“Era uma dessas manhãs ensolaradas da primavera limenha, em que os gerânios amanhecem mais arrebatados, as rosas mais perfumadas e as primaveras mais crespas, quando um famoso galeno da cidade, o doutor Alberto de Quinteros — testa ampla, nariz aquilino, olhar penetrante, retidão e bondade no espírito —, abriu os olhos e espreguiçou-se em sua espaçosa residência de San Isidro. Viu, através das cortinas transparentes, o sol dourando o gramado do bem-cuidado jardim cercado por canteiros de crótons, a limpeza do céu, a alegria das flores, e teve essa sensação de bem-estar proporcionada por oito horas de sono reparador e uma consciência tranquila.“
“Era a típica paisagem universitária durante o intervalo do almoço. E, no entanto, ao observar aquela cena familiar, dei-me conta de uma coisa. Todas as pessoas, cada uma à sua maneira, pareciam felizes. Não saberia dizer se estavam realmente felizes da vida ou se não passava de uma encenação. Em todo o caso, naquele agradável início de tarde em finais de setembro, toda a gente parecia satisfeita, e isso fez com que me sentisse ainda mais solitário. Como se fosse eu o único a destoar na paisagem.”
[Essa obra foi roubada no dia 14 de março de 2020, não se conhece o paradeiro dela]
“… e ele bebe lentamente, saboreando, e esquadrinha a parede com um olhar tranquilo, em busca desta ou daquela sequência do seu passado. No ângulo formado pelas paredes e o teto, o pessoal da limpeza não tinha reparado em uma teia de aranha minúscula, perceptível apenas para um olho atento. Um restinho de gaze acinzentada sem a inquilina que a teceu. E nela ficou presa a lembrança do beijo de Arantxa. Que idade eu tinha? Vinte, 21 anos. E ela? Dois a menos. São coisas corriqueiras que acontecem nas festas do interior. O pessoal dança, bebe, sua, todo mundo se conhece; se você é jovem e surge na sua frente um par de seios, você os pega; se uns lábios chegam mais perto, você os beija. Ninharias, migalhas que o esquecimento devora, o que não impede que, de repente, olhando a teia de aranha, a memória de Xabier as resgate. É antes do serviço militar e ele estuda medicina em Pamplona. Tem fama de sem sal, de formal, de fechado em si mesmo; enfim, do que ele é realmente, um homem sério de verdade, sendo bem objetivo. Amigos? A velha turma de sempre, antes que os sucessivos casamentos a desagregassem. Não é bebedor nem fumante nem glutão nem esportista nem andarilho; mas, apesar de tudo isso, todos o apreciam porque faz parte da paisagem humana do lugar, frequentou o colégio com os outros, é o Xabier, tão da vila quanto o balcão da prefeitura ou as tílias da praça. Dá a impressão de que o futuro está à sua espera de braços abertos. É alto e boa-pinta, mas, ainda assim,nunca tem uma paquera. Sensato demais, tímido demais? Segundo seus conhecidos, deve ser algo assim. Toma um gole de conhaque sem tirar os olhos da teiazinha de aranha. Mas por que sorriu? É que achou engraçado lembrar esse episódio. Em uma lateral da praça arde a fogueira de são João. As ruas estão apinhadas de gente. Crianças correm, brilham caras felizes, línguas lambem sorvetes, vizinhos desinibidos conversam aos gritos de uma calçada para a outra. Calor.”
Em: Pátria, Fernando Aramburu, tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht, 2016
O que habitualmente chamamos amigos e amizades não são senão conhecimentos e familiaridades contraídos quer por alguma circunstância fortuita quer por um qualquer interesse, por meio dos quais as nossas almas se mantêm em contacto. Na amizade de que falo, as almas mesclam-se e fundem-se uma na noutra em união tão absoluta que elas apagam a sutura que as juntou, de sorte a não mais a encontrarem. Se me intimam a dizer porque o amava, sinto que só o posso exprimir respondendo: «Porque era ele; porque era eu».
(…) Não me venham meter ao mesmo nível essas outras amizades comuns! Conheço-as tão bem como qualquer outro, e até algumas das mais perfeitas do gênero, mas não aconselho ninguém a confundir as suas regras: laboraria num erro. Em tais amizades deve-se andar de rédeas na mão, com prudência e cautela – o nó não está atado de maneira que, acerca dele, não se tenha de nutrir alguma desconfiança. «Amai o vosso amigo», dizia Quílon, «como se algum dia tiverdes que o odiar; odiai-o como se tiverdes que o amar.» Este preceito, tão abominável se aplicada à soberana e superna amizade, é salutar a respeito das amizades comuns e habituais, em relação às quais se deve empregar este dito tão ao gosto de Aristóteles: «Ó amigos meus, não há nenhum amigo!»
“Ao contemplar uma pintura de grandes proporções, sentimo-nos empolgados por estar na presença de tudo ao mesmo tempo e queremos entrar no quadro. Quando estamos no meio de um volumoso romance, sentimos o estonteante prazer de estar num mundo que não conseguimos ver em sua inteireza. Para ver tudo temos de constantemente transformar os momentos separados em quadros mentais. É esse processo de transformação que torna a leitura de um romance uma tarefa mais pessoal, mais colaborativa que a contemplação de um quadro.”
― Orhan Pamuk, The Naive and the Sentimental Novelist
“Você quer ser amada como as heroínas dos livros da sua mãe. Quando na realidade o amor é tão simples… Veja-o como uma flor que nasce e que morre em seguida porque tem que morrer. Nada de querer guardar a flor dentro de um livro, não existe coisa mais triste no mundo do que fingir que há vida onde a vida acabou. Fica um amor com jeito desses passarinhos empalhados que havia nos escritórios dos nossos avós.”
Há muito tempo um livro não me encanta tanto quanto Orbital de Samantha Harvey, tradução de Adriano Sacandolara [Editora DBA, 2025]. A obra, vencedora do Booker Prize em 2024, é uma cuidadosa ponderação sobre a vida, a Terra, nosso lugar no Universo. Ainda que acompanhemos seis astronautas que orbitam a terra, não há diálogos, não há trama. Em seu lugar, somos convidados a compartilhar com a autora a visão, o encantamento e o privilégio de, com ela, viajarmos em volta do nosso planeta e nesse trânsito refletir sobre a grandeza do espaço, a pequenez do planeta azul, a fragilidade de nossa existência.
Não se trata de prosa poética. Mas o livro é repleto de poesia e do encantamento que poesia provoca. Com grande sensibilidade atravessamos as dezesseis órbitas que fazem um dia no espaço e que, por sua vez, designam os dezesseis capítulos do livro. A cada um deles voltamos ao nascer do dia numa parte do planeta, diferente da anterior, ou ao acender das luzes quando a noite chega em algum continente. Essa forma circular, de voltar e voltar a um ponto semelhante ao do início é usada desde a antiguidade para a meditação. O círculo sempre esteve ligado à ponderação e introspecção. Os conhecidos labirintos meditativos, desenhados no chão, como o da Catedral de Chartres na França, assim eram para levar o pensamento do andarilho de volta através de uma espiral circular a um ponto semelhante ao anterior. É isso que acontece com o leitor em Orbital. Junto à equipe de astronautas voltamos sempre mais ou menos ao mesmo ponto, mas um pouco diferente. As ruminações são inescapáveis.
“Os continentes passam como as campinas e vilarejos na janela de um trem. Dias e noites, estações e estrelas, democracias e ditaduras. É só à noite, quando você vai dormir, que você se alivia dessa esteira perpétua. E mesmo ao dormir você sente a Terra girar, assim como sente uma pessoa deitada ao seu lado. Você a sente ali. Sente todos os dias que penetram sua noite de sete horas. Sente todas as estrelas efervescentes e os humores dos oceanos e o tropeço da luz contra a pele, e se a Terra parasse por um segundo na sua órbita, você acordaria de sobressalto, ciente de que há algo errado.“
Difícil imaginar as incontáveis horas de pesquisa que Samantha Harvey deve ter dedicado a visões da Terra da perspectiva de quem a vê do espaço, nem muito longe, nem muito perto. Suas descrições, suas observações precisas e poéticas são imperdíveis e trazem a sensação de verdadeira experiência. E nos deixam extasiados. Outras tantas horas devem ter sido dedicadas ao estudo da rotina dos astronautas antes e durante os voos, assim como os tipos de pesquisas que são executadas em voo.
Samantha Harvey
Esse livro é uma homenagem à Terra mas é também uma austera e enigmática reflexão sobre nosso papel nesse planeta, nesse Universo. Ponderação sobre nossa inimaginável necessidade de ir além, de conquistar. A prosa é belíssima e delicada. Para os apreciadores da pintura há uma longa reflexão sobre Velazquez e menções sobre Turner. Mas sobretudo essa ruminação poética sobre o ser humano e seu lugar no universo é profunda, toca a alma e faz pensar.
Com Anton, Roman, Nell, Chie, Shaun e Pietro, os astronautas de diversas nações aprendemos, como Harvey nos diz que:
“A humanidade não é esta ou aquela nação, é tudo junto, sempre juntos, venha o que vier.”
“Escrever é sempre uma arte repleta de reencontros. A carta mais simples requer um escolha entre milhares de palavras, das quais a maior parte são estranhas àquilo que se quer dizer.”
Alain
Émile-Auguste Chartier
[Écrire est toujours un art plein de rencontres. La lettre la plus simple suppose un choix entre des milliers de mots, dont la plupart sont étrangers à ce que vous voulez dire.]
Mariinha Santos (Brasil, ativa nas décadas de 1970-80)
aquarela, 48 x 68 cm
O Major convidara os estancieiros mais próximos, e assim a capela encheu-se de cadeiras, e foi preciso que as crianças ficassem pelo chão, junto com os cachorros. O Maestro ostentava a casaca nova, e, ao entrar pelo corredor central, com as músicas debaixo do braço, caminhando para sua orquestra como para oficiar uma missa, todos se compenetraram: jamais haviam visto algo semelhante. Os notáveis que, de fato, ainda abominavam o Maestro, agora intrigavam-se com aquela dignidade. – “Ele deu vida a esta capela” – disse o Major ao Vigário, que concordou com um movimento de cabeça e pôs o indicador frente aos lábios: o Maestro, já de costas para os convidados, esperava que cessassem as tossidelas e os murmúrios; depois, ergueu as mãos num gesto elegante e decidido, e os instrumentistas perfilaram-se nas pontas das cadeiras. Ficou assim, imóvel, por um momento; depois, muito lentamente, acariciando o ar, baixou os braços – e as rabecas deram início a um andante cantabile mal audível, lascivo, complicado por appogiaturas que se enredavam nas notas. Na plateia, ninguém se animava a um só movimento. A melodia cresceu, ganhou inesperada rapidez, e logo um festivo allegro retumbava pela capela, num estrépito de tambores e cornetas. O Maestro luzia de suor, transfigurando-se pelo fogo de seus movimentos, que varriam o espaço acima das cabeças; seu colarinho saía para fora da gola, e surgiram os punhos da camisa. E a música foi-se desdobrando em ondas, ganhando matizes delicados, para logo ressurgir com mais força, avançando ao limite do suportável. Em poucos minutos atingiu um paroxismo sonoro que fazia vibrarem os vidros das janelas. Quando os ouvintes já se entreolhavam em desespero, tudo acabou num triunfante e ensurdecedor acorde de toda a orquestra. No silêncio imediato, seguiu-se o grito do Major: – “A la fresca!”. A audição continuou, agora com obras ligeiras, onde se percebia sua anterior destinação à banda. Aí sim, os ouvintes sentiram-se mais à vontade, e os homens autorizavam-se a marcar os compassos, batendo com os pés na laje do piso. O Maestro pretendeu agradar os brios gaúchos e atacou o hino da República Rio-Grandense, o que fez com que os convidados, ao comando do Major, se levantassem para ouvir a música do Mendanha.
Em: Concerto Campestre, Luiz Antonio de Assis Brasil, L&PM: 1997, Porto Alegre