O golfe, texto de William Boyd

18 10 2016

Bia Betancourt [Beatriz Falanghe Betancourt] (Brasil, 1963) Golfista, ast, 70 x 180 cmGolfista

Bia Betancourt  (Brasil, 1963)

acrílica sobre tela, 70 x 180 cm

 

 

“Uma das coisas da África de que mais sinto saudade é meu golfe com Dr. Kwaku no campo mirrado de Ikiri. Sinto falta do golfe e da cerveja na ladeira do clube, assistindo ao por do sol.Por que será que gosto de golfe? Não é um esporte estrênuo o que é uma vantagem. O grande benefício é que, ainda que o sujeito não seja um exímio jogador, é ainda possível que realize jogadas no mesmo nível daquelas dos grandes jogadores mundiais. Lembro que um dia eu tinha levado um fragmentário sete à paridade quatro no oitavo buraco em Ikiri e me posicionei para o curto nono, uma paridade três, com um seis-ferro. Morrendo de calor, suado e irritado, balancei, golpeei, a bola planou, quicou uma vez no marrom e caiu no buraco. Um buraco em um. Foi a tacada perfeita — não dava para ninguém fazer melhor, nem mesmo o campeão mundial. Não consigo pensar em nenhum outro esporte que dê ao amador a chance da perfeição. Aquela jogada me deixou feliz por um ano, todas as vezes que eu me lembrava dela….”

 

Em: As aventuras de um coração humano, William Boyd, Rio de Janeiro, Rocco: 2008, tradução de Antônio E. de Moura Filho, p. 421-22.

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O casamento, texto de Julian Fellowes

19 08 2016

Their_First_Quarrel,_Gibson2A primeira briga, 1914

Charles Dana Gibson (EUA, 1867-1944)

gravura

 

 

“O convívio social tem o grande mérito de abrandar a idiotice do consorte e o casal que não conversa, jamais descobre que não tem muitas afinidades. A companhia do outro tem o mesmo efeito da aposentadoria para as pessoas de classe média, ou seja, causa divórcio.”

 

 

Em: Esnobes, Julian Fellowes, tradução de  Beatriz Horta, Rio de Janeiro, Rocco: 2016, página 164.

 





No futuro… texto de William Boyd

31 05 2016

 

 

john a copley (EUA) seedling_jpgPlantando, 2007

John A. Copley (EUA,contemporâneo)

acrílica sobre tela, 20 x 25 cm

www.johnacopley.com

 

 

“Fui até o jardim e fumei um cigarro. Na semana passada, plantei uma árvore no último canteiro do jardim, em homenagem ao nosso bebê. A muda tem a minha altura e, pelo que vejo, pode atingir doze metros de altura. Então, daqui a trinta anos, se ainda estivermos vivos, vou poder voltar aqui e vê-la no esplendor de sua maturidade. Entretanto, a ideia me deprime: daqui a trinta anos estarei na casa dos sessenta e vejo que esses projetos, feitos de forma irrefletida, começam a se extinguir. Vamos supor um período de quarenta anos então. Seria demais. Cinquenta? Eu provavelmente não estarei mais aqui. Sessenta? Morto e enterrado, certamente. Graças a Deus não plantei um carvalho. Seria esse um bom exemplo de limite temporal? O momento em que você percebe — meio racionalmente, meio inconscientemente — que o mundo, num futuro não muito distante, não terá mais você: que as árvores que você plantou continuarão a crescer, mas você não estará aqui para testemunhar isso.”

 

 

Em: As aventuras de um coração humano, William Boyd, Rio de Janeiro, Rocco: 2008, tradução de Antônio E. de Moura Filho, p. 217-18.





Um ser urbano, texto de William Boyd

8 04 2016

 

walsh_CENTRALCAMERA1webCentral Camera, 2012

Nathan Walsh (GB, 1972)

óleo sobre tela, 60 x 103 cm

Coleção Particular

 

 

“Minha natureza é essencialmente urbana e, embora Los Angeles seja indubitavelmente uma cidade, de algum modo seus costumes não são. Talvez seja o clima que confira um eterno ar suburbano e provinciano: as cidades precisam de extremos de climas, de forma que você almeje  fugir delas. Acho que eu poderia morar em Chicago — gosto quando viajo para lá. Além disso, tem de haver algo brutal e descuidado sobre a verdadeira cidade — o habitante precisa se sentir vulnerável — e não se encontra isso em Los Angeles, ou pelo menos, não vi nada disso no curto espaço de tempo que passei no lugar. Sinto-me muito à vontade aqui, muito aninhado. Essas não são experiências da verdadeira cidade: sua natureza entra por baixo da porta e pelas janelas — não dá para se ver livre. E o sujeito genuinamente urbano é sempre curioso — curioso sobre a vida nas ruas. Isso definitivamente não se aplica ao caso de Los Angeles: o cara mora em Bel Air e não se pergunta o que está acontecendo em Pacific Palisades — ou se ele está perdendo alguma coisa.”

 

 

Em: As aventuras de um coração humano, William Boyd, Rio de Janeiro, Rocco: 2008, tradução de Antônio E. de Moura Filho, p. 373





Resenha: “As aventuras de um coração humano” de William Boyd

13 03 2016

 

Danielle Klebes (EUA,)Dalton the writer, ost,50x60cmDalton, o escritor

Danielle [Klebes] James (EUA, contemporânea)

óleo sobre tela, 50 x 60cm

 

As aventuras de um coração humano é um livro extraordinário e se destaca na literatura contemporânea. Meu primeiro contato com William Boyd foi com Brazzaville Beach, lido no início dos anos 90. Seduzida pela narrativa, procurei e li as obras anteriores do autor: The Ice Cream War e A Good Man in Africa, e mais tarde Armadillo. Depois, dei uma pausa. Comprei Solo e Restless. Ambos se encontram na minha estante. Mas não os li. Fui aconselhada a ler As aventuras de um coração humano. Ainda bem que segui o conselho. Que obra! Ficção da melhor qualidade.

Trata-se da história de Logan Mountstuart, cidadão inglês, nascido em 1906. Acompanhamos sua vida desde a universidade, Oxford, onde ele se esforça para obter um diploma em história. Seguimos sua trajetória até falecer, aos oitenta e cinco anos, em 1991. Nosso conhecimento do personagem é intimo, pois vem através de seus diários. Sabemos o que faz, seus motivos, suas fragilidades. Tomamos conhecimento do que lhe dá medo, prazer, alegria, desespero. Podemos achar que é um bobo, um sem-vergonha, um escritor inteligente, um oportunista, um homem honesto, um herói. Rico ou pobre (ele vai de um extremo ao outro) seguimos sua vida, a aventura de viver, sua saga particular.

 

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No ano passado, as teorias do Dr. Arthur Aron que há mais de 20 anos mostrou como duas pessoas desconhecidas poderiam se apaixonar, se respondessem a 36 perguntas íntimas, olhando nos olhos um do outro, voltaram às notícias científicas. Sua teoria, que muitos haviam questionado, parece ter sido redescoberta e reavaliada. O que se provou é que há maior probabilidade de uma paixão ser iniciada quando há aproximação, contato entre duas pessoas, através do conhecimento de detalhes íntimos que são revelados enquanto se olha nos olhos do interlocutor até então desconhecido. É claro que o leitor de As aventuras de um coração humano não consegue olhar nos olhos de Logan Mountstuart, mas é capaz de conhecer intimamente o homem através de seu diário, revelador de detalhes íntimos, de desejos recônditos, desgostos, esperanças, amores e fantasias eróticas. Acompanhamos esse homem por mais ou menos sessenta anos. E assim como na teoria de Arthur Aron professor de psicologia na SUNY [State University of New York], nos apaixonamos por Logan Mountstuart à medida que o conhecemos intimamente. Amor que independe das idiossincrasias, do comportamento ocasionalmente duvidoso, do conhecimento de motivos nem sempre nobres do nosso herói do cotidiano do século XX.

A vida de Logan se desenvolve em paralelo e por dentro da história do século passado. Por isso, vemos como os eventos que nada têm a ver com o homem comum, chegam a influenciar suas decisões, sua sorte, seu destino. Isso, adicionado às escolhas feitas, às vezes por capricho, pode ter consequências inimagináveis na vida de uma pessoa. A sorte distribui suas benesses, vendada. Sobreviver é “matar um leão por dia”, mas muito do que fazemos, muito do que decidimos, tem uma grande percentagem da ocasião, do momento, da chance, do azar, da coincidência. Logan não é um herói, é um homem comum, um escritor que atinge um certo sucesso. No entanto sua vida tem viradas incríveis, ocasionais, acontecidas por decisões pequenas, dele ou daqueles que o circundam, ou até mesmo daqueles que não conhece. É natural, portanto, que ao final da vida ele escreva: “No fim, é isto que se leva da vida: o agregado de toda a sorte e de todo o azar que se experimenta. Tudo é explicado por essa fórmula simples. Junte tudo — olhe as respectivas pilhas. Não há nada que se possa fazer: ninguém compartilha, aloca isso para esse ou para aquele, simplesmente acontece. Temos que sofrer as leis da condição humana silenciosamente, como diz Montaigne.” [p. 482] Logan luta pela sobrevivência física, profissional, emocional toma decisões que nem sempre são as melhores e por vezes só encontra suas consequências uma ou duas décadas mais tarde. Mas ele não deixa de ser um herói do dia a dia, um homem comum que reflete tudo que fazemos com heroísmo para a sobrevivência.

Muito deve ser dito a respeito da maravilhosa montagem dessa história. Li numa entrevista de William Boyd para o jornal inglês The Guardian, em novembro de 2004 [Nice one, Cyrill] que uma das coisas que ele achou mais difíceis foi escrever as entradas nos diários, em linguagem plena, sem ser uma linguagem literária, e que não viesse a descortinar o futuro, porque quando se escreve um diário, não se tem ideia daquilo que virá a ser importante na sua vida no futuro. “O futuro é um vazio: não sabemos se esta decisão que tomamos virá a mudar a nossa vida.” [The future is a void: we don´t know if this decision we have taken will be life-changing…] Por isso, escrever ficção como entradas em um diário parece requerer outra dose de criatividade.

 

118438099_boyd_367375cWilliam Boyd

 

William Boyd trabalhou seu texto com excelente artesania. Tão convincente, de fato, tão preciso na escolha dos detalhes da cena artística europeia da primeira metade do século passado, e de novo tão verossímil nas descrições do mundo das artes em Nova York depois da Segunda Guerra, tão crível, que me encontrei, mais de uma vez, procurando por Logan Mountstuart no Google, certa de que se tratava, de fato, da vida de algum um escritor e crítico de arte de pequeno porte, mas do mundo real e não imaginário. Isso graças à enorme pesquisa de detalhes das cenas artísticas de Paris, Londres e Nova York, fatos talvez nem tão importantes, e certamente desconhecidos da maioria do público, mas que sendo verdadeiros dão uma imensa riqueza na contextualização do personagem.

Em 2010 li um livro de ficção, também em forma de diário da escritora canadense Carol Shields, que achei uma obra espetacular, de grande criatividade. Chama-se Os diários de pedra [RJ, Record:1996]. Também em forma de diário, esse livro me deixou igualmente perplexa: saber que se trata de ficção, mas simultaneamente não acreditar que tudo, tudo não fazia parte de uma vida real, foi difícil. O livro de Shields, no entanto, baseava-se quase todo em fatos imaginados, e os eventos descritos tinham a ver quase que exclusivamente com os personagens envolvidos. A obra ainda se apoiava em fotografias em preto e branco dos supostos membros da família retratada. As aventuras de um coração humano não usa desse artifício, nem precisa. E além disso, a ficção se entremeia tão bem com a vida histórica que outros leitores também expressaram sua perplexidade, sua descrença de que não se tratava de alguém que havia de fato existido. Suas opiniões no site da Amazon, como no site Goodreads, mostram que eles também tiveram reações semelhantes à minha.

Quando Logan Mountstuart chega ao final, viveu uma vida plena. Compartilhamos suas ilusões e frustrações. Somos seus amigos. Sabemos de quem se trata. Ele consegue ainda assim nos surpreender, mas de acordo com sua filosofia de vida. E sentimos o seu fim, como sentimos a morte de um amigo, de alguém que conhecemos bem. Poucas vezes me emociono com o que leio. Mas reconheço que fiquei entristecida ao saber do fim, desse amigo que eu adquirira através as quinhentas e poucas páginas do livro. Acho que você também poderia gostar dele. Não perca essa oportunidade.

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Uma forma de felicidade, texto de William Boyd

6 03 2016

 

johnsingersargent.John Singer Sargent On His Holidays 1902De férias, 1902

John Singer Sargent (EUA, 1856-1925)

óleo sobre tela, 137 x 244 cm

Lady Lever Art Gallery, Inglaterra

 

 

“Registro: um dia de intenso calor; amenizado por uma brisa constante. Subi a margem do riacho de água escura e fluente, na verdade, um afluente do Tweed, com caniço na mão procurando um lugar para ficar. À luz do sol, a sombra formada pelas árvores à beira do rio é escura como a boca de uma caverna. Encontro o local desejado, coloco minha garrafa de cerveja dentro de um pequeno redemoinho que se forma na superfície d’água. Pesquei por uma hora. Peguei três trutinhas, que devolvi ao rio. Comi pão e queijo, bebi cerveja estupidamente gelada e voltei para casa a pé, passando pelo interior até chegar a Kildonnan com o sol batendo nas minhas costas. Um dia de completa solidão, de tranquilidade e beleza perfeita às margens do rio. Uma forma de felicidade que preciso encontrar mais vezes.”

 

 

Em: As aventuras de um coração humano, William Boyd, Rio de Janeiro, Rocco: 2008, tradução de Antônio E. de Moura Filho, p. 135





O mercador de Swaffham, texto de Hilary Mantel

8 02 2016

 

london-tower-bridge-1895-grangerTorres da Ponte de Londres, 1895

Litografia

 

 

“Eles estão indo à igreja. O avô vai mostrar-lhe os anjos no teto e o Mercador de Swaffham esculpido na lateral de um banco e o cachorro do mercador, com suas orelhas redondas e uma longa coleira.

O Mercador de Swaffham: John Chapman era o seu nome. Uma noite ele sonhou que, se fosse para Londres e ficasse na Ponte de Londres, conheceria um homem que lhe diria como enriquecer.

No dia seguinte a esse sonho, Chapman pegou suas coisas e seguiu para Londres com seu cachorro. E ficou andando de um lado para o outro na Ponte de Londres, até que um lojista lhe perguntou o que estava fazendo ali.

— Eu estou aqui por causa de um sonho — respondeu o mercador.

— Sonho? —  admirou-se o lojista — Se eu acreditasse em sonhos estaria em algum lugar do interior chamado Saffham, no jardim de um caipira chamado Chapman, cavando embaixo do seu estúpido pé de pera — completou ele, com um olhar de desprezo, e voltou para dentro da loja.

John Chapman e seu cachorro retornaram a Swaffham  e cavaram embaixo da pereira. Lá, encontraram um pote de ouro. Em volta do pote estava escrito: “Embaixo deste pote existe outro duas vezes maior.” O mercador começou a cavar novamente e encontrou outro pote; e então sua fortuna estava feita.

John Chapman doou castiçais à igreja, reconstruiu a nave do lado norte quando esta caiu e contribuiu com 120 libras para a construção do campanário. Sua mulher Cateryne e seu cachorro estão esculpidos nas laterais dos bancos, a mulher com um rosário e o cachorro com a coleira. John Chapman tornou-se sacristão, a passou a usar uma toga de arminho.”

 

Em: Mudança de Clima, de Hilary Mantel, tradução de Maria dos Anjos Santos Rouch, Rio de Janerio, Record: 1997, pp.70-71

 

pedlar2O mercador de Swaffham é uma conhecida história folclórica inglesa.




Minutos de sabedoria: Hilary Mantel

5 02 2016

 

 

René Magritte La lectriceA leitora cativa, 1928

René Magritte (Bélgica, 1898-1967)

Óleo sobre tela, 92 x 73 cm

Coleção Particular

 

 

“O medo impossibilita a solidariedade e o poder do raciocínio.”

 

 

Hilary mantelHilary Mantel

 





Resenha: “O sentido de um fim”, Julian Barnes

6 09 2015

 

 

Anthony Morris (Grã-Bretanha, 1938) Retrato de Roger 1999Retrato de Roger

Anthony Morris, RP (Grã-Bretanha, 1938)

óleo sobre tela

 

 

 

Recentemente tive uma discussão acalorada com meu irmão sobre a lembrança de um evento da nossa infância. Cada um de nós, únicos protagonistas da aventura, se lembrava de coisas diferentes e em diferente ordem. Mais revelador ainda: cada qual só tinha a memória daquilo mais significativo para si mesmo. Guardamos para o futuro, para o nosso banco de memórias, para o perfil do nosso passado, só o momento de nosso próprio ato de bravura. Os dois haviam sido corajosos, individualmente, mas uma única lembrança, pessoal, individual, em que fomos heróis, se manteve.  Não chegando a um acordo, partimos frustrados, como se tivéssemos sido traídos pelo outro. Aí estava uma prova, para mim, historiadora, que de fato a reconstituição do passado é sempre ficcionalizada de acordo com o narrador. Faz parte do dia a dia, de quem se dedica à história, considerar que memórias são seletivas.  Julian Barnes adverte o leitor sobre esse fenômeno desde o início da narrativa, através de Adrian, um adolescente precoce em conversa com seu professor: “Esse é um dos principais problemas da história, não é senhor? A questão da interpretação subjetiva versus a interpretação objetiva, o fato de que nós precisamos conhecer a história do historiador, a fim de entender a versão que é colocada diante de nós.” [18]

O sentido de um fim, de Julian Barnes, trata diretamente da memória e da narrativa que damos às nossas vidas.  Trata da maneira sucinta e por vezes poética com que narramos nossas próprias lembranças; reeditando-as com a a passagem do tempo.  Julian Barnes também trata de maneira sucinta e poética o tema,  revelando a enorme dimensão do que pode existir por trás dos detalhes que escolhemos lembrar, dos fatos que obliteramos, e como a cada narrativa podemos encontrar uma nova interpretação.   Esta é uma obra magistral.  Pequena, enxuta, prova de que conteúdo não precisa ser copioso para ter impacto.

 

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Inicialmente O sentido de um fim parece estar contido nos preparativos a que, aos sessenta anos, Tony Webster, protagonista e narrador, se dedica ao colocar a vida em ordem para um futuro incerto.  Mas à medida que se recorda do passado e conclui que não realizara nada do que sonhara, é forçado a reconsiderar o que havia feito de sua própria vida, de seu casamento. Fora nada mais do que a vida de um homem comum. Tem vívidas recordações de sua adolescência e dos amigos de então. Lembra-se de sua primeira namorada e dos hábitos diferentes de relacionamentos  na época de sua juventude.  Esse início, a primeira parte da história, marca o tom de meditação que permeia a narrativa: uma longa ponderação sobre as expectativas que temos sobre o futuro, e sobre o comportamento humano.

As lembranças, cada qual acessada a partir de um gatilho diferente parecem sempre surpreendentes. Tudo é próximo da realidade e enigmático.  Revisto dezenas de vezes e sempre novo.  Como num processo de psicanálise ou inquérito policial, a cada recontagem, a cada rearrumação de fatos, uma lembrança resgatada, uma revelação, nem tão clara, nem tão nebulosa, mas presente.  A verdade?  Está em algum lugar e não chega a ser mencionada.

O título O sentido de um fim toma conotações inesperadas, imprevistas.   Muito mais do que estabelecer ordem em uma vida que se prepara para o fim, essa trama nos leva a questionar a veracidade das nossas certezas.  Somos, afinal, quem pensamos ser?

 

julian barnes, booker 2011Julian Barnes, ©AP Photo/Kathy Willens

 

De repente, a história singela, franca, desafetada, que prendeu nossa atenção até o final, levanta dúvidas. Sérias.  Não sobre si mesma. Mas ela interage conosco. Questiona.  No mesmo tom meditativo da narrativa, embarcamos numa ponderação a respeito do passado.  Rever a ficção das nossas vidas, não é fácil. Saberemos catar nos rincões da memória o que é verdade?  Separá-la, mesmo não conhecendo todos os fatos?  Sim, porque é isso o que somos, um conglomerado de ficções e alguns fatos aos quais damos a nossa identidade, não é mesmo?  Tony Webster, adolescente, não percebe a ficção do dia a dia. “Esse era outro de nossos temores: que a Vida não fosse igual à Literatura” [21]. Mas é.  A vida é igual à literatura.  Somos protagonistas da história que desenvolvemos, editamos, burilamos. Eliminamos fatos indesejados, colorimos a gosto. E em algum lugar, em algum ponto, essa fantasia toma uma vida própria, ambulante e acreditamos nela. Só mesmo um acontecimento inesperado, um evento de grandes proporções — como acontece em O sentido de um fim —  pode  desvendar a proporção de realidade que escolhemos esconder dos outros e de nós mesmos. Mas mesmo assim, não revelará tudo. Só o suficiente para o entendimento geral de uma determinada situação.

O sentido de um fim é uma joia, uma obra prima.

 

 

NOTA: Com este livro Julian Barnes ganhou o Booker Prize de 2011.





Sinuosamente sedutor, resenha: “A linha da beleza”, de Alan Hollinghurst

2 03 2015

 

Beer-street-and-Gin-laneBeer Street, 1751

[Uma de um par: Gin Lane, 1751 é a outra gravura]

William Hogarth (Inglaterra, 1697-1764)

gravura

 

A Linha da beleza é uma linha curva, em forma de esse [S], ou de serpentina, batizada pelo pintor, escritor e poeta inglês William Hogarth, em seu livro teórico, Análise da Beleza, de 1753. Hogarth defendia que essa linha, que vai e volta, teria a capacidade de ativar a atenção do espectador, de mostrar vivacidade e movimento sedutores, inigualáveis, principalmente quando comparada à linha reta, ou às linhas paralelas e até mesmo às linhas cruzadas. Essas outras estariam associadas a objetos inanimados e à morte. Alan Hollinghurst menciona essa linha, no título, e mais tarde a meio caminho da narrativa: “O arco duplo era a ‘linha da beleza’ de Hogarth, a tremulação de um instinto, de duas compulsões mantidas em um movimento não desdobrado (190). O título emprestado de Hogarth explica a trajetória de vida do personagem principal. Como em uma peça teatral, o romance é divido em três atos: primeiro Nick Guest no início de sua estadia como convidado [guest] na casa de um membro do Parlamento inglês; depois seu desempenho pós-graduação em Oxford e primeiras aventuras amorosas; por último, o momento em que se desliga daquela mansão, quatro anos mais tarde. Esses três tempos, seguem o movimento sinuoso que Hogarth considerava atraente: começa de um ponto zero, ganha volume e consistência na segunda parte e se fecha à saída de Nick Guest do convívio da família politicamente poderosa, já em outro estágio de maturidade emocional.

Semelhante sinuosidade é demonstrada pelo próprio Nick Guest que desliza sedutoramente por entre personagens do livro aliciando membros da família com quem vive. Loquaz, ágil, habilidoso na maneira se colocar, de dar apoio quando necessário, preocupa-se em agradar para não perder privilégios, à procura sempre da palavra certa. A impetuosidade não é uma de suas características. Ele é calculista. Procura compreender qualquer situação para dela tirar maior proveito; é um mestre da esperteza social, ciente do efeito que seus gestos, palavras ou ações podem ter entre aqueles com quem se relaciona. É o exemplo da vivacidade, do movimento sedutor e da atitude cativante com o fim de obter conquistas de âmbito pessoal. É o personagem principal, não chega a ser um anti-herói, mas está longe de ser um homem de caráter exemplar ou um ser humano confiável e idôneo. No entanto, talvez por conhecer sua maneira singular de pensar e seus motivos, somos seduzidos a saber o que acontece com ele do início ao fim da leitura.

 

Sign-painter-Beer_StreetDETALHE, o pintor de letreiros, na gravura de Hogarth que abre esta postagem.

 

Esta é a história de Nick Guest, que ao terminar os estudos em Oxford e decidir fazer o doutoramento em literatura, dá início a uma nova fase em sua vida. Não só ele se debruçará sobre a obra de Henry James, mas irá explorar sua homossexualidade até então confinada a sonhos e devaneios. Ambicioso, Nick não perde oportunidade para parecer aquilo que não é: membro da elite social e financeira do país. Confiando na sua habilidade de conversar, no seu conhecimento de música e literatura, na disciplina de prestar atenção aos detalhes de luxo e de estilo, e na curiosidade de observar aqueles à sua volta, Nick consegue negociar uma estadia por tempo indeterminado, na residência de uma família rica e influente na política. Com o conhecimento de antiguidades adquirido através de seu pai, um comerciante no ramo, Nick julga de longe o valor dos objetos que encontra nas casas que frequenta e considera seus donos pelo que possuem. Por isso mesmo, não tem um debate emocional interno ou qualquer crise de consciência ao aceitar presentes finos e luxuosos por favores sexuais, agindo como qualquer amante em relações às escondidas. Também fica longe de se considerar em dívida de fidelidade para com os membros da família que o acolheu. Nick observa as pessoas como objetos, mesmo aqueles que diz amar. Há um distanciamento palpável entre o que diz sentir e o que faz. Dar-se, abrir-se ao outro sem restrições, não faz parte de seu caráter. Nick é egoísta e tem um único objetivo: ser bem sucedido no amor.

 

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Hollinghurst mostra seus personagens sem exageros, de maneira realista e usa a ironia sutil, como base sólida para a análise do que retrata. Mesmo assim, não se pode deixar de lembrar que se trata de uma sátira da vida na Grã-Bretanha, na década de 1980. A narrativa é de grande precisão e distanciamento. Cenas difíceis de sexo, de promiscuidade e traições, todas são narradas com rigor e clareza. O extenso uso de drogas é claramente delineado. A procura obsessiva e indiscriminada por amor e aceitação, feita através do sexo, é necessidade do personagem principal e parte de sua angústia e de sua carência. No entanto, tudo é retratado de maneira tão exata e rigorosa que nos distanciamos e não somos capazes de sentir nem compaixão, nem ojeriza. Nick Guest não é melhor nem pior do que aqueles que o cercam, mas não consegue se identificar com grupo nenhum. Tampouco com homens ou mulheres. “Agora talvez ele realmente pudesse ir lá para cima e gozar a liberdade de ser o convidado avulso. Não se encaixava em nenhum dos ambientes “(145). Mais do que um convidado, Nick é um intruso em qualquer ambiente que habite. Ele não se encontra em lugar nenhum. Ao visitar sua cidade natal, sente-se um forasteiro, na Londres a que anseia pertencer não tem a credibilidade de nascimento ou dinheiro para entrar. Talvez por isso mesmo suas relações amorosas mais significativas sejam com imigrantes estrangeiros. O primeiro, que lhe dá o fora quando descobre que ele não tem dinheiro. E o segundo para quem se transforma em amante teúdo e manteúdo. Nick poderia até ser um personagem merecedor da nossa simpatia e compreensão. Mas não há nesse romance nenhum personagem merecedor desses sentimentos. Todos, sem exceção, são desprezíveis.

 

Alan-HollinghurstAlan Hollinghurst

 

A narrativa de Alan Hollinghurst é extraordinária. Ímpar. Referências à obra de Henry James são numerosas com o propósito de ilustrar o assunto da tese de doutoramento de Nick Guest. Mas é evidente que a mágica narrativa de James tem influência neste romance, se não pelo estilo, pelo menos pela ambientação. Aqui, como em James, os personagens são caracterizados por seu comportamento de encontro às expectativas que se tem deles. Temos uma visão de um grupo social – a classe da alta burguesia inglesa – de seus amores ilícitos e da ruptura dos códigos sociais em exercício e até mesmo de sua moralidade. As preocupações de Nick Guest com sua posição social, a vida amorosa de seus pares, o desejo de ascensão social interpretadas por ele muitas vezes com ironia colocam este romance em contexto semelhante ao encontrado no teatro, nas comédias de costume. O tom é por vezes cômico, satírico, espirituoso, repleto de diálogos vivos e contemporâneos. Hollinghurst tem ciência da posição que assume na história da literatura inglesa. E mais, suas constantes referências a escritores assumidamente homossexuais ou aos que, hoje, consideramos como homossexuais revelam que ele sabe exatamente onde sua obra deve se inserir na linha histórica da literatura gay inglesa: Shakespeare, Oscar Wilde, E. M. Forster, Henry James são apenas alguns dos parâmetros entre os quais sua obra se encerra. Mas considerar essa obra primeiramente um romance gay é extremamente redutivo e um desserviço ao mundo literário. Em questão está um romance cujo personagem principal tem características e personalidade universais: gosto pela luxo, beleza, posição social. Ele é egoísta, sinuoso, traiçoeiro. Superficial. E ele também é gay. Fazer de A linha da beleza uma obra, sobretudo gay é contribuir para a perpetuação de um preconceito. Este é um romance, um drama universal, pronto para uma série televisiva daquelas em que os ingleses se esmeram.

 

Este livro foi recipiente do Prêmio Man-Booker em 2004, o maior prêmio de literatura para os países da Commonwealth.

 

NOTA, 2/3/2015 — Acabo de ser informada que, de fato, o romance resenhado acima tornou-se uma série televisiva da BBC2, levada ao ar em 2006, com Dan Stevens [conhecido no Brasil como Mathew Crawley, da série Downton Abbey] no papel principal de Nick Guest.

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