Mãos gigantes

23 04 2023

Paisagem Imaginária, 1983

Antônio Henrique Amaral (Brasil, 1935-2015)

óleo sobre tela, 40 x 60 cm

Recentemente encontrei a obra de Antônio Henrique Amaral: Paisagem imaginária, de 1983.  Não a conhecia. Amaral usava imagens simplificadas, de grandes proporções.  Transmitia mensagens  alegóricas entendidas ou não pelo espectador.  Fartamente familiarizado com a arte Pop dos anos sessenta, Amaral desenvolveu, à moda de Andy Warhol, obras icônicas de seu tempo.  Elas levavam o espectador a identificar e reconhecer que as imagens tinham simbolismo relevante para o momento em que foram produzidos.  

Como Andy Warhol e outros artistas  Pop nos Estados Unidos, Amaral usou imagens de objetos corriqueiros, para montar seu discurso.  Cada espectador que tirasse suas conclusões.  Nos Estados Unidos, Andy Warhol escolheu latas de sopa, garrafinhas de Coca-Cola, retratos de Marilyn Monroe e de outros ídolos do momento para fazer sua denúncia  sobre o que era santificado no momento. Jasper Johns  produziu grande variedade de arte-objeto, das bandeiras americanas às latinhas de cerveja.  Todos com o mesmo objetivo de abrir os  olhos dos espectadores para o seu redor.  Jasper Johns era  mais politicamente envolvido, sobretudo com a Guerra do Vietnã, presente no dia a dia do americano dos anos sessenta do século passado.  Esse viés de engajamento político não foi desprezado por Antônio Henrique Amaral que dedicou muitas de suas telas a símbolos da vida cotidiana brasileira: bananas, bambus, bandeiras. Estas imagens, sobrepostas levavam ao engajamento político para qualquer observador de suas telas.  Amaral, convidava, como seus parceiros americanos,  o visitante da galeria ou museu a tirar conclusões frente suas telas, sobre momento histórico ou sobre a vida cotidiana da época.

À esquerda, Antônio Henrique Amaral, Sob a luz do Cruzeiro do Sul, 1993; à direita, René Magritte, Homenagem a Shakespeare, 1963.

Amaral foi responsável por obras enganosamente simples: imagens de  dimensões colossais ganhavam importância no imaginário do observador.  Deveria haver uma razão, uma mensagem numa tela repleta de bambus. Todos procuravam entender o simbolismo, dar significado ao grandioso ícone que encaravam.  Afinal, por que ver uma banana de um metro por oitenta centímetros? Que ele queria dizer com isso? E a banana na frente de duas bandeiras, a nacional e a americana?  Essas telas convidavam à conversa do espectador com o pintor;  quase demandavam a participação de quem as visse.

Genuíno produto segunda metade do século XX, Antônio Henrique Amaral não escapa à influência de seus colegas americanos.  No entanto, volta-se também para os artistas que trabalharam nos anos anteriores à Segunda Guerra Mundial. As  superimposições que usa, como bandeiras e bananas, surgem acompanhadas da estética de René Magritte, que era, por sua vez,  fruto de influências que acomodavam grandes discrepâncias de tamanho.  Comecemos com a importância dada aos objetos, como aconteceu durante o movimento Dada, com Marcel Duchamp.

Roda de bicicleta, 1951, 3º versão, original de 1913 perdido, Marcel Duchamp (França-EUA,1887-1968), ready-made, MOMA, NY

Desse período temos Duchamp e Man Ray, entre outros trazendo a “coisa pronta” [ready-made] para as galerias e colecionadores.  Magritte estava no início do século XX à procura do caminho a seguir.  Estes foram seus verdadeiros anos formativos.  Como uma esponja absorvia o que via, na arte de pintores contemporâneos, nas galerias de arte, revistas, anúncios o que lhe caísse nas mãos.  Foi diretamente influenciado pelos livros-colagem de Max Ernst, La femme 100 têtes e Une semaine de bonté, que precederam seu trabalho. Mas também teve notória influência de Giorgio de Chirico.  E não é que ambos Ernst e de Chirico  combinavam imagens díspares de tamanhos variados?

Em cima, René Magritte, Túmulo dos lutadores, 1960; embaixo, Antônio Henrique Amaral, Banana, s/d.

Característica da arte do século passado, de pintor em pintor, a compreensão do espaço a ser preenchido nas duas dimensões do papel ou da tela, ganha impulso com novas técnicas e maneiras de expressão. O colóquio entre presente e passado, pintura e escultura é frequente, sempre baseado nas obras daqueles que precederam o artista do momento.  Muita vezes, seus próprios contemporâneos servem de apoio a uma nova estética   absorvida ou determinada por uma movimento, por troca de ideias por comprometimento de objetivos.

 A imagem que suscitou essa postagem, Paisagem imaginária, imediatamente pareceu ter afinidade visual com a obra de Oscar Niemeyer, Mão, 1988 situada no Memorial da América Latina, em São Paulo. Teria ele intimidade com o  trabalho de Amaral?  A pintura de Amaral antecede o projeto escultórico de Niemeyer por cinco anos.

Em cima, Paisagem imaginária, 1983 de Amaral; embaixo Mão, 1988, Niemeyer.

 

Na década de 1980,  Oscar Niemeyer já conhecia o trabalho de Antônio Henrique Amaral. Quando pediu ao governador de São Paulo que o painel de Cândido Portinari, Tiradentes  de 1948, fosse realocado do Palácio dos Bandeirantes, para  Memorial da América Latina, em construção, abriu-se uma competição para artistas convidados com o objetivo de preencher o vazio criado no palácio do governo que ficara despido.  Aguilar, Antonio Henrique Amaral, Cláudio Tozzi, Emanoel Araújo, Sérgio Ferro  e Valdir Sarubbi foram chamados para apresentar suas visões do que poderia ser feito. Hoje, esses projetos fazem  parte do acervo do palácio. O escolhido foi Antônio Henrique Amaral que se dedicou então ao São Paulo – Brasil: Criação, Expansão e Desenvolvimento.

 

 

Ainda que no painel para o Palácio Bandeirantes não haja mãos, bambus e outras vegetações tomam toda a superfície, é bom lembrar que não teria sido só em  Paisagem imaginária que Amaral representou mãos de impacto visual. Algumas aparecem em xilogravuras o que torna a popularidade de sua obra maior.  Há, afinal, dezenas de tiragens ou mais dependendo da demanda, que podem ser vistas em inúmeros lugares ao mesmo tempo.  Antônio Henrique Amaral tinha preferência por esta forma de expressão. Em parte por ter estudado com o pintor e  excelente gravador Lívio Abramo, e também porque a xilogravura é parte essencial do vocabulário artístico do país de norte a sul.  

 

Em cima, Consensus, 1967;  embaixo Diálogo Frustrado, 1967, ambas xilogravuras de Antônio Henrique do Amaral.

 

Essa fascinação por mãos que falam, grandes ou pequenas  tão expressivas, às vezes mais expressivas do que um rosto, primeiro me lembrou a obra do escultor chileno Mario Ararrazábal.  Difícil falarmos de mãos no início do século XXI sem referência imediata a este artista e suas várias e gigantescas mãos.  Primeiro agonizante mão plantada no deserto do Atacama, na estrada que leva a Antofagasta, chamada A Mão do Deserto, de 1992.  Gigantesca ela parece pedir auxílio.  Logo vem à lembrança também a mão de Veneza de sua autoria, já menos desesperadora, talvez porque esteja quase toda acima do solo, desenterrada, já. 

 

Em cima, Mão, 1992, Chile; embaixo Mão, 1995, Veneza, Itália. Ambas do escultor chileno Mario Ararrazábal.

 

A Mão de Oscar Niemeyer, no Memorial da América Latina, tem em comum com as obras de Mario Ararrazábal o tamanho gigantesco, os dedos abertos, espalmados ao vento, como num apelo mudo a um ser maior, um espírito protetor, a quem preste atenção ao seu desespero. Mas quaisquer que ela sejam, independente de quem  as fez, há aflição, angústia, ansiedade causadas por estas mãos com  ou sem punhos saindo do solo.  E no entanto volto meus pensamentos uma vez mais à obra de René Magritte, onipresente no século XX. 

 

Colagem, 1966

René Magritte (Bélgica, 1898-1967)

colagem, lápis e tinta sobre papel

 

Um ano antes de falecer, Magritte faz uma misteriosa colagem, que vemos acima: a mão enorme, desproporcional à mesa em que parece apoiada, preenche a paisagem arenosa de uma praia.  Não parece muito diferente daquelas do escultor chileno  Mario Ararrazábal. Nesta obra Magritte parece voltar a atenção ao  início de sua carreira, quando admirou e absorveu a estética de Max Ernst e de Giorgio de Chirico. Por que?  Pergunta difícil de responder.

 

MAX ERNST, FEMME 100 TETES 1

Página do romance gráfico, feito exclusivamente de colagens, La femme 100 têtes, 1929, de Max Ernst

 

MAGRITTE - DECHIRICO SONG OF LOVE

Giorgio de Chirico, Canção de Amor, 1914, óleo sobre tela.

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NOTA:

Este texto é um trabalho em andamento…. parte de futura publicação —  Notas da história da arte: observações aleatórias das salas de aula

 

©Ladyce West, Rio de Janeiro, 2023

 

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Ladyce West é uma historiadora da arte.  Em sua vida acadêmica, antes de abrir uma galeria de arte e antiquário, dedicou-se ao estudo do surrealismo belga.  Seu livro: Humor, Wit and Irony in the Works of Belgian Surrealists, baseado em tese da Universidade de Maryland, está em processo de tradução para o português. 

 







Noite e dia, poesia de Alice Ruiz

14 03 2023

O domínio da luz, 1950

René Magritte (Bélgica, 1898-1967)

óleo sobre tela, 99 x 79 cm

MOMA, New York

 

Noite e dia

 

Alice Ruiz

 

não me agradam

essas coisas que despertam

barulho, susto, água fria

tudo na minha cara

mas nenhum sonho por perto

 

não me agradam

essas coisas que adormecem

vazio, escuro, calmaria

tudo que lembra morte

quando nada mais dá certo

 

não me agradam

essas coisas sem poesia

uma noite só noite

um dia só dia

 

Em: 101 Poetas Paranaenses: V.1 (1844 -1959) –  antologia de escritas poéticas do século XIX ao século XXI, seleção e apresentação de Ademir Demarchi, Curitiba, Biblioteca Pública do Paraná: 2014, p. 203





Ainda sobre Magritte, texto de Murilo Mendes

21 08 2018

 

 

Magritte, a clarividencia, 1936A clarividência, 1936

[La clairvoyance]

René Magritte (Bélgica, 1898-1967)

óleo sobre tela,  54 x 64 cm

Art Institute of Chicago

 

 

“Magritte esclarece-nos: “L’art de peindre — tel que je le conçois — se borne à la description de la pensée que unit — dans l’ordre qui évoque le mystère — ce qui le monde manifeste de visible“. Mais ainda: “Les figures vagues ont une signification aussi nécessaire, aussi parfaite que les précises“.

Uma de suas tarefas principais consiste portanto em dar forma concreta ao impreciso, onde ele se encontraria com um seu antípoda, Max Bense, que aconselha o artista a elaborar os pensamentos como formas.  As perigosas fronteiras entre poesia e pintura foram de há muito estreitadas por Magritte, ao enquadrar elementos alógicos ou arbitrários numa trama plástica, pelo que poderia ser também aparentadoao Max Ernst dos grandes momentos.  Já se disse que Magritte combate a razão com as armas desta.Mas alguém imaginaria justapor Lautréamont à Descartes? A obra de Magritte, que sabe domesticar o absurdo, leva-nos a crer nesta possibilidade”.

 

Em: Transístor, Murilo Mendes, Rio de Janeiro, Nova Fronteira: 1980,p.189-190.

 

 





Sobre Magritte, Murilo Mendes

26 07 2018

 

 

Magritte, o sobretudo de Pascal, OST, MenilO sobretudo de Pascal,  1954

[Le manteau de Pascal]

René Magritte (Bélgica, 1898-1967]

óleo sobre tela, 59 x 49 cm

The Menil Collection, Texas

 

 

“Todavia certos pintores — como também certos escritores — apesar de praticarem o culto do sonho e do inconsciente, que muito antes de Freud os ligava aos românticos (especialmente a Novalis, Achim von Arnin, Hoffmann e Nerval), não eram de fato uns instintivos, mesmo porque percebiam nitidamente a polaridade entre forças cerebrais e forças ancestrais. Em breve fundou-se uma linha divisória da teoria e da prática. Pascal escrevera: “Nous sommes automate autant qu’esprit“. Os revisionistas poderiam alterar a fórmula e dizer “Nous sommes esprit autant qu’ automate“. Não foi por acaso que alguns adeptos da doutrina passaram sem choque para o marxismo, que comporta, além de seu aspecto destruidor e polêmico, toda uma construção. O surrealismo, teoricamente inimigo da cultura, tornou-se num segundo tempo um fato de cultura; e muitos surrealistas, superando a técnica do automatismo, dispuseram-se a trabalhar com um método planificador. Por isso mesmo, quando há uns vinte anos atrás Breton procedeu em Nova Iorque à revisão analítica do movimento, a contragosto incluía Magritte entre os pintores surrealistas, insinuando que o seu processo de compor não era automático, antes plenamente deliberado”.

 

Em: Transístor, Murilo Mendes, Rio de Janeiro, Nova Fronteira: 1980,p.188-9.

 





Guerra e paz, texto de Yuval Noah Harari

27 01 2018

 

 

Rene_Magritte_(1898-1967)_La_Promesse_1950_(36_3_by_45_cm)__1_205_568A promessa, 1950

René Magritte (Bélgica, 1898-1967)

guache e lápis sobre papel, 36 x 45 cm

 

 

« …Pela primeira vez na História, quando governos, corporações e indivíduos privados avaliam o futuro imediato, muitos não pensam na guerra como um acontecimento provável. As armas nucleares tornaram  uma guerra entre superpotências um ato louco de suicídio coletivo e com isso forçaram as nações mais poderosas da Terra a encontrar meios alternativos e pacíficos de resolver conflitos. Simultaneamente, a economia global abandonou as bases materiais para se assentar no conhecimento. Antes, as principais fontes de riqueza eram os recursos materiais, como minas de ouro, campos de trigo e poços de petróleo. Hoje, a principal fonte de riqueza é o conhecimento. E, embora se possam conquistar poços de petróleo na guerra, não se pode conquistar conhecimento  dessa maneira. Desde que o conhecimento se tornou o mais importante recurso econômico, a rentabilidade da guerra declinou e as guerras tornaram-se cada vez mais restritas àquelas regiões do mundo – como o Oriente Médio e a África Central – nas quais as economias ainda são antiquadas, baseadas em recursos materiais.”

 

 

Em: Homo Deus, Yuval Noah Harari, tradução de Paulo Geiger,  Cia das Letras: 2016, pp 24-25





Resenha: Bonita Avenue, de Peter Buwalda

21 04 2016

 

 

photoLigações Perigosas, 1935

René Magritte (Bélgica, 1898-1967)

óleo sobre tela

LACMA, Los Angeles County Art Museum

 

 

 

Siem Sigerius é um grande matemático especializado na teoria dos nós e reitor de uma universidade holandesa.  É também um dos narradores de Bonita Avenue, assim como seu principal personagem.  Ainda que ele divida com Joni, sua enteada e Aaron o namorado dela a apresentação ao leitor dos eventos que levaram ao colapso da família, é seu o papel principal dessa obra.

Diz a teoria dos nós que : “O artesão que faz uma trança, uma rede, ou alguns nós estará preocupado, não com questões de medidas, mas com aquelas de posição: o que ele vê ali é a maneira na qual os fios estão entrelaçados”. [Wikipédia] Como um bom entendedor de nós, e de seus emaranhados, Siem, na segunda metade da obra quando começa a perceber a teia em que ele se encontrava, começa a desatar um a um os nós que estruturavam as relações familiares.  Até o momento em que precisa ele mesmo desaparecer.  Desse ponto de vista seu suicídio é previsível.  E para os que acham que posso estar revelando segredos, acalmem-se: o suicídio é contado logo no início do livro.  Pois não só a narrativa é baseada em três vozes, como ela é apresentada no presente e no passado sem qualquer ordem que possa ser detectada pelo leitor.

 

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Bonita Avenue não é para o leitor de coração fraco, ou do que gosta de uma narrativa linear.  Nem é para o leitor que deseja simplesmente se divertir.  Temos que trabalhar o cérebro para seguir essa trama espetacular, confusa, estranha e, sobretudo questionadora dos comportamentos modernos, pós-internet.  No coração dessas questões está o hábito do consumo de pornografia na rede, assim como a questão curiosa sobre a imagem das mulheres e homens que se expõem em sites pornográficos: são ou não profissionais da prostituição?  Os atores pornográficos são exibicionistas? E suas identidades podem de fato se manter desconhecidas?  A identidade na rede é uma das questões levantadas nessa obra abrangente sobre a vida moderna.

A história circula em volta da família Sigerius entre os anos de 1980 e 2000. É uma família moderna. Segundo casamento de ambas as partes com filhos dos compromissos anteriores. Também é uma família disfuncional. Seus personagens são fascinantes e incluem além do matemático conhecido mundialmente, um fotógrafo, uma marcineira e uma  atriz pornô.  Há referências ao judô, a doenças mentais e sobretudo à indústria pornográfica na internet.  A família não é feliz.  A época em que foi mais feliz se resume aos anos passados na Califórnia, em Berkeley, num endereço na Bonita Avenue.

 

Peter BuwaldaPeter Buwalda

 

Peter Buwalda tem uma maneira singular de narrar.  Paga seus tributos à literatura do século XIX dando-se ao trabalho de apresentar personagem por personagem logo no início da obra.  Mas são poucos. Isso contribui para a sensação de claustrofobia, e também para dar a impressão de que o enredo não progride.  O que lembra de novo as obras do século XIX, em particular a afirmação da escritora inglesa Geoge Eliot em relação à linha do tempo de uma obra:  “O melhor fogo não é o que se acende mais rapidamente.” Buwalda toma seu tempo e diferente da literatura mais tradicional apresenta seus personagens com viés:  todos parecem caracterizados pelos seus piores aspectos, como se os víssemos só pelo lado B de suas personalidades. Outro artifício é a apresentação de um enredo simples centrado na família, mas contado com tantas interferências de fatos irrelevantes, anedotas, histórias paralelas que parece chegar ao essencial paulatinamente, comendo pelas beiradas.

Uma história espetacular, em que personagens fora da norma nos convidam a reflexões nem sempre fáceis. É violenta. Ocasionalmente bastante gráfica, inclusive na pornografia.  Mas não é para qualquer um. Você precisa gostar de uma história apresentada de maneira complexa, não linear e com final em aberto.  Fora isso, magistral.





Matilda da Toscana, o peixe e o anel

4 04 2016

 

 

Hugo-v-cluny_heinrich-iv_mathilde-v-tuszien_cod-vat-lat-4922_1115adMatilda da Toscana, início do século XII

Iluminura do manuscrito Vita Mathildis

de autoria de Donizo.

[Aqui, Matilda no papel de interventora a favor da absolvição de Henrique IV, junto ao abade Hugo de Cluny].

 

É curioso como histórias que aprendemos há tempos às vezes retornam, assim do nada, trazidas por um fio puxado dos confins da memória, de tal modo que nem nós mesmos entendemos como viemos a nos lembrar dessa ou daquela informação.  Estou lendo o livro Bonita Avenue do autor holandês Peter Buwalda e encontrei logo no primeiro capítulo referência ao conto do peixe e do anel, que neste romance é atribuído a uma passagem (uma anedota) de Vladimir Nabokov.  Essa atribuição me deixou surpresa.  Eu a conheço como parte do folclore belga.

Todos os meus caminhos me levaram ao estudo da Bélgica e da Holanda.  Se houve um território na Europa que mais mudou de mãos através dos séculos, esse foi um deles.  Foi francês, flamengo, espanhol, holandês, alemão, católico e protestante.   Deu-nos não só as raízes do capitalismo, do mercantilismo, da classe média, da bolsa de valores, da tolerância religiosa, assim como nos deu Bosch, Bruegel, de Rubens, Rembrandt e Vermeer a Ensor, van Gogh e Mondrian, de René Magritte a Delvaux e Folon.

Pois a história do peixe e do anel também aparece na Bélgica e está ligada à fundação da Abadia de Nossa Sra. de Orval, fundada em 1132.  Matilda da Toscana ou Matilda de Canossa era uma poderosa rainha medieval que visitando as terras da região de Gaume [Florenville], quando já se encontrava viúva, perdeu o belo anel de casamento em uma fonte. Matilda ficou muito contrariada e em desespero rezou fervorosamente para que o anel fosse encontrado.  Eis que uma truta, de repente, salta da água segurando em sua boca o anel da Rainha Matilda.  Grata pela resposta aos seus pedidos a rainha então exclamou: “Este é um verdadeiro Vale de Ouro” [Val d’Or], batizando, naquele momento, a região que veio a ser conhecida como Orval. E foi lá que os monges cisterciences decidiram construir um monastério.





Minutos de sabedoria: Hilary Mantel

5 02 2016

 

 

René Magritte La lectriceA leitora cativa, 1928

René Magritte (Bélgica, 1898-1967)

Óleo sobre tela, 92 x 73 cm

Coleção Particular

 

 

“O medo impossibilita a solidariedade e o poder do raciocínio.”

 

 

Hilary mantelHilary Mantel

 





Apollinaire, o poeta que ainda surpreende

16 02 2015

 

hirsch_poemIl pleut [Chove]

Guillaume Apollinaire

Caligrama

 

 

Quando se menciona a palavra surrealismo poucos, hoje, pensam na literatura ou na poesia.  O que passa pela cabeça são os relógios derretidos de Salvador Dali ou os homens com chapéu coco e uma maçã no rosto de René Magritte. Vivemos em um mundo mais influenciado pela imagem gráfica do que pela palavra escrita.  No entanto, o surrealismo foi um movimento estético primeiramente literário, fundado por André Breton, um romancista e pintor por surrealiadade e batizado pelo poeta Guillaume Apollinaire (1880-1918), pai da poesia concreta.

Lembrei-me da importância de Apollinaire durante a  leitura de Nadando de volta para casa, de Deborah Levy, porque parte do poema do poeta francês Il pleut [Chove] (imagem acima) tem papel importante e simbólico na narrativa. O poema como podemos ver tenta imitar no papel, com as palavras de seu corpo, as gotas de chuva caindo.

Il pleut des voix de femmes comme si elles étaient mortes même dans le souvenir
c’est vous aussi qu’il pleut, merveilleuses rencontres de ma vie. ô gouttelettes !
et ces nuages cabrés se prennent à hennir tout un univers de villes auriculaires
écoute s’il pleut tandis que le regret et le dédain pleurent une ancienne musique
écoute tomber les liens qui te retiennent en haut et en bas

 

[Chovem vozes de mulheres como se estivessem mortas mesmo na recordação
Chovem também encontros maravilhosos da minha vida ó gotículas
E estas nuvens empinadas começam a relinchar um universo de cidades mínimas
Escuta se chove enquanto a mágoa e o desdém choram uma música antiga
Escuta caírem os elos que te retém em cima e embaixo]

Tradução de Sérgio Caparelli, com o nome A Chuva

 

 

Guillaume_Apollinaire_CalligrammeGuillaume Apollinaire, do livro Calligrammes. [Salut monde dont je suis la langue]

 

Guillaume Apollinaire, como o personagem do romance mencionado acima, era polonês,  Wilhelm Albert Włodzimierz Apolinary Kostrowicki, e adotou o nome Guillaume (tradução para o francês de Wilhelm) Apollinaire  (afrancesamento de um de seus sobrenomes). Nascido na Itália, imigrou para a França onde se tornou importante intelectual; inventou o termo surrealismo e, semelhante às sibilas da antiguidade, profetizou o uso da precisão na digitação de um texto, ou poema, pelos novos meios de reprodução: o cinema e o fonógrafo .

Apollinaire foi o primeiro a usar o termo surrealista publicamente em 1917 na sua peça teatral em dois atos e um prólogo, Les Mamelles de Tirésias, drame surréaliste [As tetas de Tiresias, drama surrealista] O termo se tornou popular imediatamente.  [Mais tarde, em 1947, com permissão de Mme Apollinaire, viúva do poeta, Francis Poulenc inaugurou a ópera-bufa do mesmo nome, com libreto de Apollinaire, e figurinos de Erté.]

 

invitationmamellesConvite da première de Les Mamelles de Tirésias.

 

Mas a maior influência de Apollinaire foi e é ainda na poesia concreta.  Foi a publicação de Calligrammes, em 1918, que o levou a ser considerado o pai da poesia concreta moderna e a dar o nome a uma classificação inteira de poemas (caligramas) cujas palavras formam uma imagem com significado relativo ao seu conteúdo:  Caligramas, Poemas de Paz e Guerra, 1913-1916.

O Caligrama [combinação de duas palavras: caligrafia e telegrama] é fruto da fascinação de Apollinaire com o telégrafo sem fio, sobretudo com contribuição do francês Émile Baudot, que em 1874, inventou uma máquina que transformava os sinais telegráficos de modo automático, em caracteres tipográficos.  Apollinaire definiu seus caligramas como uma idealização do verso livre.  Era poesia com precisão de digitação, usando novos meios de reprodução.

 

 

CaligramaGuillaume Apollinaire, do livro Calligrammes [Reconnais-toi cette adorable personne]

 

Guillaume Apollinaire foi ainda influente na gestação de outros movimentos das artes plásticas como o Futurismo, Cubismo e Orfismo.  Mas nada que se comparasse ao poder de previsão que ele demonstrou em sua famosa palestra, “L’Esprit Nouveau et les Poétes,” [O novo espírito e os poetas]  de novembro de 1917, quando incitou outros poetas a abraçarem a inovação e previu que a poesia do futuro seria inventiva e surpreendente. O dia chegaria em que poetas iriam brincar com seus versos, e teriam a habilidade  de combinar palavras com imagens.

A título de curiosidade, em 1917, Apollinaire morava no bairro de Montparnasse em Paris e contava entre seus amigos e atendentes dessa palestra Pablo Picasso, Gertrude Stein, Marie Laurencin e Marcel Duchamp, todos ainda longe dos louros que receberiam mais tarde, como pensadores culturais da modernidade.





Resenha: “Nadando de volta para casa”, de Deborah Levy

15 02 2015

 

 

magritte-la-clef-des-songesA chave dos sonhos, 1930

René Magritte (Bélgica, 1898-1967)

óleo sobre tela, 81 x 60 cm

Coleção Particular, Paris

 

Nenhum dos peixes à venda, anunciados pelo alto-falante da van na rua em frente de casa, nadou de volta para casa. Todos tinham sido apanhados no caminho, assim reflete o poeta JHJ centro das atenções da protagonista Kitty Finch. É dela o poema que dá nome ao romance de Deborah Levy, Nadando de Volta para Casa. Nele a jovem poetisa abusa dos etcs, e pede para que o leitor entenda que todo etc. esconde algo que não pode ser dito. Na prosa de Levy tudo é dito de maneira oblíqua, envolta na névoa de um sonho.

A história é simples. Joe, Isabel e a filha Nina saem da Inglaterra para passar as férias numa casa alugada nos arredores de Nice, na Côte d’Azur. Levam consigo um casal amigo: Laura e Mitchell. Chegando lá, o inesperado acontece pela presença de Kitty, que se torna hóspede deles. À volta desse núcleo há Jurgen, o caseiro alemão, Claude, o dono do café, Madeleine, a vizinha médica de 80 anos e a dona da casa alugada da qual só ouvimos falar, uma psicanalista. A maior parte do romance se passa em oito dias, em julho de 1994. A narrativa é circular e repleta de enigmas. Não é necessário desvendá-los para entender o romance, mas para mim se tornou um jogo, um quebra-cabeças delicioso, que não consigo deixar de lado.

O livro começa com uma cena de terror psicológico, como em um pesadelo: “Quando Kitty Finch tirou a mão do volante e lhe disse que o amava, ele não soube mais se ela o estava ameaçando ou conversando com ele” (9). Não sabemos quem são Kitty Finch, nem seu companheiro de viagem, mas o alerta para o perigo, para a dualidade dos sentimentos do homem que a acompanha, é sentido e familiar, lembra os perigos dos sonhos que nos acordam em pânico, ansiosos. Esta cena se repete, ligeiramente modificada, através do texto, do mesmo modo que muitas imagens também se repetem, com pequenas alterações, quando sonhamos.

 

 

the-collective-inventionA invenção coletiva, 1934

René Magritte (Bélgica, 1898-1967)

óleo sobre tela, 73 x 97 cm

Kunstsammlung Nordrhein-Westfalen, Düsseldorf, Germany

 

 

Já no capítulo seguinte ainda sob essa influência da incerteza, somos apresentados à imagem de uma sereia, sedutora mulher de longos cabelos vermelhos, até a cintura. Imersa na água ela atrai os olhos de Jozef Nowogrodzki, também conhecido como Joe Harold Jacobs, ou JHJ, “ou o poeta famoso, o poeta britânico, o poeta babaca, o poeta judeu, o poeta ateu, o poeta modernista, o poeta pós-Holocausto, o poeta mulherengo” (154); um homem de muitos rótulos, no entanto indefinível. Essa pluralidade de personagens reflete um poeta que se metamorfoseia em muitos, aumentando o conteúdo onírico e hermético da narrativa. Kitty Finch é a sereia destinada a seduzir  o poeta. Suas palavras, poesia, escritos são seu canto para Ulisses: tentadora, perigosa, aliciante, antropófaga.

JHJ se prepara para dar uma palestra na Polônia, terra onde nasceu em 1937. Foi abandonado numa floresta por seus pais que alimentavam a esperança de que ele sobrevivesse aos nazistas. Acabou na Inglaterra, aos cinco anos de idade. Quando é perguntado se se sente inglês, por dentro, sua resposta é tão ambígua quanto todos os seus nomes e atitudes: Eu tenho “uma porra de um sentimento engraçado” (48). Na verdade Joe não sabe quem é. Seus etcs são muitos e ele corre o perigo de se afogar no desconhecido.

Ninguém melhor do que Kitty Finch para saber disso. Não só ela sabe tudo sobre Joe, como declara a que veio: “Eu vim para França, para salvar você de seus pensamentos” (32). Ela tem uma simbiose telepática com ele. “A poesia de Joe é, mais do que qualquer outra coisa, uma conversa comigo. Ele diz coisas que eu costumo pensar. Nós temos um contato nervoso” (52). Kitty Finch é uma botânica que admite sofrer de um desequilíbrio mental. Mas deixa de tomar seu remédio, para poder sentir emoções. O problema mental sem controle permite que ela entre e saia livremente de seu inconsciente, desvendando sua fragilidade. É a única personagem que se expõe. Emocionalmente. E fisicamente. Sem pudor. Apesar de estranharem, todos à sua volta aceitam essa nudez, até mesmo Isabel, esposa de Joe, para surpresa da amiga Laura, que percebe desde o início a intenção da jovem de seduzir o marido da amiga. Dos nove personagens Kitty é a mais transparente e a menos compreendida. Diáfana. Quase translúcida. Ela perambula pela propriedade com o descuido de quem não duvida de seu lugar, de sua importância.

 

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No entanto, tendo admitido seu problema mental, Kitty se torna um personagem mais enigmático. Não sabemos se devemos ou não acreditar no que diz. Sua tarefa de seduzir Joe encontra resistência. Não porque ele não queira. Mulherengo, seu casamento com a mulher jornalista que viaja constantemente para os confins do mundo, é repleto de pequenas traições, de muitas namoradas. É um obsessivo Don Juan, mesmo amando sua esposa e seduzindo-a com favos de mel. Mas JHJ resiste porque pressente o perigo: Kitty Finch poderia levá-lo ao reino das sombras em que transita. Amá-la, deixar-se perder em suas profundezas, seria um mergulho no desconhecido; a aceitação do submundo do inconsciente e a percepção do verdadeiro reino das sombras a que pertence.

O mundo solar e o mundo das sombras se entrelaçam na narrativa, desde a lembrança da alegoria da caverna de Platão, quando Kitty vê um jovem desaparecer na parede, levando uma braçada de cicuta; ao capítulo em que Jurgen explica para Claude, como o alienígena ET e seu amigo terrestre se espelhavam. Kitty Finch é a sereia de JHJ, sua chave de entrada para esse outro mundo que o comerá vivo, como aconteceu no conto O pescador e a alma de Oscar Wilde. Em seu desespero, Jozef tenta passar para outro essa oportunidade e sugere que ela peça a Jurgen que leia o seu poema. Mas ela declara peremptoriamente: “Meu poema é uma conversa com você e com ninguém mais.” (90) Jozef Nowogrodzki sabe do mundo desconhecido, do mundo das profundezas do sonho, das emoções e do inconsciente. Seu desespero é palpável na reflexão durante o encontro que tem com Kitty para conversar sobre a poesia dela (91). Ele tenta desesperadamente resistir ao sedutor mergulho que vê inevitável: o mergulho no desconhecido dos etcs de sua vida.

Quando o movimento surrealista foi fundado por André Breton em 1924, tinha como espinha dorsal as obras de Sigmund Freud sobre o inconsciente. A meta era trazer à tona, através da escrita automática, imagens oníricas. A libertação das imagens do inconsciente vinha, segundo Freud, através do humor, do trocadilho, da ironia. O pintor surrealista René Magritte usou e abusou desses métodos para trazer aos lábios do espectador o sorriso do absurdo. Sua enorme série La clef de songes [a chave dos sonhos] em que imagens são aparentemente rotuladas por palavras ao acaso, é uma das representações visuais do humor corriqueiras na obra do pintor usadas como porta de entrada para o inconsciente.

 

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A metáfora como a usada por Magritte em A invenção coletiva, — uma inversão da imagem da sereia, já tão bem estabelecida no inconsciente coletivo — ilustra o método que Freud acreditava ser o meio de solucionar os conflitos no inconsciente, por ser um enigma em disfarce. Daí, a abundante panóplia de imagens ambivalentes, de polaridades e duplicidades, dualismos e híbridos nas produções surrealistas na literatura e nas artes visuais. É bom lembrar que o Surrealismo foi, sobretudo, um movimento literário. Deborah Levy está bastante ciente dessas diretrizes, pois na epígrafe do romance Nadando de volta para casa, reproduz uma citação encontrada no primeiro número da revista Révolution Surréaliste, de dezembro de 1924: “De manhã, em todas as famílias, homens, mulheres e crianças, se não tiverem nada melhor para fazer, contam seus sonhos uns para os outros. Nós estamos todos à mercê dos sonhos e temos obrigação para conosco de testar sua força no estado de vigília.” É, portanto a partir dessa perspectiva que essa pequena obra de grande impacto, se descortina por 160 páginas.

O humor aludido acima é intermitente na narrativa. Há muitos momentos de sorrisos com as justaposições que Deborah Levy nos coloca. A médica vizinha é fonte de muita ironia, assim como são Mitchell e até mesmo Isabel. Com essas janelas de abertura para o subtexto da narrativa, chegamos ao nosso sonho coletivo, só restando saber o que realmente acontece quando Josef se encontra com seus etcs. Extraordinário. Uma pequena obra-prima.