Meu pai, Celso.
O finalzinho de agosto é sempre uma época emotiva para mim. Meu irmão mais novo faleceu abruptamente no dia 30 e lá se vão 14 anos, e meu pai comemorava seu aniversário no dia 31. Este ano ele teria feito 105 anos. Morreu cedo pelos padrões atuais. Morreu há 36 anos. Ambos fazem-me falta. Em geral escrevo alguma coisa, posto uma foto, faço um aceno a ambas as datas. Este ano foi exceção. Tentei mas não consegui. Ando distraída. Muita coisa a fazer e está difícil refletir. Hoje, no entanto, uns poucos dias após essas datas, uma onda de memórias me tomou de surpresa, desencadeada por um concerto no Planetário do Rio de Janeiro celebrando os 120 anos de nascimento de Francisco Mignone, organizado por Nelson de Franco.
Quando estudava piano, tive um objetivo: queria poder tocar as valsas brasileiras em particular as de Francisco Mignone, as valsas de esquina. Cheguei a tocar umas delas mas logo desisti do piano. Foram muitos anos de aprendizado. Até pouco tempo tive piano em casa. Aprendi a tocar no piano herdado de minha avó paterna, uma excelente pianista. E até oito anos atrás, quando meu apto comportava, tive piano em casa, exceto pelos anos de estudante nos EUA. Logo que pude, já estabelecida profissionalmente, comprei um de meia cauda que muitos anos depois trouxe comigo para o Brasil. Mas não toco para esse nível. Era o meu Lamborghini na sala de casa, à maneira de Eike Batista. Hoje me lembrei da minha infância enquanto ouvia Mignone. Lembrei-me do quanto a música fez parte do meu dia a dia, nos primeiros 12 anos de vida. Porque foi na infância a decisão de estudar para tocar valsas brasileiras. Era fascinada pelas composições de Alberto Nepomuceno a Mignone, ambos entre meus compositores favoritos, mesmo naquela época. Música é como perfume. Passa por nós e é capaz de trazer aqueles momentos quase primordiais em que primeiro sentimos acordes ou perfumes específicos.
Meus pais, em Petrópolis, Museu Imperial.
Memórias são interessantes. O mesmo evento e cada participante se lembra de uma coisa diferente. Já tive discussões incríveis com meus irmãos sobre memórias de família. Sou a mais velha desta geração e por isso sinto a responsabilidade das memórias. Porque houve, na minha família, dois tipos de família: antes e depois do infarto do miocárdio de meu pai. Eu tinha 12 anos. Ele 48. Meus irmãos mais novos tinham quase 9 e 5. Eles praticamente só se lembram de meu pai de uma maneira. Enquanto, eu, me lembro do que chamo de meu pai jovem.
Meu pai jovem nadava na praia, depois da arrebentação até o perdermos de vista! Meu pai jovem era um homem alegre e apaixonado por música. Eram dele, compras suas e de mais ninguém, aqueles discos de música clássica, de ópera, de orquestras estrangeiras, discos grandes de cerâmica, antes dos long-plays, que eram guardados em álbuns; pelo menos na nossa casa eram. Meu pai, o cientista, formado em química industrial, o professor de física (formou-se em física quando eu era criança, me lembro de ir à sua formatura) era um homem de fortes emoções, contidas sob a máscara da ciência. Era também um homem que se entregava às paixões. Dessas a família se lembra de algumas: as modificações que fazia em seu carro, dos peixes de aquário e da fotografia de planta e flores. Hoje, me lembrei de seu amor pela música.
A família toda, em um Carnaval. Eu tinha oito anos e meio, meu pai 44.
Ele deveria estar feliz com as minhas aulas de piano. Ainda que não me lembre de ter dito isso um dia. Meu pai era daquele tipo antigo. Duro na queda. Jamais diria essas coisas que os pais modernos dizem: eu te amo; estou orgulhoso de você! Essas coisas de cinema americano que os pais brasileiros de hoje parecem ter adotado. Não. Papai não falava essas coisas. Era para entendermos que ele nos amava e isso era suficiente. Mas imagino que ele estivesse esperançoso com o meu aprendizado de piano – que não me foi imposto, foi pedido por mim. Digo isso porque fui com ele inúmeras vezes a alguns concertos, e ainda aos recitais de alunos da Escola Nacional de Música. Esse era um programa que fazíamos juntos. Eu toda prosa, de vestido de passear, ia com papai; em casa ficavam minha mãe com meus irmãos. Quantas vezes? Não sei, acredito que fossem aos sábados, à tarde, os recitais de alunos e professores, de canto e piano. Talvez ele também quisesse me ajudar a controlar o pânico que sempre tive de tocar para o público. Recitais, para mim, eram um inferno pessoal. Nunca me esqueço do primeiro vexame: congelar no palco ao interpretar, uma sonatina de Khulau, tempos depois, a mesma paralisia na sonata para piano de Mozart nº 16 em dó maior, uma lindeza de peça. Peças que eu podia tocar perfeitamente bem em casa, ou para minha professora. Para mim, o piano, a música, o tocar piano, foi sempre uma experiência íntima. Não queria ninguém prestando atenção naquele dialogo que eu travava com o compositor através dos meus dedos (que erravam muito quando eu sabia ter plateia). Papai não falava sobre música, não sei se tinha conhecimento para isso, mas se deixava emocionar, como deixava que eu também me emocionasse com minhas preferidas.
Meu pai, acredito que na sua formatura na Escola Nacional de Química.
Sua mãe havia sido uma excelente pianista, ela e o irmão também: Sara e Jayme. Não os conheci. Mas já ouvi histórias de pessoas fora da família – minha avó materna entre elas, que eram conhecidos os saraus organizados na casa deles na antiga e tradicional Tijuca. Mas minha avó ficou doente e permaneceu internada por 26 anos. Foi para a Casa de Saúde (já soube o nome; não me recordo agora) quando meu pai tinha 19 anos. E me pergunto hoje se parte da emoção dele com a música não seria também porque ela o lembrava dos bons tempos da adolescência, quando ainda ouvia vovó tocar piano, antes do evento catastrófico de sua internação.
Este pai, amante da música, gostava de ópera, de algumas árias em especial. Foi com ele que aprendi a reconhecer as árias mais famosas das mais conhecidas óperas. Poucos dias antes de falecer, quando ele e minha mãe me visitavam nos EUA, fiz questão de levá-los ao Metropolitan. A ocasião foi dedicada à Tosca de Puccini. Foi importante levá-los lá, um reconhecimento de sua educação, talvez, principalmente, quando mais tarde, refleti sobre a ocasião, depois que ele faleceu meros 20 dias após essa aventura nova-iorquina.
Papai aos 60 anos.
Ontem, para surpresa de meu marido sentado a meu lado no concerto, me debulhei em lágrimas ouvindo Francisco Mignone e suas belas valsas de esquina. Todo um passado de aprendizagem, de sonhos inatingíveis, ocasiões especiais, vieram à mente. Valsas choronas, tão brasileiras, por tanto tempo longe dos meus ouvidos radicados no estrangeiro, arrancaram alguns dos melhores momentos de minha infância do cantinho obscuro em que se encontravam . Além da nostalgia, senti também a responsabilidade de lembrar aos familiares, desse pai, avô, e hoje bisavô, que amava a música clássica e não só as ciências.
©Ladyce West, Rio de Janeiro, setembro 2017.