Minutos de sabedoria: Laura Ingalls Wilder

23 04 2019

 

 

 

03 - john falter, festa, reunião, 1954Ilustração de John Falter (EUA, 1910 -1982), data: 1954.

 

 

“Lembre-se de mim com alegria e sorrisos, porque é assim que me lembrarei de todos vocês. Mas se você só se lembrar de mim com lágrimas, então não se lembre de mim por nada. “

 

Laura Ingalls Wilder

 

“Remember me with smiles and laughter,
for that’s how I’ll remember you all.
If you can only remember me with tears,
then don’t remember me at all.”

 

 

Laura_Ingalls_Wilder_cropped_sepia2Laura Ingalls Wilder (1867 -1957)




Lembranças das procissões no Rio de Janeiro, Ladyce West

14 04 2017

 

 

ROMANELLI, ARMANDO (1945). Procissão, óleo s eucatex, 20 X 20. Assinado no c.i.d. e no verso datado (1979).Procissão, 1979

Armando Romanelli (Brasil, 1945)

óleo sobre eucatex, 20 x 20 cm

 

 

Fui surpreendida por uma pequena procissão passando pela minha rua no Domingo de Ramos. Surpreendida porque moro, há muitos anos, a meio quarteirão de uma igrejinha do século XIX, tombada pelo IPHAN, na rua principal do bairro.  Não me lembro dessa procissão no calendário da minha janela. Foi pequena, mas muito linda e delicada, cantada, e percorreu rapidamente a rua onde moro.  Essa procissão recorda a entrada triunfal de Jesus Cristo em Jerusalém, evento mencionado nos quatro evangelhos cristãos. Da igreja minha vizinha só me lembro da procissão de Sexta-feira Santa, talvez a mais triste das procissões católicas. Silenciosa, ela percorre o bairro, no meio da tarde, ao som de uma catraca levada pelo padre, que é tocada a cada cinquenta metros, quando todos param por alguns segundos e logo retomam seu caminho.

Procissões eram mais comuns no Rio de Janeiro. Tenho lembranças de infância de imensas procissões, em outro bairro carioca.  Venho de uma família católica semi-praticante.  Meu pai, filho de um provedor da Igreja de Santa Luzia no centro da cidade e de uma católica dedicada à teosofia, foi educado inicialmente em escola de padres e depois no Colégio Pedro II. Físico e químico industrial era católico perfunctório.  Minha mãe, professora de línguas, filha de um advogado agnóstico e uma católica, ficou mais religiosa à medida que os anos chegaram. Resultado: três filhos, uma superficialmente católica, um católico seriamente praticante e um seriamente agnóstico.  Íamos à missa nas ocasiões especiais.  Papai raramente.  Fomos batizados, fizemos primeira comunhão.  Mesmo sem grande comprometimento religioso havia ritual e respeito quando passavam as procissões.  Morávamos num edifício antigo construído no estilo Art Nouveau com as típicas janelas-portas, muitas vezes chamadas de portas francesas, que, de cada cômodo, se abriam numa sacada que dava para a frente da rua.  Quando as procissões passavam, em dias especiais, mamãe tirava do armário duas colchas bordadas e outra de origem italiana em veludo grená com desenhos em amarelo ouro — que eu me lembre, nunca usadas em outras ocasiões — e colocávamos essas colchas nas sacadas, penduradas por sobre o patamar, como se fossem grandes e respeitosas bandeiras homenageando a procissão que passava.  Lembro-me de ter visto, mais de uma vez,  uma procissão em particular que passava à noite, com as pessoas segurando velas, protegidas por cones de papel, para que as chamas não se apagassem. Cena muito impressionante para essa menininha. Um pouco depois de completar meus sete anos nos mudamos e nunca mais tive a oportunidade de encontrar tanto fervor religioso nas ruas do Rio de Janeiro. Só aos 22 anos, quando fui ao Peru, com uma bolsa de estudos, encontrei procissão semelhante em fervor e devoção, além de ver também janelas dos sobrados no centro de Lima com parapeitos cobertos com colchas, tapetes e panos coloridos. Era a procissão celebrando o dia de San Martin de Porres, santo peruano, que tem o curioso atributo de levar uma vassoura na mão.

Quando finalmente me dediquei ao mestrado em história da arte, encontrei em  quadros europeus dos século XVIII e XIX cenas que me remeteram à infância, com  sacadas cobertas com colchas e veludos nas ocasiões religiosas, hábito que mais tarde, por pura curiosidade, descobri vir desde os tempos da Baixa Idade Média, dos grandes festivais na praça principal das cidades.  Uma pena que tenhamos perdido esse belo e respeitoso hábito, que nos liga diretamente às nossas origens europeias.

©Ladyce West, Rio de Janeiro: 2017

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Para minha avó, no dia de seu aniversário.

28 01 2013

Vovó Albina, década de 20 -- 1920sMinha avó, Albina, aos 26 anos, já casada, por volta de 1924, no Rio de Janeiro.

Em termos de astrologia o fato de meus quatro avós terem nascido sob o signo de Aquário,  em anos diferentes mas num período de sete dias (28 de janeiro, 30 de janeiro e 4 de fevereiro),  deve significar alguma coisa interessante. Não sei. Mas, além disso, tive dois avós — meu avô, pai de papai, e minha avó, mãe de mamãe, que nasceram no dia 28 de janeiro.

Albina,  mãe de minha mãe, se estivesse viva faria 115 anos, hoje.  Não gostava de tirar retratos. Daí serem poucas as fotos que restaram. Dela herdei os olhos azuis, os dela mais azuis ainda do que os meus.  Em comum, a pele claríssima e, dizem, o temperamento forte.  Nunca soube muito bem o que essa expressão significa, pelo menos no que me toca…  Talvez meus desafetos saibam.  Fisicamente temos o tipo celta, uma explicação portuguesa que atribui essas características ao biotipo comum no norte de Portugal, na Galícia e na Irlanda.  Funciona.  Todos os antepassados que tenho do lado materno e paterno, vindos de Portugal vêm do norte do país: do Minho, de Trás-os-montes e da Galícia.

Meu bisavô, João, pai de Albina, era português de Viana do Castelo, mas sua família tinha raízes na Galícia, certamente em Tuy.  Mas vamos e venhamos, Tuy, era só do outro lado do rio Minho.  É tudo a  mesma coisa…  Minha bisavó, mãe de vovó, Maria da Glória, era brasileira, filha de brasileiros de origem minhota, mas radicados no Brasil, desde de 1820, pelo menos essa é a data mais antiga que tenho sobre eles. Eles, os Proença [e a escrita pode ser também Proenza], viviam na região de Vassouras e Valença, no estado do Rio de Janeiro.  Como e porque chegaram lá não sei, só sei que são de Viana do Castelo e da Galícia.  São muitas gerações passadas, avós e bisavós de minha avó.  Mas, continuo à procura, encarregada que sou da árvore genealógica familiar.

DSC09302Albina Proença Fernandes Leitão, aos 16 anos, 1914.

Vovó estudou num dos mais antigos colégios para meninas, escola de formação para moças, educação humanista-cristã de irmãs vicentinas, no Rio de Janeiro: Colégio da Imaculada Conceição, na Praia de Botafogo, fundado em 1854.  Está lá, de pé, até hoje, educando geração após geração.  Tem em seu terreno uma belíssima igreja — Igreja da Imaculada Conceição associada ao colégio —  em estilo pseudo-gótico, projetada em 1866 pelo arquiteto Padre Clavelin, prédio característico da segunda metade do século XIX.  Lembro-me que quando eu estava nos primeiros anos da escola, havia nesse local também um asilo para idosos.  Não sei se ainda existe.  Mas todos os anos, mamãe e eu, íamos a este asilo, porque algumas das senhoras que lá estavam, bordavam por encomenda e os emblemas da escola, nos bolsos de nossos uniformes, meus e de meus irmãos, eram bordados por essas senhoras do asilo que ficava por trás do colégio, do lado esquerdo da igreja.

Era a caçula de cinco irmãos e ficou órfã de pai ainda criança, bem pequena.  Histórias familiares atribuem a morte de meu bisavô a um acidente num bonde ainda puxado a burros, aqui no Rio de Janeiro, no centro da cidade.  Era o ano de 1903.  Ele tinha, com um irmão, uma serralheria, localizada próxima aos Arcos da Lapa e foram assim responsáveis por muitas grades e sacadas de ferro fundido, artisticamente desenhadas, encontradas até hoje nos bairros mais antigos da cidade. Vovó Albina também perdeu a mãe muito cedo,  aos doze anos de idade, num incêndio.  A casa onde moravam, na Tijuca, pegou fogo.  Maria da Glória, depois de viúva, trabalhou como professora primária no colégio onde sua filha estudava.  Depois que sua mãe morreu,  Albina foi morar com uma tia, do outro lado da Baía de Guanabara, em Niterói. Não sei quando se mudaram para o Rio de Janeiro, mas em 1922, quando vovó se casou, já morava no Rio de Janeiro há alguns anos.

???????????????????????????????Livro de receitas.  Seleção de vovó Albina, para a neta que se casava…

Deve ter sido bonita. Pelo menos, meu avô caiu de amores por ela ao vê-la na janela de casa.  Dizem que aquele aluno da Faculdade de Direito, mandado pela família de Mato Grosso para estudar na capital,  passou por aquela rua na Tijuca por dois anos, todas as tardes, só para vê-la.  E o futuro advogado, que tinha um quê de trovador e seresteiro, chegou a fazer uma ou duas serenatas, acompanhadas ao violão, que arriscava tocar, e por colegas de faculdade, aos pés da janela da amada.  Mas o tio de vovó Albina, num instante acabou com aquela demonstração de encantamento.  Não era para uma moça de respeito.  Com  medo de não vir a ser aceito como um bom partido, meu avô se submeteu às restrições familiares.  Casaram-se no civil, em 26 de outubro de 1922.

Albina teve uma educação rígida.  E passou muitos de seus ensinamentos para nós, principalmente depois que veio morar conosco, quando ficou viúva.  Já nessa altura havia uma grande defasagem entre a sua maneira de educação e a que meus pais nos deram.  Mas com ela aprendemos os princípios sociais básicos, os obrigados — sempre usados — os bom-dias.  Vovó tinha um hábito interiorano, que deveria ter herdado de sua mãe: dizia boa noite quando as luzes eram acesas pela primeira vez, na hora do lusco-fusco diário.  Fui alvo de muitos de seus ensinamentos, principalmente por ser a única menina da minha geração.  Só tive primos homens neste lado da família.  Assim, sentar-me ereta, cruzar as pernas com os pés embaixo da cadeira, mãos pousadas no colo, sem cotovelos à mesa e assim por diante, eram repetidos diariamente sem dó.  Ensinamentos nem sempre acolhidos com o bom humor com que hoje me lembro deles.

Vovó Albina com RicardoMinha avó com meu irmão Ricardo.

Era prendada. Foi com vovó que aprendi a fazer crochê.  E cheguei a tricotar.  Mas nunca tive sua habilidade no tricô, para somar e subtrair pontos com perfeição, para que pudesse fazer competentemente blusas e sapatinhos de bebê.  Faço cachecóis. Herdei dela o hábito de não conseguir ficar sem fazer nada com as mãos.  Se vejo televisão, também faço crochê, bordo, limpo joias de prata, faço algo.  Foi assim que acabei fazendo colchas de retalhos à moda americana, patchwork, à mão  como pede a tradição.  Fiz duas, para duas sobrinhas, quando nasceram. Vovó Albina também fez uma colcha de retalhos, de fuxicos, para cada uma de suas filhas e para mim, enquanto via televisão no sofá da sala.  Foi um presente, para minha vida de casada.  É divertido examiná-la, porque nela estão retalhos de meus vestidos de criança, de roupas de mamãe, de vovó, um verdadeiro cofre com mementos no formato de rodelas de pano. Guardo esta colcha com carinho e não sei o que fazer com ela, quando tiver que pensar em passar meus tesouros adiante… Também guardo dela, e este não está nas melhores condições, porque foi um dos presentes mais úteis que já recebi na vida,  um livro de suas receitas favoritas. Até hoje um dos mais preciosos tesouros que alguém já preparou para mim.  Todas as receitas copiadas à mão, em tinta de tinteiro, azul, receitas fáceis, do dia a dia, que foram e são até hoje uma fonte inigualável de saber culinário.  Com esse livro sou capaz de reproduzir aqueles gostos da infância, os gostos da minha casa, da casa dela, da família.  As sobremesas mais queridas.  Como ela, gosto de cozinhar.  Não faço como ela o arroz cor de rosa, com bastante tomate, mas gosto de experimentar na cozinha, e se tenho audiência, boas-bocas, não tenho limites na cozinha.

Minha avó estabeleceu para mim, além de Dona Benta do Monteiro Lobato, o protótipo de todas as avós. Não só  fazia os quitutes de que gostávamos.  Também jogava cartas conosco, inicialmente burro, um jogo de cartas para crianças, e depois que ficamos mais velhos ela gostava de um buraco.  Brinquei muito de cama-de-gato, com ela, passando das mãos dela para as minhas o barbante entrelaçado nos dedos.  E com ela aprendi as canções infantis do bã-balalão, senhor capitão;  o domingo, “pé de cachimbo” [pede cachimbo];  a brincadeira do rei-soldado-capitão-ladrão;  o gato atrás do rato e o nome de todos os dedos das mãos.  Vovó sempre jogou, o jogo da memória comigo, mas não com as pedras que conhecemos hoje, mas com cartas do baralho.  Ria-se com facilidade e ria silenciosamente, com o corpo todo tremendo, às vezes chegava às lágrimas de riso. Chegava a corar, nessas ocasiões. Tinha a pele macia, cheirosa: talco da Helena Rubinstein e pó de arroz da Coty, das caixas redondas, estampadas de marron e branco.  Era um prazer especial, sentar ao seu lado encostar minha cabeça no seu ombro ou nos seus braços.  Quando aprendi piano, mostrou-me algumas de suas músicas favoritas, canções, valsas antigas cujas letras ainda se lembrava, e as cantava, baixinho, com a voz aguda de soprano, solfejando. Tinha a boca bem pequenina, como das melindrosas.  São muitas as memórias.  E hoje as coloco aqui, num agradecimento póstumo, que há muito eu lhe devia.  Feliz aniversário!





O mundo em 11 x 16 cm — cartões postais para onde foram?

15 08 2011

Modelo escrevendo cartões postais, 1906

Carl Larsson ( Suécia, 1853-1919)

Meu avô materno me apresentou ao passatempo de colecionar cartões postais e com isso plantou as sementes da viajante em mim, um grande desejo de conhecer o mundo.  Ele descobriu outros países a trabalho, mas sempre achou uns minutos para mandar cartões postais variados, com pequenas notas de viagem para cada membro da família: três filhas, esposa, netos, genros e amigos.   Vem desse tempo a minha fascinação por postais.  Talvez tenha sido nessa época o início do meu gosto pelas artes gráficas.  Não sei.  Mas cartões postais fizeram parte de toda a minha infância e adolescência: do Oiapoque ao Chuí, do Senegal à Suíça, o mundo se descortinava para mim, com cada visita do carteiro.  O formato era o mesmo, um envelope comum de 11 x 16 cm, mas o conteúdo, ah… como variava!   Havia os cartões com fotografias de locais pitorescos, dos principais monumentos do mundo; havia os postais com bonequinhas com roupas de diferentes regiões dos países europeus, bordadas no cartão e alguns postais com curiosidades esdrúxulas: da feira de produtos agrícolas da Sérvia, aos tocadores de cornetas na Suíça, com seus instrumentos tão longos que pousavam na terra, em gramados impecáveis por entre as montanhas alpinas.  Havia também os postais que eram fotos de vovô: à beira do Lago …, nos Jardins de Luxemburgo…  Cartões que hoje imagino terem sido tirados em lambe-lambes locais ou seus equivalentes no estrangeiro.  Os postais do Brasil eram sempre em preto e branco, alguns mais avermelhados,  com o nome dos locais escritos em branco sobre as fotos.   Alguns postais eram quase desenhados, fotos trabalhadas com tinta e coloridos posteriormente…  Além, dos cartões postais com desenhos interessantes:  na Páscoa pintinhos e ovos ou no meu aniversário, uma cestinha com gatinhos falando em francês: Joyeux anniversaire!

Recentemente tive a idéia de voltar a alguns dos lugares brasileiros cujos postais guardei por tanto tempo.  A maioria está irreconhecível!  Aí sim, vemos o crescimento populacional, as mudanças na paisagem.  Estive em Teresópolis, no estado do Rio de Janeiro, com um cartão nas mãos, para ver à distância o Dedo de Deus.  No meu cartão eu deveria estar num campo cheio de cavalos pastando…  Hoje, daquele mesmo ângulo eu estaria no meio de alguns edifícios de muitos andares.   Tudo mudou.

Postais da minha estadia na Argélia.

Ontem, passando os olhos nos blogs do The New York Times, encontrei o interessante artigo de Charles Simic, titulado A decadente arte de escrever postais [The Lost Art of Postcard Writing], que me trouxe uma enxurrada de memórias, não só de cartões recebidos como de cartões mandados, das centenas de postais que encaixotei soltos, amarrados em grupos com cordões plásticos, com elásticos, em caixas de sapatos, em álbuns, pulando de residência em residência, de guarda-móveis a guarda-móveis, resultado de uma vida de inúmeras viagens e de longas moradias em quatro diferentes continentes.  Charles Simic está correto: estamos perdendo o hábito de mandar postais, e certamente de escrevê-los.  Mas ainda há muita gente adepta… Vejam a quantidade de postais à venda nos jornaleiros dos pontos próximos a lugares turísticos ou a hotéis no Rio de Janeiro.

O postal para mim foi sempre uma maneira de fazer uma pausa no quarto de hotel, no café da manhã, no bar de praça européia.  Um momento de reflexão sobre onde eu estava e o que havia visto.  Nunca fui de escrever:  Saudades.  Gostaria que você estivesse aqui…   O envio do postal, já indica  que estou pensando em quem o recebe.  E saudades também são assim expressadas.   Esse sentimento tão pessoal, delicado e fluido, quase melancólico não pertence, a meu ver, a uma mensagem que se encontra descoberta, exposta a qualquer um, nua, avidamente devorada pelos olhos de quem quer que manipule o cartão.  É pessoal demais…  Meus recados em postais são sempre baseados naquilo que eu diria para a pessoa a quem endereço as mensagens caso estivesse contando a minha viagem.  Sempre fui prolífica, principalmente com o pessoal da família.  Já até tive que colocar postais em envelopes, porque houve lugares – todos em países comunistas — em que os Correios achavam que tinha escrito demais no cartão, que já contava como carta…   Prolífica, todos que lêem esse blog já sabem que sou …

Cartão postal de Ghardaia [Pentápolis] — A praça do mercado

Querida mamãe: É assim mesmo!  O mercado na praça de Ghardaia.  Não tem o que tirar nem por. Você não pode imaginar o labirinto de ruas de +- 1,50m a 2m de largura pelo centro da cidade à medida que se sobe o morro para se chegar à mesquita no topo.  Só se vê homens – o meio de transporte é o burrico.  As mulheres que se vê têm véu e só deixam um olho aparecer.  Elas se viram de encontro à parede quando um homem passa.  Beijoca, L…

Cartão postal de Beni-Isguen [Pentápolis], cemitério do Palmeiral.

Querida mamãe: Este tipo de arquitetura dos oásis de Ghardaia, foi o que inspirou a arquitetura de Le Corbusier quando ele fez a Capela Ronchamp.  Outros arquitetos famosos como Frank Lloyd Wright também foram muito influenciados pela arquitetura dos Mozabites.  Beijocas, L…

Mostro o que escrevi, mas não me considero uma excelente “escritora” de postais. Isso porque tenho amigos que parecem mais sucintos, mais interessantes nas suas observações.  Recebi uma vez um cartão postal de um amigo que visitava Petrópolis, com a foto da casa de Santos Dumont, uma única frase:  Ele já morava nas alturas… para a volta à Torre Eifel foi um passo… Taí… Diferente… a continuação de uma conversa jogada no ar… Maravilha!

Charles Simic em sua postagem menciona algumas outras observações em postais feitas por amigos e lembra que não conhece nenhuma coletânea de escritos de cartões postais como as que existem de cartas, mas que se houvesse,  está certo de que a coletânea seria bastante interessante.    Pessoas que por uma frase, ou por uma observação revelam-se aos amigos de forma mais que imprevisível. Há muitos exemplos e Simic nos dá um bem humorado:

Queridos Mamãe e Papai, perdemos nosso último centavo e chegamos ao limite dos cartões de crédito em Las Vegas e estamos pegando carona desde então, às vezes passando a noite na cadeia de modo que pudemos tirar vantagem das cozinhas locais providenciadas pelas polícias do Texas.  Vocês vão gostar de saber que um padre levado à cadeia por dirigir bêbado e com quem dividimos uma cela recentemente nos disse que parecemos um casal de antigos mártires cristãos.  Os noivos.  

[Dear Mom and Dad, We lost our last penny and maxed our credit cards in Las Vegas and have been hitchhiking ever since, spending a night in jail at times so we could avail ourselves of whatever local cuisine the law enforcement provides in Texas. A priest arrested for drunken driving who shared our cell recently told us that we look like a couple of early Christian martyrs, you’ll be happy to hear.  The Newlyweds]

A comunicação entre amigos e familiares mudou muito.  O telefonema internacional está do tamanho do bolso de quem viaja e as fotos digitais nos fazem participar das viagens de nossos amigos quase em tempo real.  Neste verão tive uma inundação de emails com fotografias das diversas aventuras internacionais de amigos e conhecidos e confesso que, como Charles Simic, senti saudades da comunicação por cartão postal.  Os avanços tecnológicos são facas de dois gumes: ao mesmo tempo que participamos gratuitamente do desenrolar de uma aventura, de uma viagem especial de nossos amigos e familiares, também temos nossas caixas postais entupidas por emails com fotografia mal tiradas, muitas vezes de celulares, onde vemos Fulano com a Torre Eifel ao fundo, Beltrano na muralha da China, e até o café da manhã de Sicrano na Polônia…   Será que precisamos mesmo dessa intimidade toda?

Se não recebemos as fotos por email, temos a coleção das mesmas estampadas nas nossas páginas no Facebook, como se todos os momentos das vidas de quem conhecemos fossem de interesse absoluto e essencial para todos os que dali participam.  Voltamos de uma maneira tortuosa ao passado, às noites em que nos reuníamos na companhia de parentes para ver uma infinita coleção de slides documentando as “férias fabulosas” de nossos conhecidos, dos nossos familiares, que apareciam em frente aos pontos turísticos mais conhecidos do mundo.  Um exercício de paciência e de sono contido.  Uma verdadeira maratona que testava a amizade e o amor ao próximo.   Pelo menos hoje em dia, podemos colocar uma ou duas observações em fotos no site de relacionamento e dar por encerrada a atividade voyeurística.

Praça Paris, cartão postal,  coleção Flicker, favaro JR.

A vantagem do cartão postal está na seleção da foto, que é sempre de qualidade.  E na breve mensagem escrita à mão, que revela a quem o recebe as características de quem o enviou.  Há também uma dupla filtragem, coisa maravilhosa, de forma e conteúdo: as escolhas da imagem do cartão e do texto.  A atividade requerida em escrever um texto que irá viajar pelo mundo, já pede que pensemos no que dizer e como dizer; enquanto que a escolha do que mostrar, da foto, da imagem que mandamos, também nos dá a oportunidade de dividir com uma pessoa específica um ponto de vista, um enfoque, uma ironia, uma piada, um carinho.  A facilidade da foto digital, mandada por email ou através de sites de relacionamento permite que não se selecione, nos permite a auto-indulgência, a promiscuidade visual.  Não há triagem, não há exigência.

Além disso, o cartão postal oferece não só uma visão do lugar que se visita, mas também, e não menos importante, uma visão do que o povo daquele lugar que se visita considera importante para que os turistas se lembrem daquele local.  Há uma troca. Quando morei na Argélia, por exemplo, tive grande dificuldade de encontrar cartões postais que refletissem o que via à minha volta.  Muitos dos postais eram reimpressões de outra época no país, quando ainda fazia parte da França.  À minha volta as coisas eram diferentes e essa discrepância me incomodava.  E, como havia muitos lugares onde não era permitido se fotografar – o governo não dava muita liberdade nem a turistas nem a residentes temporários como nós – ficava difícil poder repartir as minhas experiências com familiares e amigos.

Cartão postal, Praia de Copacabana, Rio de Janeiro, coleção Flicker: rio antigamente

A recente exposição Turismo no Rio de Janeiro, no Espaço Cultural Fundação Getúlio Vargas, mostrou como o cartão postal serve de testemunha da história de um local.  Muitas vezes  fotos de fotógrafos amadores se perdem.  Fotos dos meios de comunicação concentram-se mais no dia a dia local.  São justamente os cartões postais as imagens que nos dão uma idéia mais sistemática do crescimento de uma comunidade, de seus valores e de seus encantos.  E porque são produzidos aos milhares, têm uma melhor chance de serem preservados.

Da próxima vez que você viajar, mande um postal aos seus amigos e ajude a preservar a história daquele lugar, além é claro, de preservar a amizade e o carinho que você tem pelo seu correspondente.

©Ladyce West, Rio de Janeiro: 2011