Paulo e Virgínia… um romance inesquecível…

18 08 2015

 

704_001História de Paulo e Virgínia em Postais

Data: 1888 — Liebig Company, Bélgica

 

 

Por vezes me perguntam se escolho primeiro a imagem ou o texto.  Não há regra… É uma questão de associações, de imagem puxando imagem.  Como neste caso aqui.  Há algum tempo selecionei um trecho de Pedro Nava, do primeiro volume de suas memórias, Baú de Ossos.  O trecho ficou gravado entre as minhas “seleções” — uma coisa meio século XIX que vez por outra alimento — : um caderno com passagens preferidas de textos.  É claro que com Pedro Nava corri sempre o risco de selecionar quase todos os seis volumes de suas memórias, tal a riqueza de sua prosa.  Passou o tempo.  De repente, procurando na internet por imagens que nada tinham a ver com as que coloquei acima, me encantei com a seleção de postais belgas retratando a história de Paulo e Virgínia.  Uma breve pesquisa me levou a procurar o texto selecionado e …Voilà, temos uma postagem por associação.  Mas o intervalo entre texto e imagem pode ser longo…

 

“Ai! de mim, que mais cedo que o amigo também abracei a senda do crime e enveredei pela do furto… Amante das artes plásticas desde cedo, educado no culto do belo pelas pinturas das tias, das primas e pelas composições fotográficas do seu Lemos, amigo de meu Pai — eu não pude me conter. Eram duas coleções de postais pertencentes a minha prima Maria Luísa Paletta. Numa, toda a vida de Paulo e Virgínia — do idílio infantil ao navio desmantelado na procela. Pobre Virgínia, dos cabelos esvoaçantes! Noutra a de Joana d’Arc, desde os tempos de pastora e das vozes, ao das cavalgadas com suas hostes e à morte sobre a fogueira de Ruão. Pobre Joana, dos cabelos em chama! Não resisti. Furtei, escondi e depois de longos êxtases, com medo, joguei tudo fora. ”

 

Em: Baú de Ossos: memórias, Pedro Nava, Rio de Janeiro, Sabiá: 1972, p. 272.





Das perdas do divórcio…

21 06 2015

 

 

divorcio, willliam hogarthDivórcio

William Hogarth (Inglaterra, 1697-1764)

Gravura

 

 

Das perdas do divórcio…

Pouco se fala nas perdas emocionais do divórcio, fora o casal e seus filhos, se esses existirem. O vazio, a perda vai muito além do parceiro ou parceira. Com o divórcio perde-se também a família maior: os sogros, cunhados, sobrinhos, tios, todos que, um dia, foram considerados membros de uma unidade, de um universo familiar. Esses podem desaparecer de um momento para o outro como se engolidos por um buraco negro. Lá se afunda, no meio do nada, uma constelação de contatos, de alianças, de pontos de amizade e camaradagem.

Ontem soube que a mãe de meu primeiro marido, minha sogra, faleceu. Ela desocupou a posição oficial de minha sogra há muito anos, mas o coração é grande e em uma parte dele ela sempre reinou. Diferente do estereótipo cultural, eu gostava dela. Tomei-a como exemplo não só durante os nove anos do casamento, mas também nos anos que se seguiram, muito tempo depois, quando eu já fazia parte de outro círculo familiar, resultado de um casamento mais feliz.

Conheci minha primeira sogra, quando eu tinha dezesseis anos e namorava seu filho mais velho. Quatro anos depois, quando nos casamos, ela soube participar dos preparativos e ao mesmo tempo se distanciar quando necessário.

Depois de casada encontrei nela fonte de muitos conselhos práticos, de orientação da cozinha às costuras. Aprendi também o valor dos pequenos rituais; de viver sem dar extrema importância ao que os outros pensam; assim como o dar-se permissão por se ter um gosto diferente, um ponto de vista único. Minha sogra tinha um excelente senso de humor; era independente, determinada e ocupava-se nas ações filantrópicas com a mesma energia que dedicava à família. Era justa. Nos quase quatorze anos de convivência, tive momentos de grande aproximação, principalmente nos meses em que morei com ela, enquanto meu marido, fora do país, começava seu curso de doutoramento e eu, aqui, terminava o ano de estudos no Rio de Janeiro. Ela sempre me tratou bem com carinho, atenção, respeito, camaradagem e cumplicidade. Por uma questão de afinidade, ela se tornou, de fato, membro do meu cosmos familiar.

O divórcio, fora do Brasil, de um casal sem filhos, trouxe um abismo sem fundo nesse relacionamento. Os filhos trazem com eles a obrigação de sempre se estar em contato com a família que era. No meu caso isso não foi necessário. Novos casamentos dos dois lados solidificaram a ausência. Ela, meu sogro, meus cunhados desapareceram. Levaram com eles parte das memórias da minha adolescência e todos os meus vinte anos. Minhas reflexões sobre aqueles quatorze anos estão indubitavelmente marcadas por essa família, em parte porque desde cedo me adaptei, por gosto e inclinação, a uma variedade de atividades que nada tinham a ver com a minha família natural, mas que fizeram parte do meu dia a dia como membro desse clã. Perdi, assim como muitas outras pessoas em um divórcio, um bocado das referências pessoais. No meu caso da adolescência até ao adulto maduro.

O vácuo permaneceu como um ponto fraco e dolorido, até a minha volta ao Rio de Janeiro. Um dia, por coincidência, em uma livraria de Copacabana (minha sogra gostava de ler), ouvi a mocinha da caixa tomar o nome da senhora que estava à minha frente na fila. Era ela, minha primeira sogra. Chamei-a, nos reconhecemos e nos abraçamos. Lágrimas e sorrisos se misturaram, as duas se emocionaram. Muitos anos haviam se passado. Mas tanto foi dito naquele abraço! O meu foi repleto de saudades e de carinho. O encontro não durou muito tempo, o bastante para sabermos que ambas haviam sentido falta uma da outra e que ocasionalmente ponderávamos sobre a outra. Honramos nosso passado em comum. Trocamos pequenas informações e alguns telefonemas depois desse dia, nada mais do que meia dúzia, para desejar um Feliz Ano Novo ou Feliz Aniversário. Mas daquela tarde em Copacabana cheguei em casa feliz.  Era disso que eu precisava: nosso encontro finalmente fechou aquele ciclo da vida do qual participamos juntas. Tivemos a oportunidade do adeus. Não foi uma vida, nem tampouco uma semana. Quatorze anos contam, principalmente para uma adolescente à procura de modelos de vida e de comportamento que melhor expressassem seu íntimo. Minha primeira sogra foi importante nessa busca. Por isso mesmo sei que fui privilegiada em conhecê-la. Que a paz esteja com a senhora, D. Léa.

 

©Ladyce West, Rio de Janeiro, 2015.




Copacabana no início, por Pedro Nava

4 04 2015

ana vasco, copacabnaCopacabana, 1901

Anna Vasco (Brasil, 1881-1938)

óleo sobre tela

“Às vezes saímos para fazer visitas. Eu gostava das da zona sul e nascente Copacabana. O mar era entrevisto de longe, logo que se desembocava nos altos do Túnel Velho. Lá íamos visitar a grande amiga de tia Alice, solteirona e rica, que a todos impressionava pela dignidade de sua presença, pela miopia e pela peruca que usava aberta no meio da testa e esculpindo dois bandós simétricos de cabeleira de santo de pau. Sua vida era austera e piedosa: sempre condenava as fraquezas e escorregões da carne.  Assim atravessou mocidade, a segunda mocidade, ficou madura, mas ao galope dos quatro cavaleiros do apocalipse da menopausa — arranjou seu Landru. Não a matou — mas foi roendo aos poucos seus prédios, suas apólices, suas joias, suas ações, suas pratas, seus cristais, suas porcelanas e quando já não havia o que cardar, plantou a noiva de tantos anos. Morreu abandonada pelo moço (que ela achava a cara de George Walsh), curtida de paixão e marginalizada pela família. Sua pobreza tornava-a mais culpada aos olhos dos sobrinhos. Eu gostava de sua casa, de seu beijo estalado, do seu sempiterno bolo de aipim e do seu convite sugestão amplidão azul. Vamos menino! tire os sapatos e vá brincar na areia! Ia e pasmava. As  ondas vinham altas, empinadas, lisas, oscilantes, como que hesitantes, como se se fossem cristalizar naquele bisel ou coagular-se naquele dorso redondo da serpente marinha coleando do Leme à Igrejinha; paravam um instante de instante, suspensas um instante, decidiam de repente e deflagravam quebrando num estrondo barulhos luzes marulhos espumas — se procurando nos leques se sobreabrindo  sobre as areias. Era mais ou menos no Posto 5 e ainda havia conchas para apanhar, tatuís para desentocar no praiol deserto e impoluído. Ou simplesmente andar, sentindo nas solas nuas a frescura da praia molhada e seu derrobamento  sob os pés inseguros, ao retorno das águas. …”

Em: Chão de Ferro: memórias 3, Pedro Nava, Rio de Janeiro, José Olympio: 1976, 2ª edição, p. 76





Empatia e entendimento do mundo aumentam com leitura de ficção

14 02 2015

 

 

kai-mccall-retratos-imaginados livroO grito está todo lá, 2008

[The screaming is all there]

Kai McCall (Canadá, 1968)

óleo sobre tela, 81 x 53 cm

www.kaimccall.com

 

 

Todo mundo já sabe que ler faz bem ao cérebro, aumenta a conectividade entre partes da nossa massa cinzenta, como comprovado por um estudo feito em 2013 na Emory University nos EUA.

Mas ler ficção é ainda mais interessante.

Você gosta de ler ficção? Mistérios, Romances, Espionagem, Ficção Científica, Ficção Histórica, Memórias? Pois saiba que as pessoas que gostam de ler ficção, em geral, têm maior empatia por outros seres humanos. Consequentemente leitores de ficção são bons amigos, capazes de se sensibilizar com as emoções dos outros. Na instituição New School for Social Research, os psicólogos David Comer Kidd e Emanuele Castano aprofundaram o estudo sobre leitura, contrastando a ficção literária com a ficção comercial mais estereotipada.  Concluíram que a ficção literária ainda é melhor para o nosso entendimento do mundo, da sociedade que nos circunda, por apresentar uma realidade com personagens mais complexos que melhor refletem a vida real.

Ler, na verdade, ativa o nosso cérebro de tal maneira que ele imita as ações que lemos, passando para o leitor um pouco das emoções vividas pelos personagens fictícios.

[A título de curiosidade: recentemente senti meu coração bater mais rápido do que o normal, ao ler uma cena aterrorizante, de um inimigo batendo na porta de um apartamento onde se escondia um personagem, herói, na trilogia 1Q84, de Haruki Murakami.]

Tudo indica que quanto mais complexos os personagens, quanto mais ambíguos, quanto menos estereotipados, maior é o leque de emoções que permite o leitor de ter empatia pelo próximo  e melhor compreensão do mundo à sua volta.  No fundo, você se torna uma pessoa melhor.

Vamos ler…

 

Fonte: Mic





O Carnaval de Pedro Nava

3 02 2015

 

 

J. Carlos Paratodos 01Arlequim e Colombina, 1927

Capa da Revista Para Todos,26 de fevereiro de 1927

J. Carlos (Brasil, 1884-1950)

 

 

“Água não era só de chuva e de enchente. Mais abundante era a dos entrudos.  Carnaval. Passavam uns escassos mascarados, dominós de voz fina, diabinhos com que o Benjamim Rezende se divertia arrancando o rabos, quebrando os chifres. O Paulo Figueiredo, encantando minha avó com seu Pierrot  recamado de lantejoulas. Os primeiros lança-perfumes — Vlan e o Rodo. Mas o bom mesmo era o entrudo. Havia instrumentos aperfeiçoados para jogar água, como os relógios, assim chamados  porque esses recipientes imitavam a forma de um relógio fechado, com dois tampo metálicos flexíveis que, quando apertados, deixavam air um delicado esguicho de água perfumada. Havia de todos os tamanhos, desde os pequeninos, que vinham no bolso, aos enormes, que ficavam no chão e eram acionados com o pé. Havia os revólveres — seringas que imitavam a forma da arma — cano metálico e o cabo de borracha que se apertava, apontando quem se queria molhar. Os limões de todos os tamanhos e de todas as cores que eram preparados com semanas  de antecedência e em enorme quantidade. Continham água de cheiro, água pura, água colorida, mas os que caíam da sacada do Barão vinham cheios de água suja, de tinta, de mijo podre. Desciam ao mesmo tempo que as cusparadas das moças.  Além dos relógios, dos revólveres, dos limões, eram mobilizadas todas as seringas de clister e improvisados seringões com gomos de bambu. Todos os pontos estratégicos da casa eram ocupados com jarras, baldes, latas e bacias para esperar os atacantes. Porque havia os assaltos de porta a porta.  Éramos investidos pelos Pinto de Moura e depois do combate, já encharcados, confraternizávamos, para atacar a casa dos Gonçalves.  Logo depois já era um grupo maior que avançava sobre as fortalezas fronteiras dos Couto e Silva e do tio Chiquinhorta, onde nos esperavam valorosamente o Antonico e o Mário Horta. Meu pai comandava a refrega protegido nas dobras de um vasto macfarlane, cujas asas davam-lhe gestos de pássaro gigante. Acabava tudo numa inundação de vinho-do-porto, para rebater e cortar o frio. À noite meu Pai penava com asma…”

Em: Baú de Ossos: memórias, Pedro Nava, Rio de Janeiro, Sabiá: 1972, p. 261-62.





O funeral americano: guia para o filme “Álbum de família”

1 02 2014

Charles Sprague Pearce - A Village Funeral in BrittanyUm funeral em aldeia da Bretanha, 1891

Charles Sprague Pearce (EUA, 1851-1914)

óleo sobre tela

Danforth Art Museum, Massachusetts

Quando o pintor americano Charles Sprague Pearce dedicou a tela acima a um funeral em um aldeia francesa no final do século XIX, ele se manteve fiel à pintura de gênero, mostrando, a quem observasse sua tela, a maneira diferente dos franceses na despedida de um ser querido. Rituais de nascimento, morte, casamento, diferem muito de cultura para cultura. E se analisados podem refletir valores culturais que não são vistos pelo turista ou até mesmo o residente estrangeiro inserido naquela cultura, se este não estiver ligado por laços familiares ao local onde vive.

Fui ver recentemente o filme americano Álbum de família [August: Osage County]. Gostei muito, mas essa não é uma postagem sobre o filme. É uma postagem sobre os rituais da morte nos Estados Unidos, porque muitas das pessoas com quem conversei depois do filme mostraram surpresa e acharam o filme anacrônico, quanto aos hábitos do luto, maneiras culturais tão diferentes aqui no Brasil.

Primeiro é preciso levar em conta duas coisas que esquecemos com facilidade. Os Estados Unidos não são Nova York, Miami e Los Angeles.  Esse é um país de pequenas e médias cidades.  A população não tem a nossa ambição de morar em grandes centros.  A maioria dos americanos está muito feliz em morar longe das grandes metrópoles.  E não deseja a mudança.  Grandes cidades no país são tão estrangeiras para a maioria dos americanos quanto elas parecem a nós brasileiros que visitamos o país. Se colocarmos em números poderemos apreciar melhor.  O país tem hoje cerca de 315.000.000 – trezentos e quinze milhões de habitantes. Somando-se a população das três cidades que mencionei acima, as mais visitadas por nós, brasileiros, teremos: Nova York, em 2013, 8.333.000; Miami em 2010, 400,000; Los Angeles, em 2013, 3.862.000 – Total: 12. 595.000 – vamos então adicionar mais 25% para contabilizar subúrbios e outras áreas que contam como área urbana: 15. 744.000 (arredondando). Isso não chega a 5 % da população americana. 5% na minha matemática ainda é minoria.  Então qualquer experiência fora do ordinário nos hábitos culturais nesses locais não deve ser acolhida como a “verdade” americana.  Com essa barreira fora do caminho, voltemos ao processo funerário nos EUA.

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Funeral na aldeia, 1872

Frank Holl (Inglaterra, 1845-1888)

óleo sobre tela

Leeds City Art Gallery, Inglaterra

As ondas de imigrantes europeus aportando nos Estados Unidos durante o século XIX e início do século XX trouxeram homens e mulheres com uma grande preocupação — ter aquilo que lhes era negado ou difícil de obter em seus países de origem: um pedaço de terra onde pudessem plantar, colher e criar uma família, sem fome e sem pobreza.O país foi colonizado com esse sonho e por isso mesmo desde o início do assentamento, famílias foram se espalhando pelo país, pelas planícies e planaltos centrais, até chegarem à costa oeste no final do século XIX. As famílias extensas, ou seja, irmãos, tios, primos, todos os que para lá emigraram poderiam até no início permanecer no mesmo povoamento, mas à medida que oportunidades se abriam em outros lugares, pequenos núcleos familiares se mudavam cada vez para lugares mais distantes em busca do seu sustento digno. Como a entrega de cartas e pacotes já funcionava bem desde o século XVII, as famílias se mantinham em contato por cartas. Um país protestante leva vantagem quanto a alfabetização de sua população, já que a própria igreja incentiva o aprendizado, por achar imprescindível a leitura da Bíblia. Assim todos se comunicavam e sabiam dos nascimentos, dos casamentos, das mortes. Quando as estradas melhoraram, fortaleceram-se também os laços familiares. E os parentes começaram a se visitar pelo menos uma vez por ano.

Quando as povoações no meio do país, distante de tudo e todos viraram pequenos centros urbanos, já no início do século XX, cresceu também a ideia da reunião familiar para o enterro de um ente querido.  Fomentada pela indústria funerária que popularizou a arte de embalsamar como uma das maneiras de se manter o defunto em boa preservação por alguns dias, a prática tornou-se padrão em solo americano.  O ato de embalsamar, ainda que dispendioso, foi aceito pela maioria americana por fornecer a solução para um problema: como reunir a família para um enterro se seus membros moram em partes distantes de um país de tamanho colossal?   Ganharam todos: a indústria funerária por poder vender um serviço caro; e as famílias por poderem se reunir no momento de dor e fragilidade emocional. Mas isso acarreta outros problemas: como acomodar tantos parentes?  Como alimentar tanta gente? Como membros da família que não se falam se comportarão naquela ocasião de estresse emocional para todos?

Como é comum nos EUA, a solução veio com a comunidade.  Vizinhos se aprumam e recebem em suas casas qualquer excedente dos parentes da família em luto.  Preparam os pratos da culinária americana diária e os levam à casa do falecido.  Muitas vezes se a família tem laços com a igreja ou o templo local, algumas dessas tarefas são exercidas pela comunidade religiosa. Não é para uma festa, como já ouvi muitos interpretarem, a reunião familiar com comes e bebes.  É uma ocasião séria com comidas que aliviam a família e seus membros de terem que se preocupar com as tarefas do dia a dia, entre elas,  a alimentação de todos: crianças, adultos, idosos, que se deslocaram para participar do enterro. Tive algumas experiências pessoais e posso afirmar que o sistema funciona.

800px-Erik_Werenskiold_(1855-1938)2O funeral do camponês, 1885

Erik Werenskiold (Noruega, 1855-1938)

óleo sobre tela.

Meu pai morreu em minha casa nos Estados Unidos, dois dias depois do Natal, enquanto me visitava: ataque cardíaco. Minha mãe não falava inglês. A série de tarefas burocráticas para trazer o corpo para o Brasil e enterrá-lo no Rio de Janeiro era grande  – muitas resolvidas  pela casa funerária.  Mas levou tempo.  Minha mãe insistia em ir a uma missa.  Eu não morava numa cidade conhecida por ter uma população católica significativa.  Contra a vontade de mamãe, que não podia fazer nada, esperamos dois dias para podermos ir a uma missa em espanhol.  Frustração ainda maior para minha mãe. A igreja não parecia uma igreja católica, não tinha santos.  Tensão entre mãe e filha bem alta.  Ela não aceitava a realidade e eu não podia fazer as coisas diferentes. Nesse meio tempo, seguindo os hábitos americanos de praxe, meus sogros que já eram bem idosos e moravam a duas horas de viagem, vindos do leste chegaram para nos confortar.  Meu cunhado e sua esposa, vindos de outra cidade a duas horas de viagem a oeste, também vieram. Ninguém falava português a não ser eu e minha mãe. A tradução simultânea de condolências e de perguntas e respostas está entre as muitas situações de estresse desse momento. Eu não era religiosa, nem meu marido. O apoio dos membros da igreja, tradicional nessas horas, não existia. Mas… eu tinha duas grandes amigas americanas, que saíram de suas cidades, uma a cinco horas de viagem, a outra a três horas e passaram os quatro dias seguintes ao falecimento de meu pai, comigo.  Dormiram em sacos de dormir no chão da minha sala e cozinharam, limparam a casa, fizeram café da manhã, almoço, jantar… Sem M.E. e Nancy, amigas de longa data, colegas de pós graduação, mestrado, de viagens e de bagunça, sem elas, minha situação teria sido muito, mas muito mais extenuante.  Quando eu, meu marido e minha mãe embarcamos para o Rio de Janeiro, 4 dias depois, eu só estava inteira por conta delas. Esta solidariedade americana sempre me impressionou.

Quando meu sogro faleceu seis anos depois, tive contato mais próximo com os hábitos americanos. Ele era muito conhecido onde morava. Não só era membro ativo da Igreja Presbiteriana, como havia sido Superintendente das Escolas do governo, primárias e secundárias, no condado.  Quando o conheci era um senhor de bastante idade, meu marido sendo o caçula da família.  Meu sogro vivia às voltas com livros e manuscritos em sua vasta biblioteca particular.  Com um mestrado em história, fazia jus à vocação publicando e escrevendo livros da história local. Por isso mesmo era muito conhecido e conectado. Quando faleceu, meu marido e eu éramos os membros da família fisicamente mais próximos e cobrimos as duas horas de viagem de carro num relâmpago,  para tomarmos as rédeas da situação.  Meus cunhados moravam mais longe e quando chegaram já havíamos resolvido a maioria do que seria necessário resolver – e diga-se de passagem, minha sogra muito colaborou para isso, apoiada nas inúmeras amizades do bairro em que morava e da igreja onde era ativa participante.  Meu sogro tinha 7 irmãos. Minha sogra era uma de 6 irmãos. Mesmo eliminando os irmãos que já haviam falecido são famílias grandes. O enterro foi marcado para o sábado seguinte. Não me lembro do dia da semana em que ele faleceu, mas foi no início da semana: possivelmente uma terça-feira.  E a família começou a chegar. Todos os irmãos com 70- 80 ou mais anos, suas esposas, seus filhos, seus netos. Vinham de outras cidades no mesmo estado, de cidades nos estados vizinhos e de estados mais distantes.  A casa de dois andares espaçosa não conseguia abrigar a todos.  Todos ficaram em hotéis.  E a comida começou a chegar. Pratos e pratos de sanduíches, de galinha assada, de salada de repolho, frutas, pães, bolinhos, [cupcakes (da tradição americana, não essas imitações elucubradas da culinária da moda)] frutas, frutas e frutas, leite, caixas de cereais para a refeição matinal.  Duas senhoras vizinhas vieram ajudar a organizar, uma diarista que não sei quem contratou limpou a casa, trocou os  lençóis das camas…  Todas as mulheres entravam e saíam da cozinha de minha sogra com desenvoltura, lavando um prato, servindo suco, oferecendo um café, um chá gelado, algo para saciar a sede. Tudo o que poderíamos imaginar para o conforto dos enlutados chegou como que por milagre às mesas da cozinha, da copa e da sala de jantar. Meu papel nessa ocasião foi a de organizadora da logística. Conheci muitos parentes de meu marido que não havia tido a oportunidade de conhecer antes. E é inevitável: com dois, três ou quatro dias de convivência começam as pequenas fofocas, as grandes reconciliações, os eventos que mudarão o cenário da família daí por diante.  Porque a própria morte de um dos patriarcas, nesse caso, já traz consigo, impregnada, as mudanças na família.  Quando  sexta-feira chegou, e havia a visita oficial ao falecido na casa funerária, marcada para ter início às 17 horas, estávamos todos lá.  Sim, de luto, de preto, os homens de terno e gravata escuros, camisas brancas, também os adolescentes vestidos assim; as mulheres com roupas sóbrias, tailleurs. Meias finas qualquer que seja o calor lá fora. Sem chapéu.  Chapéu só para eventos até o por do sol, à noitinha, nunca.  Conversa-se muito nessa ocasião, sobriamente, aos sussurros. Com respeito. Nenhuma gargalhada, ou piada. O corpo está presente. Ninguém fica muito tempo. Mas há um livro para assinaturas que a família levará para casa como lembrança daqueles que se preocuparam em ir. É triste, circunspecto e solene.

Leon Frederic-633758A ceia após o funeral, 1886

Léon Frederic (Bélgica, 1856-1940)

óleo sobre tela

O filme Álbum de família se concentra no período após o enterro, que no caso de meu sogro foi na manhã seguinte.  A esta altura todos os participantes já estão no local.  Em qualquer cidade de tamanho médio ou menor os cemitérios costumam estar localizados fora do perímetro urbano e uma caravana de carros uns atrás dos outros, com seus faróis acesos, sai da igreja onde o serviço religioso foi presenciado por toda a família e pelas pessoas que irão ao cemitério.  A tradição dos carros irem com seus faróis acesos para que ninguém interrompa a caravana, em geral encabeçada e finalizada por carros de polícia foi norma em todos os estados em que morei, mas não posso confirmar que seja costume no país inteiro. Tem muito a ver com o trânsito.  Mas onde morei chega a fazer parte das perguntas na prova escrita para a carteira de motorista.  Você não deve interromper uma dessas caravanas encabeçadas pelo carro fúnebre, liderado pela polícia, que segue em direção ao cemitério.  Depois da breve cerimônia do enterro, ainda com todos os presentes vestidos de negro, homens de paletó e gravata, mulheres em luto com ou sem chapéu, todos saem em direção à casa da família enlutada. E aí participam da última ceia que farão juntos.  Todos ainda com seus ternos escuros que não tiram nem para aliviar o calor.  No cinema com uma amiga carioca ouvi sua surpresa quando no filme Meryl Streep pede aos homens presentes que coloquem de volta seus paletós parar sentar à mesa e rezar antes da refeição.  Tal pedido teria sido apropriado à minha sogra, caso tivesse havido na família alguém com coragem de desafiar as regras do jogo. Mas como ninguém queria aborrecê-la, não houve a ocasião retratada no filme. Este talvez seja o momento de maior tensão no funeral americano. Todos já estão prontos para sair, para voltar às suas vidas normais, longe dali. Minha sogra, sabendo que provavelmente muito tempo passaria antes de voltar a ver a sobrinha que mora em outro estado, o irmão que está com a saúde fraca, e assim por diante, prolonga o almoço e começa a distribuir algumas lembranças do falecido.  “Fulano, você sempre gostou dessa cadeira de balanço, aproveite que está de carro e ponha-a na mala, E.,  gostaria que você a tivesse”;  “Sicrano, olha só,  a coleção de livros “Harvard Classics” leve para casa, seus filhos podem usá-la”… e assim segue.  É o lado prático que vem à tona.  A família não sabe quando se encontrará de novo assim com todos os membros, e é preciso aproveitar a presença de todos.  Até porque, é preciso que todos entendam o que foi dado a quem e quando.  Diversos dias já se passaram desde a morte. Já houve tempo para os laços familiares se reafirmarem, quem gosta de quem e de quem não se gosta.  É hora de selar as preferências.  Não sei se todas as famílias são assim, mas algo semelhante certamente ocorre. Há um acerto familiar.  E é justamente nestes dias pós-morte que a tensão do filme se desenrola.  Há muito tempo não vejo um filme tão realista sobre a vida americana.  Vale lembrar no entanto que esta é uma família com sérios problemas emocionais que não se repetem na maioria das famílias americanas.  Álbum de família mostra como, talvez pela própria tensão, este momento pode trazer uma grande catarse para aqueles a quem a morte tocou de perto.





Uma cadeira vazia…

4 10 2013

Edward Alfred CucuelChá no parque

Edward Alfred Cucuel (EUA,1875-1954)

óleo sobre tela

A vida é um sopro.  Disseram-me isso na semana passada quando passei uns dias um pouco desorientada: uma amiga de muitos anos morreu subitamente, em casa. Olga tinha idade.  Era uma senhora. Cabeça e corpo em ótimo estado.  Só a asma crônica dava trabalho de vez em quando. Mas estava de viagem marcada para Inhotim daqui a umas semanas e no início deste ano já havia passeado pela América Latina, em uma de suas inúmeras viagens com membros da família.

 Já conheci Olga aposentada. Havia trabalhado usando seu maravilhoso senso estético:  havia sido designer de azulejaria para uma grande companhia brasileira. Mas era uma artista fora do trabalho também, tendo se dedicado à pintura por muitos e muitos anos. Grande senso estético.  Tudo que resolvia fazer com as mãos saía bonito.  Equilibrado.  No meu aniversário, este ano, fez uma toalha de mesa para mim, belíssima, colorida, uma combinação elegante de variados chitões.  Em boutiques de cama e mesa  seria vendida por uma pequena fortuna. Era audaciosa no design. Cores vibrantes. Ideias destemidas.  Como no quadro/escultura em que ripas pintadas e espaçadas, brincavam com o espaço nulo entre elas. Que efeito!

Olga era uma das mulheres que entrou para o grupo de leitura há dez anos.  Era das mais antigas.  Veio pelas mãos de uma amiga em comum.  A amiga foi embora.  Olga ficou.  E nos deu, a todos nós, grandes lições.  Ensinou pelo exemplo.  A independência era um de seus traços mais marcantes. Além da generosidade, do senso de humor e da impaciência com os que se dedicavam às lamentações.   No grupo de leitura primava por opiniões sinceras, complexas e invariavelmente certeiras. Tinha uma maneira única de interpretar. Lembro-me de algumas ocasiões em que defendeu um livro mesmo quando dezesseis outras pessoas o criticaram.  O cemitério de Praga, de Umberto Eco, foi um desses.

Estava sempre disposta a fazer algum programa cultural.  Ávida por visitar exposições de arte, por participar de uma palestra. Colocava-se em situações que favoreciam falar inglês e francês, para não perder a fluência em ambas as línguas. E generosa, dispunha-se a dividir conosco sua bela residência.  E nós adorávamos.  Foi lá que celebramos alguns encontros do grupo.  Foi lá que recebemos escritores para um bate-papo com o grupo. Foi uma real participante do Papa-livros.  Deixa 16 amigas que sentirão muito sua falta.  Estou entre elas.

olga abramson 1927-2013Olga Abramson

1927-2013





Travessuras, texto de Maria Ramos

11 02 2013

Pomar, Marie Cramer

Pomar, ilustração de Marie Cramer.

“Uma tarde após haver apanhado muitos figos, resolvemos, minha irmã, eu e as crianças da vizinhança, brincar de visita. Minha casa seria em cima do galinheiro. Como consegui por ali uma cadeira de balanço para receber a visita da comadre Geni Lopes não me recordo. O certo é que no melhor da festa, com todas as visitas sentadas em cima do telhado, e saboreando os figos esplendidos que eu lhes servira na porcelana chinesa da mamãe, o teto desabou. As visitas caíram no galinheiro, por cima dos poleiros, quebrando a louça e destroncando o meu braço, que ficou na tipóia vários dias.

Mas, na falta do pé de araticum que nos servia de mirante, havia as laranjeiras. Uma noite, cantavam salmos na igreja, quando eu pensei em apanhar umas laranjas. Depois de algum tempo, encarapitada no mais alto dos ramos, vi o Sonthia, de quem não gostava muito, deixar a igreja a caminho de casa. Joguei-lhe uma laranja que acertei em cheio. Ele parou, olhando espantado em todas as direções. Quando se voltou, mandei-lhe outra fruta, que se abriu de encontro à sua fatiota branca. O guri pegou sangue. Vociferando veio em direção ao muro. Mandei-lhe outra laranja que se esborrachou no meio da rua. Ele não hesitou: atravessou-a e veio bater na nossa porta. Desci rapidamente e enquanto o atendiam, eu já estava na esquina, olhando as pessoas que saíam da igreja e que, quase todas conhecidas, falavam comigo com muito afeto. Quando mamãe chegou à janela e me viu encostada ao lampião, conversando com a Chiquita, gritou para dentro:

— Veja só! Eu até já estava acreditando no que tu disseste…

Nisto, assomou ao lado de mamãe a cabeça de Sonthia, que me olhou fulo de raiva, insistindo que havia sido eu quem lhe jogara as laranjas. Mamãe despachou o guri, recomendando-lhe que de outra feita não fosse tão precipitado.

Disfarçando a falta de um pé de sapato, entrei em casa e já estava tirando a roupa para dormir quando mamãe deu pela coisa:

–Atirei por aí… Deve estar debaixo da cama.

Pouco depois, bateram à porta era o Sonthia. Tinha um ar triunfal e escondia algo atrás das costas.

— Olha aqui, Dona Mininha, o que eu achei embaixo da laranjeira – diz, mostrando o pé de sapato.”

Em: Banhado em flor, de Maria Ramos, Rio de Janeiro, do autor: 1963 — Introdução de Érico Veríssimo.  Prêmio Júlia Lopes de Almeida, da Academia Brasileira de Letras, 1964. p. 79-80.

Maria Senhoria Ramos nasceu em Cruz Alta, RS em 1910. Memorialista, jornalista e poeta. Radicou-se no Rio de Janeiro.

Obras:

Sol, ainda,  poesia, 1956

O gaúcho e suas tradições, folclore, 1958

Colombia de perto,  viagem, 1962

Banhado em flor, memórias, 1963





Para minha avó, no dia de seu aniversário.

28 01 2013

Vovó Albina, década de 20 -- 1920sMinha avó, Albina, aos 26 anos, já casada, por volta de 1924, no Rio de Janeiro.

Em termos de astrologia o fato de meus quatro avós terem nascido sob o signo de Aquário,  em anos diferentes mas num período de sete dias (28 de janeiro, 30 de janeiro e 4 de fevereiro),  deve significar alguma coisa interessante. Não sei. Mas, além disso, tive dois avós — meu avô, pai de papai, e minha avó, mãe de mamãe, que nasceram no dia 28 de janeiro.

Albina,  mãe de minha mãe, se estivesse viva faria 115 anos, hoje.  Não gostava de tirar retratos. Daí serem poucas as fotos que restaram. Dela herdei os olhos azuis, os dela mais azuis ainda do que os meus.  Em comum, a pele claríssima e, dizem, o temperamento forte.  Nunca soube muito bem o que essa expressão significa, pelo menos no que me toca…  Talvez meus desafetos saibam.  Fisicamente temos o tipo celta, uma explicação portuguesa que atribui essas características ao biotipo comum no norte de Portugal, na Galícia e na Irlanda.  Funciona.  Todos os antepassados que tenho do lado materno e paterno, vindos de Portugal vêm do norte do país: do Minho, de Trás-os-montes e da Galícia.

Meu bisavô, João, pai de Albina, era português de Viana do Castelo, mas sua família tinha raízes na Galícia, certamente em Tuy.  Mas vamos e venhamos, Tuy, era só do outro lado do rio Minho.  É tudo a  mesma coisa…  Minha bisavó, mãe de vovó, Maria da Glória, era brasileira, filha de brasileiros de origem minhota, mas radicados no Brasil, desde de 1820, pelo menos essa é a data mais antiga que tenho sobre eles. Eles, os Proença [e a escrita pode ser também Proenza], viviam na região de Vassouras e Valença, no estado do Rio de Janeiro.  Como e porque chegaram lá não sei, só sei que são de Viana do Castelo e da Galícia.  São muitas gerações passadas, avós e bisavós de minha avó.  Mas, continuo à procura, encarregada que sou da árvore genealógica familiar.

DSC09302Albina Proença Fernandes Leitão, aos 16 anos, 1914.

Vovó estudou num dos mais antigos colégios para meninas, escola de formação para moças, educação humanista-cristã de irmãs vicentinas, no Rio de Janeiro: Colégio da Imaculada Conceição, na Praia de Botafogo, fundado em 1854.  Está lá, de pé, até hoje, educando geração após geração.  Tem em seu terreno uma belíssima igreja — Igreja da Imaculada Conceição associada ao colégio —  em estilo pseudo-gótico, projetada em 1866 pelo arquiteto Padre Clavelin, prédio característico da segunda metade do século XIX.  Lembro-me que quando eu estava nos primeiros anos da escola, havia nesse local também um asilo para idosos.  Não sei se ainda existe.  Mas todos os anos, mamãe e eu, íamos a este asilo, porque algumas das senhoras que lá estavam, bordavam por encomenda e os emblemas da escola, nos bolsos de nossos uniformes, meus e de meus irmãos, eram bordados por essas senhoras do asilo que ficava por trás do colégio, do lado esquerdo da igreja.

Era a caçula de cinco irmãos e ficou órfã de pai ainda criança, bem pequena.  Histórias familiares atribuem a morte de meu bisavô a um acidente num bonde ainda puxado a burros, aqui no Rio de Janeiro, no centro da cidade.  Era o ano de 1903.  Ele tinha, com um irmão, uma serralheria, localizada próxima aos Arcos da Lapa e foram assim responsáveis por muitas grades e sacadas de ferro fundido, artisticamente desenhadas, encontradas até hoje nos bairros mais antigos da cidade. Vovó Albina também perdeu a mãe muito cedo,  aos doze anos de idade, num incêndio.  A casa onde moravam, na Tijuca, pegou fogo.  Maria da Glória, depois de viúva, trabalhou como professora primária no colégio onde sua filha estudava.  Depois que sua mãe morreu,  Albina foi morar com uma tia, do outro lado da Baía de Guanabara, em Niterói. Não sei quando se mudaram para o Rio de Janeiro, mas em 1922, quando vovó se casou, já morava no Rio de Janeiro há alguns anos.

???????????????????????????????Livro de receitas.  Seleção de vovó Albina, para a neta que se casava…

Deve ter sido bonita. Pelo menos, meu avô caiu de amores por ela ao vê-la na janela de casa.  Dizem que aquele aluno da Faculdade de Direito, mandado pela família de Mato Grosso para estudar na capital,  passou por aquela rua na Tijuca por dois anos, todas as tardes, só para vê-la.  E o futuro advogado, que tinha um quê de trovador e seresteiro, chegou a fazer uma ou duas serenatas, acompanhadas ao violão, que arriscava tocar, e por colegas de faculdade, aos pés da janela da amada.  Mas o tio de vovó Albina, num instante acabou com aquela demonstração de encantamento.  Não era para uma moça de respeito.  Com  medo de não vir a ser aceito como um bom partido, meu avô se submeteu às restrições familiares.  Casaram-se no civil, em 26 de outubro de 1922.

Albina teve uma educação rígida.  E passou muitos de seus ensinamentos para nós, principalmente depois que veio morar conosco, quando ficou viúva.  Já nessa altura havia uma grande defasagem entre a sua maneira de educação e a que meus pais nos deram.  Mas com ela aprendemos os princípios sociais básicos, os obrigados — sempre usados — os bom-dias.  Vovó tinha um hábito interiorano, que deveria ter herdado de sua mãe: dizia boa noite quando as luzes eram acesas pela primeira vez, na hora do lusco-fusco diário.  Fui alvo de muitos de seus ensinamentos, principalmente por ser a única menina da minha geração.  Só tive primos homens neste lado da família.  Assim, sentar-me ereta, cruzar as pernas com os pés embaixo da cadeira, mãos pousadas no colo, sem cotovelos à mesa e assim por diante, eram repetidos diariamente sem dó.  Ensinamentos nem sempre acolhidos com o bom humor com que hoje me lembro deles.

Vovó Albina com RicardoMinha avó com meu irmão Ricardo.

Era prendada. Foi com vovó que aprendi a fazer crochê.  E cheguei a tricotar.  Mas nunca tive sua habilidade no tricô, para somar e subtrair pontos com perfeição, para que pudesse fazer competentemente blusas e sapatinhos de bebê.  Faço cachecóis. Herdei dela o hábito de não conseguir ficar sem fazer nada com as mãos.  Se vejo televisão, também faço crochê, bordo, limpo joias de prata, faço algo.  Foi assim que acabei fazendo colchas de retalhos à moda americana, patchwork, à mão  como pede a tradição.  Fiz duas, para duas sobrinhas, quando nasceram. Vovó Albina também fez uma colcha de retalhos, de fuxicos, para cada uma de suas filhas e para mim, enquanto via televisão no sofá da sala.  Foi um presente, para minha vida de casada.  É divertido examiná-la, porque nela estão retalhos de meus vestidos de criança, de roupas de mamãe, de vovó, um verdadeiro cofre com mementos no formato de rodelas de pano. Guardo esta colcha com carinho e não sei o que fazer com ela, quando tiver que pensar em passar meus tesouros adiante… Também guardo dela, e este não está nas melhores condições, porque foi um dos presentes mais úteis que já recebi na vida,  um livro de suas receitas favoritas. Até hoje um dos mais preciosos tesouros que alguém já preparou para mim.  Todas as receitas copiadas à mão, em tinta de tinteiro, azul, receitas fáceis, do dia a dia, que foram e são até hoje uma fonte inigualável de saber culinário.  Com esse livro sou capaz de reproduzir aqueles gostos da infância, os gostos da minha casa, da casa dela, da família.  As sobremesas mais queridas.  Como ela, gosto de cozinhar.  Não faço como ela o arroz cor de rosa, com bastante tomate, mas gosto de experimentar na cozinha, e se tenho audiência, boas-bocas, não tenho limites na cozinha.

Minha avó estabeleceu para mim, além de Dona Benta do Monteiro Lobato, o protótipo de todas as avós. Não só  fazia os quitutes de que gostávamos.  Também jogava cartas conosco, inicialmente burro, um jogo de cartas para crianças, e depois que ficamos mais velhos ela gostava de um buraco.  Brinquei muito de cama-de-gato, com ela, passando das mãos dela para as minhas o barbante entrelaçado nos dedos.  E com ela aprendi as canções infantis do bã-balalão, senhor capitão;  o domingo, “pé de cachimbo” [pede cachimbo];  a brincadeira do rei-soldado-capitão-ladrão;  o gato atrás do rato e o nome de todos os dedos das mãos.  Vovó sempre jogou, o jogo da memória comigo, mas não com as pedras que conhecemos hoje, mas com cartas do baralho.  Ria-se com facilidade e ria silenciosamente, com o corpo todo tremendo, às vezes chegava às lágrimas de riso. Chegava a corar, nessas ocasiões. Tinha a pele macia, cheirosa: talco da Helena Rubinstein e pó de arroz da Coty, das caixas redondas, estampadas de marron e branco.  Era um prazer especial, sentar ao seu lado encostar minha cabeça no seu ombro ou nos seus braços.  Quando aprendi piano, mostrou-me algumas de suas músicas favoritas, canções, valsas antigas cujas letras ainda se lembrava, e as cantava, baixinho, com a voz aguda de soprano, solfejando. Tinha a boca bem pequenina, como das melindrosas.  São muitas as memórias.  E hoje as coloco aqui, num agradecimento póstumo, que há muito eu lhe devia.  Feliz aniversário!





O cemitério do Caju, texto de Pedro Nava

13 01 2013

DSC00822Cemitério de São João Batista, Rio de Janeiro.

Não sei se existe uma história dos cemitérios do Rio de Janeiro. Quase todos foram abertos depois das hecatombes da febre amarela, a partir de dezembro de 1849. O do Caju é anterior. É o mais antigo da cidade. Foi instalado em 1839 por José Clemente Pereira, numa gleba comprada à José Goulart, para enterrar os indigentes e escravos até então sepultados nos terrenos de Santa Luzia, onde se  ia erguer o atual hospital da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. Foi chamado Campo-Santo do Caju. Seu primeiro defunto foi inumado em 1840. Em 1851, o nome foi mudado para o de Cemitério de São Francisco Xavier. Entretanto, não só persiste a antiga denominação como ela entrou nas frases feitas. Assim, quando se diz – um dia,  Pedro, irás para o Caju – quer dizer – um dia, Pedro, ai! de ti, também morrerás e serás enterrado. Naquele ano o campo-santo é ampliado e juntaram-se as terras de José Goulart, as da antiga Fazenda do Murundu, de Baltasar Pinto dos Reis.  Em 1858, desmembra-se o terreno que vai ser o cemitério da venerável Ordem Terceira da Penitência e em 1859 o que vai ser o cemitério da venerável Ordem Terceira do Carmo. Essa vasta área corresponde, mais ou menos, ao que é hoje limitada pela Avenida Brasil, pelas Ruas Carlos Seidl, Indústria e Monsenhor Manuel Gomes e nela estão os quatro cemitérios, fábricas, depósitos e favelas; as ruas novas dos fundos das necrópoles; e o Hospital São Sebastião. O aterros, em frente, fizeram desaparecer os cais da Limpeza Pública, o dos madeireiros e a ponta de terra onde desembarcavam os macabeus de Jurujuba – perante a grada de honra das palmeiras cruzando suas folhas como espadas verdes no silêncio do funeral anônimo. O mar foi para longe e os pobres mortos deixaram de ser devorados pelos necrófagos talássicos, os siris e os guaiamuns. Passaram a ser pasto dos de terra, os tatus e as baratas. Aí!  ser entregue às baratas…

Entramos no cemitério como quem penetra as imensidades. Não as urbanas, como as perspectivas dos três poderes, na Brasília; as dos Campo Eísios em Paris; do Zocalo, no México; da praça de São Pedro, e da Via da Conciliação em Roma.  Mais do que isto.  Mais que as próprias imensidades do pampa, do deserto, da estepe.  Eram as imensidades sem fundo do tempo fugitivo e eterno, do espaço verificável e infinito. Transpondo seu pórtico de pedra eu tive a percepção invasora (e para sempre entranhada e durável) de um impacto silencioso e formidando. Alguma coisa se passou ali, se passou em mim, invisível, como que incometida e destituída de flagrante ação. Um súbito vazio, rarefação do elemento essencial a que eu bati guelras de ansioso peixe. Na imensa ausência eu só captava os círculos concêntricos da palavra oásis, da palavra oásis, da palavra oásis, se desprendendo da sineta que repicava para o defunto que chegava e para o enterro com que fomos de cambulhada. A entrada principal do campo-santo era uma larga avenida que a cobiça da Santa Casa foi estreitanto de tanto vender os palmos de terra onde capelas ricas e modernas cobrem a vista dos túmulos dos primeiros tempos.  Logo à esquerda os do Visconde e do Barão do Rio Branco. O deste, apenas um cubo de alvenaria caiada a espera que a Nação construa o monumento do construtor de suas fronteiras. Logo depois a moça abraçada a uma coluna (cujo mármore se derrete como um torrão de açúcar, da sepultura de Águeda Francisca Durão. O belo monumento de letras apagadas de José Clemente Pereira. À direita, o de José d’Araújo Coelho com sua pirâmide e  sua cabeça de esqueleto. O da que foi Ana Maria Ribeiro de Araújo Sousa com a armaria da Morte: em campo de nada a caveira triunfante sobre tíbias postas em aspa. As de Luísa Rosa Avendano Pereira e do médico Roberto Jorge Haddock Lobo. No fim das duas quadras iniciais o Cruzeiro de granito, todo dourado do tempo e azinhavrado dos musgos, abre seus braços de árvore de pedra, de moinho de pedra – sobre o infinito luminoso do seu despencado em cima da baixada carioca e da baixada fluminense.  Nos degraus destes cruzeiros de cemitérios é que senta o Grão-Porco na meia noite das sextas-feiras de novilúnio. Senta e espera os destemidos que entram para solicitar ouro, poder e amor. Quem chega ao Porco e pede, já ganhou porque tem preenchida a condição — que é atravessar até ali sem desviar a cabeça, sem olhar para os lados, por mais que os defuntos saídos do chão da terra chamem com psius pelo nome, xinguem, vaem, cutuquem e puxem pela roupa.   Ai!  de quem olha para os lados, hesita, treme e para. Cai logo morto e cai fedendo de podre e de borrado.  Já quando ele vence, logo os cadáveres voltam para as covas que se fecham e estralejando as lajes e um vento largo e rude varre o cheiro da carniça, limpa a face da lua nova. O Porco imundo vira num príncipe prateado e todo airoso. Abraça o postulante e os dois saem juntos (porque o Vinícius, lá fora gritou que já é sábado!) – saem juntos, para nunca mais se separarem. Nem nós de cá desta vida, nem nós de lá de depois da morte….

Em Balão Cativo: memórias/ vol2, Pedro Nava, Rio de Janeiro, José Olympio:  1973, pp: 40-42