O conselho do Doutor Doido, conto tradicional brasileiro

25 05 2012

Contando histórias, ilustração de Maurício de Sousa.

O conselho do Doutor Doido

Um rapaz rico e solteiro desejava casar-se e começou a procurar noiva.  Um dia mandou preparar sua carruagem e passou por uma rua da cidade. Mandou parar, desceu e entrou numa casa.  Saiu uma mulher bonita e agradável.

— Senhora dona, me alcance um copo d’água!

A mulher foi buscar um copo d’água e agradou muito o rapaz que ficou satisfeito. Voltando para casa pensou em casar com ela.

No outro dia foi pedir água numa outra casa e saiu-lhe uma mulher ainda mais bonita e mais agradável. O rapaz ficou contente e achou que devia casar com ela.

No outro dia foi pedir de beber num rancho de palha onde foi servido por uma mocinha muito acanhada e bem parecida. O rapaz ainda gostou mais desta do que das outras. Para decicir procurou o padre vigário e pediu um conselho. O sacerdote disse:

— Vá procurar o Doutor Doido na Cidade Fulana. Ele não presta atenção a ninguém e vive passeando para lá e para cá, numa calçada. Diga o que quer e ouça o que ele disser.

O rapaz tomou sua carruagem e tocou-se para a Cidade Fulana. De tarde um criado do hotel levou-o para a tal rua onde ele viu o Doutor Doido andando para cima e para baixo, falando alto. O rapaz aproximou-se e contou o seu caso.

— Estou querendo casar e achei três mulheres que me agradam. Uma é mulher dama, outra uma viúva e a terceira uma moça donzela. Com quem devo dar a mão de esposo?

O Doutor veio cá e foi lá, e sem parar a marcha, respondeu:

— Quem sempre foi, sempre é. Besta velha não se acostuma em pasto novo! Quem nunca foi, vai-se fazer!

O rapaz tomou a carruagem, voltou e casou com a moça.

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Em: Contos Tradicionais do Brasil (folclore), Luís da Câmara Cascudo, Rio de Janeiro,Ediouro: 1967

 

 





Conto acumulativo folclórico: O Macaco perdeu a banana

7 05 2012

Macaco no balanço com banana, ilustração H.A. Rey.

O Macaco perdeu a banana

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O macaco estava comendo uma banana num galho de pau quando a fruta lhe escorregou da mão e caiu num oco de árvore.  O macaco desceu e pediu que o pau lhe desse a banana:

— Pau me dá a banana!

O pé de pau nem-como-cousa.  O macaco foi ter com o ferreiro e pediu que viesse com o machado cortar o pau.

— Ferreiro, traga o machado para cortar o pau que ficou com a banana!

O ferreiro nem se importou.  O macaco procurou o soldado a quem pediu que prendesse o ferreiro.  O soldado não quis.  O macaco foi ao rei para mandar o soldado prender o ferreiro para este ir com o machado cortar o pau que tinha a banana.  O rei não prestou atenção. O macaco apelou para a rainha.  A rainha não o ouviu. O macaco foi ao rato para roer a roupa da rainha. O rato recusou. O macaco recorreu ao gato para comer o rato. O rato nem ligou. O macaco foi ao cachorro para morder o gato. O cachorro recusou. O macaco procurou a onça para comer o cachorro. A onça não esteve pelos autos. O macaco foi ao caçador para matar a onça. O caçador se negou. O macaco foi até a Morte.

A Morte ficou com pena do macaco e ameaçou o caçador, este procurou a onça, que perseguiu o cachorro, que seguiu o gato, que correu o rato, que quis roer a roupa da rainha, que mandou o rei, que ordenou ao soldado que quis prender o ferreiro, que cortou com o machado o pau onde o macaco tirou a banana e comeu.

 

Recolhido por Benvenuta de Araújo, em Natal no Rio Grande do Norte.

Em: Contos tradicionais do Brasil (folclore) de Luís da Câmara Cascudo, Rio de Janeiro, Edições de Ouro:1967.

 

Como o autor exemplifica nesse livro os contos acumulativos são muito comuns nas Américas.  E Câmara Cascudo  relaciona alguns contos semelhantes a este, em que a Morte é chamada no final e todos correm a fazer o que a morte pede, por medo do que possa acontecer.  O mais semelhante ao nosso é de origem espanhola.





Fábula: A raposa e as uvas, texto de Monteiro Lobato

18 04 2012

A raposa e as uvas, ilustração JACOT.

A raposa e as uvas

Certa raposa esfaimada encontrou uma parreira carregadinha de lindos cachos maduros, coisa de fazer vir água à boca. Mas tão altos que nem pulando.

O matreiro bicho torceu o focinho.

Estão verdes — murmurou. Uvas verdes, só para cachorro.

E foi-se.

Nisto deu o vento e uma folha caiu.

A raposa ouvindo o barulhinho voltou depressa e pos-se a farejar…

Quem desdenha quer comprar.

Em: Fábulas, Monteiro Lobato, São Paulo, Ed. Brasiliense:1966, 20ª edição.

José Bento Monteiro Lobato, (Taubaté, SP, 1882 – 1948).  Escritor, contista; dedicou-se à literatura infantil. Foi um dos fundadores da Companhia Editora Nacional. Chamava-se José Renato Monteiro Lobato e alterou o nome posteriormente para José Bento.

Obras:

A Barca de Gleyre, 1944

A Caçada da Onça, 1924

A ceia dos acusados, 1936

A Chave do Tamanho, 1942

A Correspondência entre Monteiro Lobato e Lima Barreto, 1955

A Epopéia Americana, 1940

A Menina do Narizinho Arrebitado, 1924

Alice no País do Espelho, 1933

América, 1932

Aritmética da Emília, 1935

As caçadas de Pedrinho, 1933

Aventuras de Hans Staden, 1927

Caçada da Onça, 1925

Cidades Mortas, 1919

Contos Leves, 1935

Contos Pesados, 1940

Conversa entre Amigos, 1986

D. Quixote das crianças, 1936

Emília no País da Gramática, 1934

Escândalo do Petróleo, 1936

Fábulas, 1922

Fábulas de Narizinho, 1923

Ferro, 1931

Filosofia da vida, 1937

Formação da mentalidade, 1940

Geografia de Dona Benta, 1935

História da civilização, 1946

História da filosofia, 1935

História da literatura mundial, 1941

História das Invenções, 1935

História do Mundo para crianças, 1933

Histórias de Tia Nastácia, 1937

How Henry Ford is Regarded in Brazil, 1926

Idéias de Jeca Tatu, 1919

Jeca-Tatuzinho, 1925

Lucia, ou a Menina de Narizinho Arrebitado, 1921

Memórias de Emília, 1936

Mister Slang e o Brasil, 1927

Mundo da Lua, 1923

Na Antevéspera, 1933

Narizinho Arrebitado, 1923

Negrinha, 1920

Novas Reinações de Narizinho, 1933

O Choque das Raças ou O Presidente Negro, 1926

O Garimpeiro do Rio das Garças, 1930

O livro da jangal, 1941

O Macaco que Se Fez Homem, 1923

O Marquês de Rabicó, 1922

O Minotauro, 1939

O pequeno César, 1935

O Picapau Amarelo, 1939

O pó de pirlimpimpim, 1931

O Poço do Visconde, 1937

O presidente negro, 1926

O Saci, 1918

Onda Verde, 1923

Os Doze Trabalhos de Hércules,  1944

Os grandes pensadores, 1939

Os Negros, 1924

Prefácios e Entrevistas, 1946

Problema Vital, 1918

Reforma da Natureza, 1941

Reinações de Narizinho, 1931

Serões de Dona Benta,  1937

Urupês, 1918

Viagem ao Céu, 1932

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Esta fábula de Monteiro Lobato é uma das centenas de variações feitas através dos séculos da fábulas de Esopo, escritor grego, que viveu no século VI AC.  Suas fábulas foram reunidas e atribuídas a ele, por Demétrius em 325 AC.  Desde então tornaram-se clássicos da cultura ocidental e muitos escritores como Monteiro Lobato, re-escreveram e ficaram famosos por recriarem estas histórias, o que mostra a universalidade dos textos, das emoções descritas e da moral neles exemplificada.  Entre os mais famosos escritores que recriaram as Fábulas de Esopo estão Fedro e La Fontaine.

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A raposa furta e a onça paga, fábula brasileira, texto de Câmara Cascudo

5 03 2012

Ilustração de uma outra fábula da coletânea de Perry.

A raposa furta e a onça paga

A raposa viu que vinha vindo um cavalo carregado com cabaças cheias de mel de abelhas.  Mais que depressa deitou-se no meio da estrada, fingindo-se de morta.  O tangerino parou e achou o bicho muito bonito.  Não tendo tempo de esfolar, para aproveitar o pelo, sacudiu a raposa no meio da carga e seguiu viagem.  Vai a raposa e se farta de mel, pulando depois para o chão e ganhou o mato.  O homem ficou furioso mas não viu mais nem a sombra da raposa.

Dias depois a raposa encontrou a onça que a achou gorda e lustrosa.  Perguntou se ela descobrira algum galinheiro.

— Qual galinheiro, camarada onça, minha gordura é de mel de abelha que dá força e coragem.

— Onde você encontrou tanto mel?

— Ora, nas cargas dos camboeiros que passam pela estrada.

— Quer me levar, camarada raposa?

— Com todo gosto.  Vamos indo…

Levou a onça para a estrada, depois de muita volta, e ensinou a conversa.  A onça deitou-se e ficou estirada, dura, fazendo que estava morta.  Quando o comboeiro avistou aquele bichão estendido na areia, ficou com os cabelos em pé e puxou logo pela sua garrucha.  Não vendo a onça bulir, aproximou-se, cutucou-a com o cabo do chicote e gritou para os companheiros:

— Eh lá!  Uma onça morta!  Vamos tirar o couro.

Meteram a faca com vontade na onça que, meio esfolada, ganhou os matos, doida de raiva com a arteirice da raposa.

Em: Contos tradicionais do Brasil (folclore), Luís da Câmara Cascudo, Rio de Janeiro, Edições de Ouro: 1967

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Como Câmara Cascudo lembra essa fábula é muito conhecida na Europa, tanto na península ibérica como no norte da Europa, como na Rússia.  A versão mais popular no entanto é da raposa e do lobo.  A raposa faz o mesmo, finge-se de morta e é jogada numa carroça de peixes.  Farta-se com os peixes…  Daí por diante segue exatamente igual só que no lugar da onça brasileira, temos o lobo, que imita as ações da raposa e se dá mal.





A guerra das mulheres — lenda Ioruba

13 02 2012

Homem Ioruba em trajes tradicionais.

A guerra das mulheres

Nos velhos tempos, na cidade de Ilesa, antes das guerras entre os reinos, havia mulheres governantes assim como homens.  Uma geração se sucedia a outra em paz.  Às vezes as mulheres reinavam, às vezes os homens.  Até que houve uma governante em Ilesa, chamada Aderemi.

Um dia, durante o seu governo, um exército de guerreiros de outro reino, tentou invadir Ilesa.  Essa era a primeira vez que a cidade tinha que se defender para sobreviver.  Por isso mesmo não havia procedimentos a serem seguidos para proteger a cidade.  Não havia tradição.  Ninguém podia dizer: “Oba Tal lutou dessa maneira”, ou “Oba Fulano-de-Tal lutou daquela maneira”.  Aderemi juntou seus conselheiros. Alguns eram homens e alguns eram mulheres.  Eles confabularam.   Arguiram sobre a melhor maneira de se livrarem dos inimigos.  Os conselheiros homens disseram que os guerreiros homens deveriam se munir de lanças e escudos, cajados, arcos e flechas e ir à luta.  Mas as conselheiras tinham outras ideias e sugeriram que as melhores armas seriam os pilões, longos com que batiam nos grãos para preparar a comida.  Elas também favoreciam o uso de ovos, porque estes continham o poder de neutralizar os poderes dos inimigos, e assim, ovos deveriam ser usados.  A discussão entre os conselheiros foi esquentada, mas finalmente Aderemi declarou que as conselheiras haviam ganho.

Os conselheiros homens perguntaram: “Que guerreiro vai para o campo de batalha munido de pilão e ovos?

Aderemi respondeu indignada, “ Muito bem, então os homens ficam na cidade e fazem as tarefas daqui.  Enquanto isso as mulheres vão defender Ilesa.

Ela mandou as mulheres pegarem as armas e se prepararem para a luta.  Elas tiraram seus longos pilões das cumbucas, apertaram as roupas e se pintaram seus rostos para guerra.  Cada mulher segurou um ovo na mão esquerda e juntas foram para frente da casa de Aderemi.

A líder lembrou-as que deveriam ter coragem dizendo: “Vão e encontrem o inimigo. Joguem os ovos na frente deles para combater seus poderes. Ataquem e faça com que eles fujam, sem piedade para o lugar de onde vieram, para que eles nunca voltem a atacar a cidade de Ilesa.”

No entanto, os homens continuaram a reclamar dizendo, “não é assim que se faz isso.”

Aderemi respondeu ríspida, “guardem para si, os seus conselhos.”

As guerreiras saíram com os pilões nas mãos direitas e os ovos nas esquerdas. Acharam o inimigo.  Os inimigos riram quando viram as guerreiras vindo com pilões e ovos para defender Ilesa.  E gritaram, “não há homens nessa cidade?  Voltem.  Não viemos à procura de esposas, essas nós já temos em casa.”

As mulheres de Ilesa ouviram o insulto e jogaram seus ovos em direção aos invasores dizendo, “assim como os seus poderes se tornam estéreis, também vocês ficarão sem poderes.”  E elas correram a atacar com seus pilões.  Mas os inimigos se protegeram com os escudos, e lutaram de volta com cajados, lanças, arcos e flechas.  Muitas mulheres de Ilesa morreram no campo de batalha.  As outras deram para trás.  Daí, os inimigos atacaram e as mulheres fugiram para a cidade.  Chegando lá,  elas entraram em casa e se desfizeram dos pilões.

Os homens de Ilesa viram tudo o que aconteceu.  Foram até Aderemi e disseram, “isso é demais para você. Nos tempos de paz você reinou bem.  Mas agora, que a guerra veio, você tentou moer o inimigo como se fosse milho puro e simples.  Essa é a natureza das mulheres.  Assim, não podemos mais ter uma governante mulher em Ilesa.  Daqui por diante, Ilesa deve ter um chefe guerreiro como governante.” Os homens se reuniram em um conselho e selecionaram um homem para ser Oba da cidade e das terras à sua volta.

Sob orientação do novo Oba, os homens munidos de lanças, escudos, facas, cajados e arcos e flechas, saíram da cidade cantando seus gritos de guerra, e atacaram o inimigo.  Fizeram-no voltar atrás, eliminando o inimigo de sua terra.  Os inimigos ficaram confusos e se desorganizaram.  A batalha continuou até que o único inimigo à vista eram os corpos caídos no chão.  Depois disso, os guerreiros Ilesa foram para casa.  Disseram, “foi feito.”

Os  guerreiros voltaram a dizer que daí por diante Ilesa só teria homens como governantes.  Disseram, “Obatala fez todos humanos e os amou igualmente.  No entanto, cada pessoa tem habilidades para coisas específicas.  Mulheres têm autoridade sobre pilões e ovos.  Essa é a natureza delas.  Os homens são bons para  defenderem suas casas.  Vamos respeitar as nossas diferenças.”

Desde então só homens governaram Ilesa e só eles entram em guerra enfrentando inimigos.

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Tradução e adaptação: Ladyce West

Em: Tales of Yoruba Gods and Heroes: myths, legends and heroic tales of the Yoruba people of West Africa, Harold Courtlander, New York, Fawcett Premier Book: 1974.





A onça e o bode, fábula brasileira, texto de Luís da Câmara Cascudo

3 02 2012

Ilustração M&V Editores

A onça e o bode

O Bode foi ao mato procurar lugar para fazer uma casa.  Achou um sítio bom.  Roçou-o e foi-se embora.  A Onça que tivera a mesma ideia, chegando ao mato e encontrando o lugar já limpo, ficou radiante.  Cortou as madeiras e deixou-as no ponto.  O Bode, deparando a madeira já pronta, aproveitou-se, erguendo a casinha.  A Onça voltou e tapou-a de taipa.  Foi buscar seus móveis e quando regressou encontrou o Bode instalado.  Verificando que o trabalho tinha sido de ambos, decidiram morar juntos.

Viviam desconfiados, um do outro.  Cada um teria sua semana para caçar.  Foi a Onça e trouxe um cabrito, enchendo o Bode de pavor.  Quando chegou a vez deste, viu uma onça abatida por uns caçadores e a carregou até a casa, deixando-a no terreiro.  A Onça vendo a companheira morta, ficou espantada:

— Amigo Bode, como foi que você matou essa onça?

— Ora, ora… Matando!… Respondeu o Bode cheio de empáfia.  Porém, insistindo sempre a Onça em perguntar-lhe como havia matado a companheira, disse o Bode:

— Eu enfiei este anel de contas no dedo, apontei-lhe o dedo e ela caiu morta.

A Onça ficou toda arrepiada, olhando o Bode pelo canto do olho.  Depois de algum tempo, disse o Bode:

— Amiga Onça, eu lhe aponto o dedo…

A Onça pulou para o meio da sala gritando:

— Amigo Bode, deixe de brinquedo…

Tornou o Bode a dizer que lhe apontava o dedo, pulando a Onça para o meio do terreiro.  Repetiu o Bode a ameaça e a onça desembandeirou pelo mato a dentro, numa carreira danada, enquanto ouviu a voz do Bode:

— Amiga Onça, eu lhe aponto o dedo…

Nunca mais a Onça voltou.  O Bode ficou, então, sozinho na sua casa, vivendo de papo para o ar, bem descansado.

Em: Contos tradicionais do Brasil (folclore), Luís da Câmara Cascudo, Rio de Janeiro, Edições de Ouro: 1967

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Este conto foi arrebanhado por Câmara Cascudo do volume de J da Silva Campos, Contos e fábulas populares da Bahia, em Folk-Lore no Brasil, Ed. Basílio de Magalhães, Rio de Janeiro, 1928.

Câmara Cascudo lembra que esta variante do conto, [popular no Brasil inteiro, com versões também de origem indígena], “tem reminescência africana, resquício religioso dos negros do Congo Zambese“, da região Bantu.





A corrida, conto africano, Ibo

25 01 2012

Ilustração, autor desconhecido.

A corrida

Há muitos e muitos anos havia um cervo que sempre zombava dos pequenos animais silvestres, mas principalmente dos sapos. “Vocês são lentos, frágeis e pequenos,” o cervo costumava dizer, exibindo sua força e velocidade.   Um dia, um sapo o desafiou para uma corrida.  Antes da data combinada para corrida, o sapo, muito mais inteligente do que o cervo imaginava, planejou com seus amigos uma maneira de vencer o veado.  O grupo resolveu que cada um deles estaria esperando pelo cervo a intervalos regulares ao longo do traçado do caminho.  Cada sapo ficaria atento, então, para a chegada do veado nas proximidades de seu ponto.  O sapo que fez a aposta ficaria escondido próximo à linha de chegada.  O objetivo seria enganar o veado.  Quando a corrida começou, o veado pensou que assumia a liderança sem esforço, e logo chamou pelo sapo, ridicularizando o réptil, perguntando por onde ele andava. Mas para sua surpresa, o sapo respondeu “Estou aqui” de um local mais à frente, na direção oposta a que o veado imaginava encontrar o sapo. A corrida continuou e o mesmo aconteceu, mais de uma vez: o sapo aparecia sempre à sua frente.  Preocupado, o cervo acelerava e achava que conseguia assumir a liderança, mas logo adiante o sapo o alcançava de novo. Perto da linha de chegada, o cervo se cansou e acabou perdendo a corrida, sem saber que havia competido com muitas pequeninas e espertas rãs, que no final provaram que ele estava errado o tempo todo quando desdenhava de seu tamanho e lentidão.

Tradução e adaptação: Ladyce West

Em:  African Myths and Tales, Susan Feldmann, Nova York, Dell Publishing Company: 1963

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Essa fábula africana de origem Ibo também é encontrada no livro Histórias de Tia Nastácia, de Monteiro Lobato, com o título O veado e o sapo (página 89 dessa versão cujo link coloco aqui, em pdf).  Mas Monteiro Lobato realmente torna o texto seu:  acrescenta deliciosos detalhes e uma outra fábula como continuação, narrando a vingança do veado.





O veado na fonte, fábula de Loqman

10 01 2012

O veado na fonte

Loqman *

Um veado sedento veio a uma fonte para beber, mas quando percebeu sua imagem refletida na água, sentiu-se tomado de melancolia por causa da magreza de seus pés, mas, por outro lado, orgulhava-se da beleza e da grandeza de seus cornos.  Pouco depois, os caçadores puseram-se em sua perseguição.  Enquanto fugia pelas planícies não puderam nada contra ele, mas quando atingiu a floresta da montanha, sua corrida foi retardada por seus cornos que se embaraçavam entre as moitas e os galhos.  Os caçadores então se apoderaram dele sem dificuldade e mataram-no.  Mas antes de exalar o último suspiro o veado gritou:

— Coitado de mim que subestimei o que me salvou a vida e só tive elogios para o que me causou a morte.

Em: Contos Árabes, Jamil Almansur Haddad, Rio de Janeiro, Edições de Ouro: s/d

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* Loqman – [também conhecido como Loqman, o sábio] – foi um fabulista muitas vezes confundido com Esopo.  Muitas vezes suas fábulas também apareceram como sendo de Esopo.  A primeira tradução de suas fábulas para a Europa foi feita por Erpenius em 1615.





A raposa e o timbu, fábula brasileira, texto de Luís Câmara Cascudo

3 01 2012

Ilustração de Pat Hutchins

A raposa e o timbu

A raposa convidou o timbu para visitarem um galinheiro bem provido. A raposa iria às galinhas e o timbu aos ovos e pintos.  Entraram por um buraco que mal permitia a passagem.  Começaram a fartar.  A raposa prudente, apenas satisfez o apetite.  O timbu, voraz, empanturrou-se, ficando com a barriga inchada.  De súbito ouviram os passos do dono da casa.  A raposa passou como um raio pelo buraco e sumiu-se no mato.  O timbu meteu-se a tentar mas ficou engalhado pelo meio do corpo, ganindo como um desesperado. O homem chegou, viu o estrago e disparou a espingarda no timbu, que morreu por ser guloso.

Em: Contos tradicionais do Brasil (folclore), Luís da Câmara Cascudo, Rio de Janeiro, Edições de Ouro: 1967

Esse conto foi originalmente coletado pelo autor no Rio Grande do Norte.  É possível que leitores de outros pontos do Brasil não estejam familiarizados com o timbu.  A grande área geográfica brasileira permite que esse animal receba diferentes nomes, em outras regiões: sariguê, gambá, ticaca, mucura, cassaco, entre outros.





A natureza do morcego, conto africano

28 12 2011

Ilustração anônima.

A natureza do morcego

Era uma vez um reino onde os animais mamíferos e os pássaros entraram em guerra.  Nessa ocasião, abriu-se um grande debate sobre em que grupo o morcego deveria lutar, já que ele, um grande esperto, teimava em se manter afastado de ambos os lados.

Vencendo a guerra, os pássaros mantiveram o poder sobre os mamíferos, por quarenta anos seguidos.  Observando esse poderio das aves, o  morcego  juntou-se a elas, desfrutando o que lhe cabia dos benefícios de pertencer aos dominadores.

Mas um dia, o leão e o tigre, desesperados por reverter aquela situação insuportável, decidiram que algumas novas medidas teriam que ser tomadas para trazer paz ao reino.  As coisas não podiam continuar como estavam.  Mas essa decisão foi plenamente ignorada por todos os animais que já acreditavam que a sorte estava lançada.  Assim, as hostilidades entre pássaros e animais recomeçaram, sem dar trégua.

Na discussão que se seguiu,  os animais resolveram espionar os movimentos do morcego, pois perceberam que ele permanecia neutro, sem escolher qualquer lado.  Os animais pediram à raposa que prendesse o morcego e o trouxesse para inquérito junto aos líderes dos animais.  O morcego foi condenado por pretender ser leal a ambos os lados, e os animais exigiram uma explicação.  O morcego disse que havia seguido o conselho de sua esposa que o havia convencido a ficar pronto para aderir a qualquer um dos lados que vencesse, com a intenção de receber recompensa do lado vencedor.

O morcego foi severamente repreendido, considerado desleal e por isso acabou na prisão esperando julgamento ao final da guerra.  Por dez longos anos ele permaneceu encarcerado, até que a guerra acabou.  As aves haviam sido derrotadas.

Com a chegada do dia do julgamento, o morcego, achando que o caso era muito complicado para se defender por conta própria, decidiu contratar um esperto advogado para sua defesa, que argüiu que seu cliente tinha pleno direito de se alinhar com qualquer um dos lados, de acordo com sua vontade. Sua opinião estava baseada na anatomia do morcego.   Não era uma pássaro apesar de ter asas e ser capaz de voar.  No entanto, insistiu que quando o morcego estava no ar não invadia o território de ninguém.  Tinham de admitir que voar era o seu elemento.   Por outro lado, coberto por pelo, o morcego tinha dentes e grandes orelhas que nenhum pássaro apresentava. Levando tudo isso em consideração não parecia haver dúvidas: o morcego tinha qualidades que o permitiam ser considerado tanto um animal mamífero quanto um pássaro ou ambos. E estava, assim, livre para se juntar a qualquer um dos grupos do reino.

Tradução e adaptação: Ladyce West

Em:  African Myths and Tales, Susan Feldmann, Nova York, Dell Publishing Company: 1963

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Encontrei uma versão semelhante a esse conto folclórico no portal do professor do MEC.  Lá o conto de Rogério Andrade Barbosa, chamado de “Por que será que o morcego só voa de noite?” tem um outro final, mas os pontos de semelhança são muitos, vale a pena checar, inclusive porque há mais diálogos e parece mais “contável” para pequenos leitores, ainda que a conclusão final seja bastante diferente.