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Um funeral em aldeia da Bretanha, 1891
Charles Sprague Pearce (EUA, 1851-1914)
óleo sobre tela
Danforth Art Museum, Massachusetts
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Quando o pintor americano Charles Sprague Pearce dedicou a tela acima a um funeral em um aldeia francesa no final do século XIX, ele se manteve fiel à pintura de gênero, mostrando, a quem observasse sua tela, a maneira diferente dos franceses na despedida de um ser querido. Rituais de nascimento, morte, casamento, diferem muito de cultura para cultura. E se analisados podem refletir valores culturais que não são vistos pelo turista ou até mesmo o residente estrangeiro inserido naquela cultura, se este não estiver ligado por laços familiares ao local onde vive.
Fui ver recentemente o filme americano Álbum de família [August: Osage County]. Gostei muito, mas essa não é uma postagem sobre o filme. É uma postagem sobre os rituais da morte nos Estados Unidos, porque muitas das pessoas com quem conversei depois do filme mostraram surpresa e acharam o filme anacrônico, quanto aos hábitos do luto, maneiras culturais tão diferentes aqui no Brasil.
Primeiro é preciso levar em conta duas coisas que esquecemos com facilidade. Os Estados Unidos não são Nova York, Miami e Los Angeles. Esse é um país de pequenas e médias cidades. A população não tem a nossa ambição de morar em grandes centros. A maioria dos americanos está muito feliz em morar longe das grandes metrópoles. E não deseja a mudança. Grandes cidades no país são tão estrangeiras para a maioria dos americanos quanto elas parecem a nós brasileiros que visitamos o país. Se colocarmos em números poderemos apreciar melhor. O país tem hoje cerca de 315.000.000 – trezentos e quinze milhões de habitantes. Somando-se a população das três cidades que mencionei acima, as mais visitadas por nós, brasileiros, teremos: Nova York, em 2013, 8.333.000; Miami em 2010, 400,000; Los Angeles, em 2013, 3.862.000 – Total: 12. 595.000 – vamos então adicionar mais 25% para contabilizar subúrbios e outras áreas que contam como área urbana: 15. 744.000 (arredondando). Isso não chega a 5 % da população americana. 5% na minha matemática ainda é minoria. Então qualquer experiência fora do ordinário nos hábitos culturais nesses locais não deve ser acolhida como a “verdade” americana. Com essa barreira fora do caminho, voltemos ao processo funerário nos EUA.
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Funeral na aldeia, 1872
Frank Holl (Inglaterra, 1845-1888)
óleo sobre tela
Leeds City Art Gallery, Inglaterra
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As ondas de imigrantes europeus aportando nos Estados Unidos durante o século XIX e início do século XX trouxeram homens e mulheres com uma grande preocupação — ter aquilo que lhes era negado ou difícil de obter em seus países de origem: um pedaço de terra onde pudessem plantar, colher e criar uma família, sem fome e sem pobreza.O país foi colonizado com esse sonho e por isso mesmo desde o início do assentamento, famílias foram se espalhando pelo país, pelas planícies e planaltos centrais, até chegarem à costa oeste no final do século XIX. As famílias extensas, ou seja, irmãos, tios, primos, todos os que para lá emigraram poderiam até no início permanecer no mesmo povoamento, mas à medida que oportunidades se abriam em outros lugares, pequenos núcleos familiares se mudavam cada vez para lugares mais distantes em busca do seu sustento digno. Como a entrega de cartas e pacotes já funcionava bem desde o século XVII, as famílias se mantinham em contato por cartas. Um país protestante leva vantagem quanto a alfabetização de sua população, já que a própria igreja incentiva o aprendizado, por achar imprescindível a leitura da Bíblia. Assim todos se comunicavam e sabiam dos nascimentos, dos casamentos, das mortes. Quando as estradas melhoraram, fortaleceram-se também os laços familiares. E os parentes começaram a se visitar pelo menos uma vez por ano.
Quando as povoações no meio do país, distante de tudo e todos viraram pequenos centros urbanos, já no início do século XX, cresceu também a ideia da reunião familiar para o enterro de um ente querido. Fomentada pela indústria funerária que popularizou a arte de embalsamar como uma das maneiras de se manter o defunto em boa preservação por alguns dias, a prática tornou-se padrão em solo americano. O ato de embalsamar, ainda que dispendioso, foi aceito pela maioria americana por fornecer a solução para um problema: como reunir a família para um enterro se seus membros moram em partes distantes de um país de tamanho colossal? Ganharam todos: a indústria funerária por poder vender um serviço caro; e as famílias por poderem se reunir no momento de dor e fragilidade emocional. Mas isso acarreta outros problemas: como acomodar tantos parentes? Como alimentar tanta gente? Como membros da família que não se falam se comportarão naquela ocasião de estresse emocional para todos?
Como é comum nos EUA, a solução veio com a comunidade. Vizinhos se aprumam e recebem em suas casas qualquer excedente dos parentes da família em luto. Preparam os pratos da culinária americana diária e os levam à casa do falecido. Muitas vezes se a família tem laços com a igreja ou o templo local, algumas dessas tarefas são exercidas pela comunidade religiosa. Não é para uma festa, como já ouvi muitos interpretarem, a reunião familiar com comes e bebes. É uma ocasião séria com comidas que aliviam a família e seus membros de terem que se preocupar com as tarefas do dia a dia, entre elas, a alimentação de todos: crianças, adultos, idosos, que se deslocaram para participar do enterro. Tive algumas experiências pessoais e posso afirmar que o sistema funciona.
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O funeral do camponês, 1885
Erik Werenskiold (Noruega, 1855-1938)
óleo sobre tela.
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Meu pai morreu em minha casa nos Estados Unidos, dois dias depois do Natal, enquanto me visitava: ataque cardíaco. Minha mãe não falava inglês. A série de tarefas burocráticas para trazer o corpo para o Brasil e enterrá-lo no Rio de Janeiro era grande – muitas resolvidas pela casa funerária. Mas levou tempo. Minha mãe insistia em ir a uma missa. Eu não morava numa cidade conhecida por ter uma população católica significativa. Contra a vontade de mamãe, que não podia fazer nada, esperamos dois dias para podermos ir a uma missa em espanhol. Frustração ainda maior para minha mãe. A igreja não parecia uma igreja católica, não tinha santos. Tensão entre mãe e filha bem alta. Ela não aceitava a realidade e eu não podia fazer as coisas diferentes. Nesse meio tempo, seguindo os hábitos americanos de praxe, meus sogros que já eram bem idosos e moravam a duas horas de viagem, vindos do leste chegaram para nos confortar. Meu cunhado e sua esposa, vindos de outra cidade a duas horas de viagem a oeste, também vieram. Ninguém falava português a não ser eu e minha mãe. A tradução simultânea de condolências e de perguntas e respostas está entre as muitas situações de estresse desse momento. Eu não era religiosa, nem meu marido. O apoio dos membros da igreja, tradicional nessas horas, não existia. Mas… eu tinha duas grandes amigas americanas, que saíram de suas cidades, uma a cinco horas de viagem, a outra a três horas e passaram os quatro dias seguintes ao falecimento de meu pai, comigo. Dormiram em sacos de dormir no chão da minha sala e cozinharam, limparam a casa, fizeram café da manhã, almoço, jantar… Sem M.E. e Nancy, amigas de longa data, colegas de pós graduação, mestrado, de viagens e de bagunça, sem elas, minha situação teria sido muito, mas muito mais extenuante. Quando eu, meu marido e minha mãe embarcamos para o Rio de Janeiro, 4 dias depois, eu só estava inteira por conta delas. Esta solidariedade americana sempre me impressionou.
Quando meu sogro faleceu seis anos depois, tive contato mais próximo com os hábitos americanos. Ele era muito conhecido onde morava. Não só era membro ativo da Igreja Presbiteriana, como havia sido Superintendente das Escolas do governo, primárias e secundárias, no condado. Quando o conheci era um senhor de bastante idade, meu marido sendo o caçula da família. Meu sogro vivia às voltas com livros e manuscritos em sua vasta biblioteca particular. Com um mestrado em história, fazia jus à vocação publicando e escrevendo livros da história local. Por isso mesmo era muito conhecido e conectado. Quando faleceu, meu marido e eu éramos os membros da família fisicamente mais próximos e cobrimos as duas horas de viagem de carro num relâmpago, para tomarmos as rédeas da situação. Meus cunhados moravam mais longe e quando chegaram já havíamos resolvido a maioria do que seria necessário resolver – e diga-se de passagem, minha sogra muito colaborou para isso, apoiada nas inúmeras amizades do bairro em que morava e da igreja onde era ativa participante. Meu sogro tinha 7 irmãos. Minha sogra era uma de 6 irmãos. Mesmo eliminando os irmãos que já haviam falecido são famílias grandes. O enterro foi marcado para o sábado seguinte. Não me lembro do dia da semana em que ele faleceu, mas foi no início da semana: possivelmente uma terça-feira. E a família começou a chegar. Todos os irmãos com 70- 80 ou mais anos, suas esposas, seus filhos, seus netos. Vinham de outras cidades no mesmo estado, de cidades nos estados vizinhos e de estados mais distantes. A casa de dois andares espaçosa não conseguia abrigar a todos. Todos ficaram em hotéis. E a comida começou a chegar. Pratos e pratos de sanduíches, de galinha assada, de salada de repolho, frutas, pães, bolinhos, [cupcakes (da tradição americana, não essas imitações elucubradas da culinária da moda)] frutas, frutas e frutas, leite, caixas de cereais para a refeição matinal. Duas senhoras vizinhas vieram ajudar a organizar, uma diarista que não sei quem contratou limpou a casa, trocou os lençóis das camas… Todas as mulheres entravam e saíam da cozinha de minha sogra com desenvoltura, lavando um prato, servindo suco, oferecendo um café, um chá gelado, algo para saciar a sede. Tudo o que poderíamos imaginar para o conforto dos enlutados chegou como que por milagre às mesas da cozinha, da copa e da sala de jantar. Meu papel nessa ocasião foi a de organizadora da logística. Conheci muitos parentes de meu marido que não havia tido a oportunidade de conhecer antes. E é inevitável: com dois, três ou quatro dias de convivência começam as pequenas fofocas, as grandes reconciliações, os eventos que mudarão o cenário da família daí por diante. Porque a própria morte de um dos patriarcas, nesse caso, já traz consigo, impregnada, as mudanças na família. Quando sexta-feira chegou, e havia a visita oficial ao falecido na casa funerária, marcada para ter início às 17 horas, estávamos todos lá. Sim, de luto, de preto, os homens de terno e gravata escuros, camisas brancas, também os adolescentes vestidos assim; as mulheres com roupas sóbrias, tailleurs. Meias finas qualquer que seja o calor lá fora. Sem chapéu. Chapéu só para eventos até o por do sol, à noitinha, nunca. Conversa-se muito nessa ocasião, sobriamente, aos sussurros. Com respeito. Nenhuma gargalhada, ou piada. O corpo está presente. Ninguém fica muito tempo. Mas há um livro para assinaturas que a família levará para casa como lembrança daqueles que se preocuparam em ir. É triste, circunspecto e solene.
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A ceia após o funeral, 1886
Léon Frederic (Bélgica, 1856-1940)
óleo sobre tela
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O filme Álbum de família se concentra no período após o enterro, que no caso de meu sogro foi na manhã seguinte. A esta altura todos os participantes já estão no local. Em qualquer cidade de tamanho médio ou menor os cemitérios costumam estar localizados fora do perímetro urbano e uma caravana de carros uns atrás dos outros, com seus faróis acesos, sai da igreja onde o serviço religioso foi presenciado por toda a família e pelas pessoas que irão ao cemitério. A tradição dos carros irem com seus faróis acesos para que ninguém interrompa a caravana, em geral encabeçada e finalizada por carros de polícia foi norma em todos os estados em que morei, mas não posso confirmar que seja costume no país inteiro. Tem muito a ver com o trânsito. Mas onde morei chega a fazer parte das perguntas na prova escrita para a carteira de motorista. Você não deve interromper uma dessas caravanas encabeçadas pelo carro fúnebre, liderado pela polícia, que segue em direção ao cemitério. Depois da breve cerimônia do enterro, ainda com todos os presentes vestidos de negro, homens de paletó e gravata, mulheres em luto com ou sem chapéu, todos saem em direção à casa da família enlutada. E aí participam da última ceia que farão juntos. Todos ainda com seus ternos escuros que não tiram nem para aliviar o calor. No cinema com uma amiga carioca ouvi sua surpresa quando no filme Meryl Streep pede aos homens presentes que coloquem de volta seus paletós parar sentar à mesa e rezar antes da refeição. Tal pedido teria sido apropriado à minha sogra, caso tivesse havido na família alguém com coragem de desafiar as regras do jogo. Mas como ninguém queria aborrecê-la, não houve a ocasião retratada no filme. Este talvez seja o momento de maior tensão no funeral americano. Todos já estão prontos para sair, para voltar às suas vidas normais, longe dali. Minha sogra, sabendo que provavelmente muito tempo passaria antes de voltar a ver a sobrinha que mora em outro estado, o irmão que está com a saúde fraca, e assim por diante, prolonga o almoço e começa a distribuir algumas lembranças do falecido. “Fulano, você sempre gostou dessa cadeira de balanço, aproveite que está de carro e ponha-a na mala, E., gostaria que você a tivesse”; “Sicrano, olha só, a coleção de livros “Harvard Classics” leve para casa, seus filhos podem usá-la”… e assim segue. É o lado prático que vem à tona. A família não sabe quando se encontrará de novo assim com todos os membros, e é preciso aproveitar a presença de todos. Até porque, é preciso que todos entendam o que foi dado a quem e quando. Diversos dias já se passaram desde a morte. Já houve tempo para os laços familiares se reafirmarem, quem gosta de quem e de quem não se gosta. É hora de selar as preferências. Não sei se todas as famílias são assim, mas algo semelhante certamente ocorre. Há um acerto familiar. E é justamente nestes dias pós-morte que a tensão do filme se desenrola. Há muito tempo não vejo um filme tão realista sobre a vida americana. Vale lembrar no entanto que esta é uma família com sérios problemas emocionais que não se repetem na maioria das famílias americanas. Álbum de família mostra como, talvez pela própria tensão, este momento pode trazer uma grande catarse para aqueles a quem a morte tocou de perto.