ao Garden party.”

 

Em: Autobiografia, Agatha Christie, tradução de Maria Helena Trigueiros,  Rio de Janeiro, Nova Fronteira: 1979, p. 112

 

Uma festa de jardim, na França, c. 1900