A planta preciosa, de Christoph von Schmid

14 06 2025

A caminho do mercado

Demetrio Cosola (Itália, 1851-1895)

óleo sobre tela, 36 x 50 cm

 

A planta preciosa

 

Christoph von Schmid

 

Duas empregadas, Maria e Margarida, levavam cada, uma cesta, bem pesada: uma resmungava o tempo todo reclamando do peso de sua carga; a outra se ria e fazia graça como se a dela fosse leve.

— Como você pode rir? – perguntou Margarida; sua cesta é tão pesada quanto a minha, e você não é mais forte do que eu.

— É porque, na minha, coloquei uma pequena planta que diminui o peso, respondeu Maria.

— Por favor, me diga, Maria, que planta é essa? Eu queria também ter para aliviar o peso de minha cesta.

Maria responde:

— A planta, tão preciosa que transforma todos os fardos em pesos leves, é a paciência.

-x-

Traduzido do francês, por Ladyce West ©Rio de Janeiro, 2025

 

 

Christoph von Schmid nasceu na Alemanha em 1768 e faleceu em 1854.  Foi um dos primeiros a escrever contos para crianças.  Suas histórias, anedotas, diálogos, são lidos até hoje pelas crianças europeias, principalmente na França, na Alemanha e na Inglaterra. Sua obra está traduzida para muitos idiomas e publicada com ou sem ilustrações, dependendo da idade para qual suas mais de trezentas publicações forem apropriadas. Ele também adaptou lendas locais para contos. Ele foi um dos primeiros escritores a se preocupar com o ensino de valores para crianças. 





Um grande português, conto de Fernando Pessoa

4 06 2025
Ilustração anônima do século XIX.

Perdi recentemente cinquenta reais de uma velha maneira, num conto do vigário.  Como o engodo foi no quarteirão em que moro, a cores e viva voz, cheguei ao meu edifício comentando com o porteiro chefe que havia sido lesada por um bom vendedor.  Ele é muito bom, competente, morando no Rio de Janeiro há mais de 25 anos, vindo da Paraíba.  No entanto, a expressão ‘conto do vigário ele desconhecia.  Expliquei. Mas com a explicação, história perde muito da graça. Minha postura estava entre a pessoa que ri de si mesma e a vergonha de considerando-me tão ‘experiente’ que jamais cairia numa bobagem tão óbvia. 

Em casa, procurei a origem da expressão ‘conto do vigário’. Há muitas.  Muitas mesmo.  Minha pesquisa me deixou com uma única certeza a expressão já estava em uso, no Brasil, no inicio do século XIX. Mas aparentemente já estava em existência em Portugal. Nessa aventura literária, conheci o conto de Fernando Pessoa, Um grande português. Eu não conhecia nenhum conto do poeta português. Continuo o considerando um excelente poeta, entre os maiores da nossa língua. Nesse conto Pessoa nos dá outra possibilidade para a expressão.  Aqui está para seu deleite.

 

Um grande português

 

Fernando Pessoa

 

Vivia há já não poucos anos, algures, num concelho do Ribatejo, um pequeno lavrador, e negociante de gado, chamado Manuel Peres Vigário.

Da sua qualidade, como diriam os psicólogos práticos, falará o bastante a circunstância que dá princípio a esta narrativa.

Chegou uma vez ao pé dele certo fabricante ilegal de notas falsas, e disse-lhe: «Sr. Vigário, tenho aqui umas notazinhas de cem mil réis que me falta passar.

O senhor quer? Largo-lhas por vinte mil réis cada uma.». «Deixa ver», disse o Vigário; e depois, reparando logo que eram imperfeitíssimas, rejeitou-as: «Para que quero eu isso?», disse; «isso nem a cegos se passa.» O outro, porém, insistiu; Vigário cedeu um pouco regateando; por fim fez-se negócio de vinte notas, a dez mil réis cada uma.

Sucedeu que dali a dias tinha o Vigário que pagar a uns irmãos, negociantes de gado como ele, a diferença de uma conta, no valor certo de um conto de réis.

No primeiro dia da feira, em a qual se deveria efectuar o pagamento, estavam os dois irmãos jantando numa taberna escura da localidade, quando surgiu pela porta, cambaleando de bêbado, o Manuel Peres Vigário. Sentou-se à mesa deles, e pediu vinho. Daí a um tempo, depois de vária conversa, pouco inteligível da sua parte, lembrou que tinha que pagar-lhes. E, puxando da carteira, perguntou se se importavam de receber tudo em notas de cinquenta mil réis. Eles disseram que não, e, como a carteira nesse momento se entreabrisse, o mais vigilante dos dois chamou, com um olhar rápido, a atenção do irmão para as notas, que se via que eram de cem.

Houve então a troca de outro olhar.

O Manuel Peres, com lentidão, contou tremulamente vinte notas, que entregou. Um dos irmãos guardou-as logo, tendo-as visto contar, nem se perdeu em olhar mais para elas. O Vigário continuou a conversa, e, várias vezes, pediu e bebeu mais vinho.

Depois, por natural efeito da bebedeira progressiva, disse que queria ter um recibo. Não era uso, mas nenhum dos irmãos fez questão. Ditava ele o recibo,disse, pois queria as cousas todas certas. E ditou o recibo — um recibo de bêbado, redundante e absurdo: de como em tal dia, a tais horas, na taberna de
fulano, e «estando nós a jantar» (e por ali fora com toda a prolixidade frouxa do bêbado. . .), tinham eles recebido de Manuel Peres Vigário, do lugar de qualquer coisa, em pagamento de não sei quê, a quantia de um conto de réis em notas de cinquenta mil réis. O recibo foi datado, foi selado, foi assinado. O Vigário meteu-o na carteira, demorou-se mais um pouco, bebeu ainda mais vinho, e daí a um tempo foi-se embora.

Quando, no próprio dia ou no outro, houve ocasião de se trocar a primeira nota, o que ia a recebê-la devolveu-a logo, por escarradamente falsa, e o mesmo fez à segunda e à terceira. . . E os irmãos, olhando então verdadeiramente para as notas, viram que nem a cegos se poderiam passar. Queixaram-se à polícia, e foi chamado o Manuel Peres, que, ouvindo atónito o caso, ergueu as mãos ao céu em graças da bebedeira providencial que o havia colhido no dia do pagamento. Sem isso, disse, talvez, embora  inocente, estivesse perdido.

Se não fosse ela, explicou, nem pediria recibo, nem com certeza o pediria como aquele que tinha, e apresentou, assinado pelos dois irmãos, e que provava bem que tinha feito o pagamento em notas de cinquenta mil réis. «E se eu tivesse pago em notas de cem», rematou o Vigário, «nem eu estava tão bêbado que pagasse vinte, como estes senhores dizem que têm, nem muito menos eles, que são homens honrados, mas receberiam.» E, como era de justiça, foi mandado em paz.

O caso, porém, não pôde ficar secreto; pouco a pouco se espalhou. E a história do «conto de réis do Manuel Vigário» passou, abreviada, para a imortalidade quotidiana, esquecida já da sua origem. Os imperfeitíssimos imitadores, pessoais como políticos, do mestre ribatejano nunca chegaram, que eu saiba, a qualquer simulacro digno do estratagema exemplar. Por isso é com ternura que relembro o feito deste grande português, e me figuro, em devaneio, que, se há um céu para os hábeis, como constou que
o havia para os bons, ali lhe não deve ter faltado o acolhimento dos próprios grandes mestres da Realidade — nem um leve brilho de olhos de Macchiavelli ou Guicciardini, nem um sorriso momentâneo de George Savile, Marquês de Halifax.

 

— X —

(1926)





Missa do Galo, conto de Machado de Assis, texto integral, em domínio público

9 12 2024

Jardim lateral de igreja

Yoshiya Takaoka (Japão-Brasil, 1909- 1978)

óleo sobre tela, 40 X 50 cm

 

Missa do galo

(texto integral)

 

Machado de Assis

 

 

Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.

A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranqüilo, naquela casa assobradada da rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça; mas, afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito direito.

Boa Conceição! Chamavam-lhe “a santa”, e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar.

Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver “a missa do galo na Corte”. A família recolheu-se à hora do costume; eu meti-me na sala da frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria outra, a terceira ficava em casa.

– Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? perguntou-me a mãe de Conceição.

– Leio, D. Inácia.

Tinha comigo um romance, os Três Mosqueteiros, velha tradução creio do Jornal do Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D’Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de Conceição.

– Ainda não foi? Perguntou ela.

– Não fui; parece que ainda não é meia-noite.

– Que paciência!

Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da a1cova. Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza:

– Não! qual! Acordei por acordar.

Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado no sono. Essa observação, porém, que valeria alguma coisa em outro espírito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não afligir ou aborrecer. Já disse que ela era boa, muito boa.

– Mas a hora já há de estar próxima, disse eu.

– Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho! Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu.

– Quando ouvi os passos estranhei; mas a senhora apareceu logo.

– Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros.

– Justamente: é muito bonito.

– Gosta de romances?

– Gosto.

– Já leu a Moreninha?

– Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.

– Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem lido?

Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos.

– Talvez esteja aborrecida, pensei eu.

E logo alto:

– D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu…

– Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio; são onze e meia. Tem tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia?

– Já tenho feito isso.

– Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha.

– Que velha o quê, D. Conceição?

Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranquilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou consertando a posição de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas ideias; tornou ao espanto de me ver esperar acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na Corte, e não queria perdê-la.

– É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem.

– Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na Corte é mais bonita que na roça. São João não digo, nem Santo Antônio…

Pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas, as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muitos claros, e menos magros do que se poderiam supor. A vista não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras coisas que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, sem saber por quê, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, ela reprimia-me:

– Mais baixo! Mamãe pode acordar.

E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido; cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais; ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou; trocou de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceição disse baixinho:

– Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no sono.

– Eu também sou assim.

– O quê? Perguntou ela inclinando o corpo para ouvir melhor.

Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti a palavra. Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves.

– Há ocasiões em que sou como mamãe: acordando, custa-me dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me, e nada.

– Foi o que lhe aconteceu hoje.

– Não, não, atalhou ela.

Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo, em criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela missa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela inventava outra pergunta ou outra matéria, e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me:

– Mais baixo, mais baixo…

Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da parede.

– Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros.

Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio deste homem. Um representava “Cleópatra”; não me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me pareciam feios.

– São bonitos, disse eu.

– Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro.

– De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.

– Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o que eu penso; mas eu penso muita coisa assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se pode pôr na parede, nem eu quero. Está no meu oratório.

A ideia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava das suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de passeio, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando cansou do passado, falou do presente, dos negócios da casa, das canseiras de família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos.

Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra da mesma atitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes.

– Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se falasse consigo.

Concordei, para dizer alguma coisa, para sair da espécie de sono magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a idéia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo.

Chegamos a ficar por algum tempo, – não posso dizer quanto, – inteiramente calados. O rumor único e escasso, era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de sonolência; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: “Missa do galo! missa do galo!”

– Aí está o companheiro, disse ela levantando-se. Tem graça; você é que ficou de ir acordá-lo, ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus.

– Já serão horas? perguntei.

– Naturalmente.

– Missa do galo! repetiram de fora, batendo.

-Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus; até amanhã.

E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor dentro, pisando mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto à conta dos meus dezessete anos. Na manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido.

*****





O vaivém, Lindolfo Gomes

22 04 2024

 

 

 

O vaivém

 

Lindolfo Gomes

 

Era um dia um velho chamado Zusa, que trabalhava pelo ofício de carapina. A sua oficina era um brinco, sempre muito asseada, a ferramenta muito limpa, tudo nos seus lugares.

 

Mas a mania do velho era batizar cada ferramenta com um nome apropriado. O martelo chamava-se toc-toc, o formão, rompe-ferro, o serrote, vaivém.

 

Quando um carapina do lugar precisava de uma, corria logo à oficina do Zusa, a pedir-lhe de empréstimo.

 

Mas, tantas lhe fizeram, demorando a entrega ou ficando com as ferramentas algumas vezes, que o velho resolveu parar com os empréstimos.

 

Certo dia foi à oficina um menino, de mando dopai, e disse:

 

— Papai manda-lhe muitas lembranças e também pedir-lhe emprestado o vaivém.

 

Mestre Zusa pôs as cangalhas no nariz e respondeu:

 

— Menino, volta e diz a teu pai que se vaivém fosse e viesse, vaivém ia, mas como vaivém vai e não vem, vaivém não vai.

 

 

 

Em: Contos Populares Brasileiros, São Paulo, Melhoramentos: 1965, p. 36





A aranha e as uvas, fábula de Leonardo da Vinci

8 12 2020
Lloyd Nelson Grofe (EUA, 1900-1978), Capa da Nature Magazine, Vol. 16 nº4, Outubro, 1930.

Você encontrará neste blog diversas fábulas de Leonardo da Vinci.  Além de grande pintor, arquiteto e cientista, o gênio da Renascença italiana também ficou conhecido por sua arte de conversar, de contar histórias.  Também escreveu e anotou fábulas e contos populares, lendas e anedotas, organizando-as em volumes diversos.   Algumas dessas lendas foram traduzidas por Bruno Nardini e publicadas no Brasil em 1972.  Transcrevo aqui a fábula  A aranha e as uvas do volume de Leonardo chamado: Fábulas, Atl. 67 v.b.)  Em: Fábulas e lendas, Leonardo da Vinci, São Paulo, Círculo do Livro: 1972, p.31.

A fábula de hoje, tem uma moral conhecida nossa, sabedoria popular, vinda da tradição latina através de Portugal: Quem o mal deseja a seu vizinho, vem o seu pelo caminho.

 

A aranha e as uvas

 

Uma aranha observou durante dias a fio os movimentos dos insetos, e notou que as moscas ficavam em torno de um grande cacho de uvas muito doces.

— Já sei o que fazer, disse ela para si mesma.

Subiu para o alto da parreira e, por meio de um tênue fio, desceu até o cacho de uvas, onde instalou-se num pequenino espaço entre duas frutas.

De dentro do esconderijo começou a atacar as pobres moscas que vinham em busca de alimento. Matou muitas delas, pois nenhuma suspeitava que houvesse ali uma aranha.

Porém em breve chegou a época da colheita.

O fazendeiro foi para o campo, colheu o cacho de uvas e atirou-o para dentro de uma cesta, na qual se viu espremido junto com outros cachos.

As uvas foram a armadilha fatal para a aranha impostora, que morreu exatamente como as moscas que enganara.





O touro e o homem, conto tradicional do Brasil, coletado por Luiz da Câmara Cascudo

10 01 2020

 

 

 

BENJAMIM SILVA (CE 1927) Bois no pasto - Óleo s tela 54 x 66 cm. ass. inf. direito e verso 1955Bois no pasto, 1955

Benjamim Silva (Brasil, 1927) Bois no pasto

óleo sobre tela 54 x 66 cm

 

 

O touro e o homem

 

Um touro, que vivia nas montanhas, nunca tinha visto o homem. Mas sempre ouvia dizer por todos os animais que era ele o animal mais valente do mundo. Tanto ouviu dizer isto que, um dia, se resolveu a ir procurar o homem para saber se tal dito era verdadeiro. Saiu das brenhas, e, ganhando uma estrada, seguiu por ela. Adiante encontrou um velho que caminhava apoiado a um bastão.

Dirigindo-se a ele perguntou-lhe:

— Você é o bicho homem?

— Não! — respondeu-lhe o velho — já fui, mas não sou mais!

O touro seguiu e adiante e encontrou uma velha:

— Você é o bicho homem?

— Não! — Sou a mãe do bicho homem!

Adiante encontrou m menino:

— Você é o bicho homem?

— Não! — Ainda hei de ser; sou o filho do bicho homem.

Adiante encontrou o bicho homem que vinha com um bacamarte no ombro.

— Você é o bicho homem?

— Está falando com ele!

— Estou cansado de ouvir dizer que o bicho homem é o mais valente do mundo, e vim procurá-lo para saber se ele é mais do que eu!

— Então, lá vai! — disse o homem armando o bacamarte, e disparando-lhe um tiro nas ventas..

O touro desesperado de dor, meteu-se no mato e correu até sua casa, onde passou muito tempo se tratando do ferimento.

Depois, estando ele numa reunião de animais, um lhe perguntou:

— Então, camarada touro, encontrou o bicho homem?

— Ah! meu amigo, só com um espirro que ele me deu na cara, olhe o estado em que fiquei!

 

 

Em: Contos Tradicionais do Brasil (folclore) de Luís da Câmara Cascudo, Rio de Janeiro, Ediouro:1967. pp 289-90.

 

 





As Garças, fábula de Leonardo da Vinci

20 06 2015

 

 

egret-lyse-anthonyGarça

Lyse Anthony (EUA, contemporânea)

aquarela, 24 x 16 cm

Lyse Anthony

 

 

 

Mais uma fábula de Leonardo da Vinci.  Quem  segue este blog  já sabe que além de grande pintor, arquiteto e cientista, o gênio da Renascença italiana também ficou conhecido por sua arte de conversar, e também de contar histórias.  Leonardo escreveu e anotou fábulas e contos populares, lendas e anedotas, organizando-as em volumes diversos.   Algumas dessas lendas foram traduzidas por Bruno Nardini e publicadas no Brasil em 1972.  Transcrevo aqui a fábula  As Garças do volume de Leonardo chamado: Lendas, H. 9r.)  Em: Fábulas e lendas, Leonardo da Vinci, São Paulo, Círculo do Livro: 1972, p. 42

 

 

As Garças

 

O rei era um bom rei, porém tinha muitos inimigos. As garças, leais e fiéis, estavam preocupadas. Havia sempre a possibilidade, principalmente à noite, dos inimigos cercarem o palácio e aprisionarem o rei.

— Que devemos fazer? pensaram elas. — Os soldados, que deveriam estar de guarda, estão dormindo. Não podemos confiar nos cães, pois estão sempre caçando e sempre cansados.  Nós é que temos que guardar o palácio e deixar nosso rei dormir em paz.

Então as garças decidiram tornarem-se sentinelas. Dividiram-se em grupos,  cada grupo zelava por uma área, com mudanças de guarda em horas determinadas.

O grupo maior postou-se no prado que cercava o palácio. Outro grupo colocou-se do lado de fora de todas as portas. E o terceiro decidiu ficar no quarto do rei, a fim de vigiá-lo o tempo todo.

— E se nós adormecermos? perguntaram algumas garças.

— Temos um modo de evitar adormercermos, respondeu a mais velha de todas. — Cada uma de nós vai ficar segurando uma pedra com o pé que estiver levantado enquanto permanecermos paradas. Se uma de nós dormir, a pedra cairá no chão e o barulho a acordará.

Todas as noites, desde então, as garças vigiam o palácio, mudando a guarda de duas em duas horas. E nenhuma, ainda, deixou cair a pedra.





O califa e o ancião, texto de Latino Coelho

21 10 2014

 

 

an_arab_horseman-large 13Um cavaleiro árabe, 1865

Gustave Boulanger (França, 1824-1888)

óleo sobre tela

Coleção Particular

 

O Califa e o Ancião

Latino Coelho

 

Ia o califa Harum-al-Raschid por um campo, aonde andava a folgar à caça, quando sucedeu de passar por pé dum homem já muito velho, que estava a plantar uma nogueirinha. Então disse o califa aos do seu séquito:
— “Em verdade, bem louco deve ser este homem em estar a plantar agora esta nogueira, como se estivesse no vigor da mocidade, e contasse como certo vir a gozar dos frutos desta planta.” Indo-se então o califa em direitura ao velho, perguntou-lhe quantos anos tinha. “– Para cima de oitenta”, respondeu o velho; “mas, Deus seja louvado, sinto-me ainda tão robusto e saudável, como se tivesse apenas trinta.” “– Sendo assim”, redarguiu o califa, quanto pensas tu que ainda hás de viver, pois que nessa idade já tão adiantada estás a plantar uma árvore que por natureza só daqui a largos anos dará fruto?” “– Senhor, disse o velho, tenho grandes contentamentos em a estar plantando, sem inquirir se serei eu ou outros atrás de mim quem lhe colherá os frutos. Assim como nossos pais trabalharam por nos legar as árvores que nós hoje desfrutamos, assim é justo que deixemos outras novas, com que nossos filhos e netos venham a utilizar-se e a enriquecer-se. E, se hoje nos sustentamos dos frutos do seu trabalho e se foram nossos pais tão cuidadosos do futuro, como havemos de retribuir em desamor aos nossos filhos o que de nossos pais recebemos em carinho e previdência ? Assim, semeia o pai para que o filho possa vir a colher.”

 

[Exemplo de narrativa demonstrativa]

 

Em: Flor do Lácio,[antologia]  Cleófano Lopes de Oliveira, São Paulo, Saraiva: 1964; 7ª edição. (Explicação de textos e Guia de Composição Literária para uso dos cursos normais e secundário) p. 201

 

Texto usado hoje em alguns colégios no 6º ano do ensino fundamental.





Como o homem perdeu a juventude eterna, lenda Africana

4 09 2014

 

 

emery-franklin, positive thinking, ost,Pensamento Positivo, 2010

Emery Franklin (EUA, contemporâneo)

óleo sobre tela

 

 

Como o homem perdeu a juventude eterna

 

O deus Rwan* havia decretado que o homem deveria mudar de pele como a cobra e virar jovem quando chegasse a uma idade avançada. “Mas ninguém do seu povo pode vê-lo quando você deixar a pele para trás, você precisa estar sozinho neste momento. E se seu filho ou neto o vir, naquele mesmo instante você morrerá e não será salvo de novo.

Quando o homem mais velho se tornou um ancião, soube que a hora havia chegado para trocar de pele, e mandou que sua neta lhe trouxesse água em uma cabaça, no fundo da qual ele havia feito muitos pequenos furos, para que ela se visse forçada a ficar bastante tempo longe dali. Mas, ela tapou os buracos, e retornou logo depois, surpreendendo-o no meio da troca de pele. Nesse momento ele gritou: “Eu morri, vocês todos morrerão, eu morri, vocês todos irão morrer. Isso porque você, minha neta, entrou aqui quando eu jogava fora a minha pele. Serei castigado, você também!”

Depois disso o povo levou a jovem para a floresta. Mais tarde ela se casou e teve filhos. Estes são os babuínos e os macacos, gorilas e os macacos Colobus; e os babuínos e seus semelhantes são por isso chamados “Povo da Floresta” ou “Filhos da maldição“.

*****

[Djaga, Kilimanjaro]

Djaga.8

 

* Também conhecido como Ruwa.

 

 

 

Em: African Myths and Tales, Susan Feldmann,  Nova York, Dell: 1970, p.120.

[Tradução minha]





O Príncipe, conto de Wilson W. Rodrigues, uso escolar

27 08 2014

 

WTBendaIlustração de W.T. Benda para capa da revista LIFE de agosto de 1923.

 

 

O Príncipe

 

Wilson W. Rodrigues

 

 

As feições do príncipe eram desconhecidas.

Jamais alguém vira o seu rosto.

Em sua corte trabalhavam os artesãos mais hábeis, os melhores desenhistas, as costureiras mais famosas.

A observação era invariável:

— É preciso que essa máscara fique mais bela; do contrário, o Príncipe recusará.

As máscaras deviam ser sempre mais belas, pois, desde menino, o Príncipe usava todos os dias, uma nova máscara.

Dir-se-ia que elas o fascinavam, pois sempre parecia feliz.

Um dia, quando tomava parte numa caçada, o Príncipe afastou-se de sua gente e se perdeu.

Pela noite inteira, ninguém o encontrou.

De manhã, quando cruzava o vale, o Príncipe avistou uma donzela que voltava da fonte, bilha ao ombro.

Estava sedento, pediu:

— Posso beber da tua bilha?

A jovem reconheceu o Príncipe Mascarado, e com galanteria ofereceu:

Só se beberes na concha das minhas mãos.

O Príncipe desmontou. Em terra, curvou-se; nesse instante, ela, num gesto tão rápido quanto impensado, arrancou-lhe a máscara, e deu um grito de espanto.

— Sou tão feio assim?

— Não. Tu és mais belo que todas as tuas máscaras.

 *****

Em: Contos do Rei do Sol, Wilson W. Rodrigues, Rio de Janeiro [Estado da Guanabara], Editora Torre: s/d, pp: 21-26