Minutos de sabedoria — Eça de Queiroz

26 08 2014

 

 

david emile joseph de NoterCozinheira na cozinha,  1861

David Emile Joseph de Noter (Bélgica, 1818-1892)

óleo sobre tela, 77 x 64 cm

Coleção Particular

 

 

“O homem põe tanto do seu caráter e da sua individualidade nas invenções da cozinha, como nas da arte.”

 

biografia-e-obras-de-eca-de-queirosEça de Queiroz




Leis ditavam a moda na República Florentina do século XV

26 07 2014

 

 

Domenico Ghirlandaio (Italia, 1449-1494) jovemRetrato de jovem

Domenico Ghirlandaio (Florença, 1449-1494)

têmpera sobre painel de madeira, 44 x 32 cm

Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa

 

 

“A conquista da riqueza por meio do trabalho sempre foi louvada e admirada pelos florentinos, mas a ostentação do dinheiro era condenada. Ela suscitava inveja e era incompatível com o espírito republicano.  Havia, por exemplo, leis rigorosas que ditavam as regras da moda na cidade. Os homens deveriam usar um simples manto preto, mas os nobres e pessoas ilustres, como advogados e ricos comerciantes, podiam vestir-se com mantos coloridos. As mulheres também deveriam vestir-se de forma simples. Roupas de tecidos finos tinham de ser evitadas. Botões eram proibidos, assim como maquilagem e até algumas joias.  Havia uma polícia da moda que percorria as ruas para verificar se as regras estavam sendo cumpridas. Ela agia principalmente à noite, quando as pessoas se vestem para ir a festas, jantares e recepções. As denúncias anônimas suscitavam incertas da polícia da moda para flagrar transgressores. A violação das leis implicava multas e, em certos casos recorrentes, processos e punições mais severas. Mas essa austeridade começou a ser negligenciada quando Florença voltou a viver uma nova era de prosperidade econômica.

A riqueza e o desejo de esbanjá-la deturparam o gosto dos florentinos pela simplicidade. As leis que procuravam restringir a moda tornaram-se anacrônicas. Os policiais da moda proibiam o uso de um tecido, e os criadores da moda inventavam uma maneira de burlar a lei. Proibia-se o uso de botões, mas criavam-se falsos botões, que serviam apenas para enfeitar a roupa. Condenava-se o colar de pérolas, mas usava-se uma pérola na roupa como acessório. Em pouco tempo a polícia da roupa perdeu a guerra contra a indústria da moda….”

 

Em: Cosimo de Médici: memórias de um Líder Renascentista, Luiz Felipe D’Avila, São Paulo, Ediouro: 2008, pp. 45-6





Minutos de sabedoria: António Pinto Ribeiro

19 07 2014

 

 

ai Suijyo, 2010, acrilica, possibilidades infinitasBiblioteca com céu estrelado, 2010

Ai Suijyo (Japão, contemporâneo)

acrílica

Otaku Mode

 

 

“Um intelectual europeu da minha geração leu os franceses, os ingleses e os americanos. Um africano ou mexicano intelectual leu todos esses e ainda aquilo que eles próprios produziram em seus países. Então, há uma mais-valia em relação à tradição europeia.”

 

 

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 António Pinto Ribeiro





A bela prosa de Teolinda Gersão — trecho de “A árvore das palavras”

24 06 2014

 

 

 

Maluda_Lisboa_30_1985[1]Lisboa XXX, 1985

Maluda (Goa, 1934 – 1999)

[Maria de Lourdes Ribeiro]

óleo sobre tela, 75 x 92 cm

Coleção Particular

 

 

“Estendes as folhas do jornal em cima da mesa e acendes devagar um cigarro abrindo o maço sem olhar, só pelo tacto, como se fosses cego. Não direi nada, não quero interromper-te agora. Respiro devagar, estou unida ao mundo pela boca. O hálito é um sopro, o sopro do vento. Partilho-o com o vasto horizonte em volta, faço parte dele como ele de mim.

A cidade cerca-nos, com seus muito braços, os seus muitos círculos, nenhum dos quais nos exclui. Ninguém nos pode tirar essa sensação de pertencer, de estar contido. Somos parte de um todo, uma cidade viva. Algures os barcos passam, entram no porto e partem. Na praia as crianças brincam, os fatos de banho serão manchas claras ao sol. Haverá barcos de recreio mais ao longe e saindo a barra paquetes, vapores e transatlânticos. Abarcar-se-á tudo isso de um ponto alto, de um mirante, ou mesmo a partir de uma pérgola florida.

Nada vejo, aqui sentada diante da mesa redonda do café, e no entanto essas coisas longínquas, como os barcos passando, o movimento dos barcos, fazem parte deste minuto, em que tudo está contido. Rodo a colher no gelado, levo-a devagar à boca. Creme vermelho, de groselha, derretendo. Sabor do Verão. Mais alto, contra o céu, balançarão as acácias. O que penso não tem nitidez, e talvez só uma aproximação inexacta. A vida cabe numa colher de gelado, respira-se, devora-se com a boca.

Tudo acontece agora muito devagar, os barcos têm todo o tempo para partir ou para entrar no porto, as crianças riem de puro gozo de brincar nas ondas. Devagar, devagar. O tempo é um hálito, um sopro. Não tem nenhuma pressa, demora-se, por momentos parece ficar parado para sempre.

Mas já de novo em volta a cidade se agita — cresce, multiplica-se como um caleidoscópio. Andaremos pelas ruas, sabemo-las de cor. De algum modo elas estão em nós, como linhas gravadas na palma da mão. Paralelas, perpendiculares — geométricas — outras que seguem apenas os seus cursos próprios como os da água ou do vento. A cidade é um corpo vivo respirando, o meu, o teu, o dos outros, o do mundo, é uma infinita intercessão de corpos, dos momentos incontáveis do tempo, repetida como as ondas do mar. E é inútil tentar olhá-la como é inútil olhar as ondas — ainda mal se levantaram e já se desfazem na areia, e também o nosso olhar se desfaz com elas.

Dizem que este verão vai ser mais quente que no ano passado, anuncias sem levantar os olhos. E para a semana começam saldos sensacionais no Fabião.”

 

Em: A árvore das palavras, Teolinda Gersão, São Paulo, Planeta: 2004, pp. 43-44





História, mistério e aventura: O último cabalista de Lisboa, de Richard Zimler

24 04 2011

Leitura ritual em sinagoga, iluminura, manuscrito em Emília, na Itália.

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Raramente no grupo de leitura a que pertenço nos dedicamos a livros lançados há muito tempo, porque nem sempre é fácil para os membros conseguirem comprar volumes esgotados.  Mesmo sabendo que o livro é muito bom temos o cuidado de verificar se está disponível nas livrarias antes de o recomendarmos.  Isso nos faz ler principalmente os mais recentes lançamentos.  Foi, portanto com prazer que verificamos que a editora Best Bolso [Grupo Editorial Record] havia lançado O último cabalista de Lisboa, de Richard Zimler, originalmente publicado no Brasil em 1997 e que havia sido muito bem recomendado por amigos leitores.

Valeu à pena seguirmos essa indicação.  O romance de mistério e também histórico passado em Lisboa, em 1506, se concentra num assassinato que acontece ao mesmo tempo em que no centro da capital portuguesa aproximadamente 2000 judeus e cristãos novos são exterminados em praça pública, sacrificados vivos numa grande fogueira.  É na semana dessa horrível, desmesurada ,matança, fato histórico comprovado, instigada pelos Dominicanos, que se passa o assassinato que Berequias Zarco investiga. A vítima era Abraão, seu tio e mentor no estudo da Cabala.

O romance começa com um aceno, uma referência, às tradições românticas do século XIX, quando um autor, antes de desfiar a sua narrativa, a enquadra como vinda da descoberta de um manuscrito recém-encontrado.  Os escritores Bram Stoker (irlandês) e Nathaniel Hawthorne (EUA) são apenas dois nomes que vêm à mente quando penso nesse tipo de gancho na narrativa. Tratando-se de O último cabalista de Lisboa essa introdução é de grande efeito, porque sabemos que as histórias que conhecemos do período da Inquisição em Portugal na época de D. Manoel, O Venturoso,  são escassas e tendenciosas.  Grande parte dos manuscritos – judaicos ou não – que faziam parte da biblioteca de mais de 70.000 volumes da Coroa Portuguesa, desapareceu no terremoto de 1755.  Assim, a suposta descoberta de um manuscrito em Constantinopla, dá, desde o início da narrativa, um cunho de verdade, como um crédito para aliviar a nossa descrença.

É bom afirmar desde logo que este não é um romance religioso.  É principalmente uma história de mistério, de resolução de um crime, que acontece numa semana de grande inquietação social nas comunidades não-cristãs:  judaica e muçulmana, na Lisboa de 1506.  As referências à Cabala – estudo da natureza do que é divino – não são mais do que um pano de fundo, uma ferramenta de uso dramático, que ajuda a apresentar ao leitor, através de liberais pinceladas culturais, alguns aspectos do dia a dia da Alfama moura e judia.  A Cabala permeia o texto através de citações filosóficas de fácil compreensão, tais como “os livros são feitos por letras mágicas”, entre outras.   Torna-se evidente, logo após as primeiras 50 páginas que a intenção de Richard Zimler (um judeu americano naturalizado português que reside na cidade do Porto) é a de escrever um livro de suspense que absorva o leitor de tal maneira que não possa deixá-lo de lado.  E isso ele consegue facilmente.  Também é sua intenção, acredito, manter a memória viva de todos os sacrifícios pelos quais o povo judeu passou.  Mas seu retrato da brutalidade da época, das maneiras rudes da população, dos medos, das doenças, da peste, das crendices, do sexo, tudo que ele descreve, nos leva, a nós também, que não somos judeus, a querermos manter a memória viva dessa e de outras épocas — sobreviventes que somos todos nós dos augúrios do passado — para que chacinas, preconceitos, extermínios não se repitam nunca mais.  Nem pelas nossas mãos, nem pelas de outrem.

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Richard Zimler

O último cabalista de Lisboa apresenta uma história sobre anti-semitismo e os judeus em Portugal.  Somos levados a considerar, mais uma vez, as conseqüências de uma nobreza associada por baixo dos panos ao financiamento dos empréstimos judeus, e acima da mesa à uma religião cega, dominada pelo medo e mantenedora da  ignorância do povo.  Lembramos com esse romance do fiasco das conversões forçadas e das reações às doenças da época.  Temos que confrontar os hábitos porcos, insalubres, violentos e amorais da era das grandes descobertas lusitanas.  E de sobra somos apresentados aos valores das reais e das falsas amizades.  Tudo isso num ritmo frenético, de grande suspense.  Que mais se pode pedir de um romance de mistério?  Leitura gostosa, com passagens violentas, mas de grande lucidez e magia.





Correspondência de Fernando Pessoa vai ser leiloada

17 07 2008

 

Num artigo publicado ontem, 15/7/2008, no New York Times, por Michael Kimmelman, soube da gritaria, da confusão lusitana ao redor da venda da correspondência de Fernando Pessoa ao escritor britânico Aleister Crowley.  Esta correspondência do poeta português com o místico escritor britânico foi iniciada em 1930.  Sua venda, negociada pelos herdeiros de Fernando Pessoa, está marcada para o período de alta visibilidade na Europa, o outono, que é a estação de abertura dos eventos culturais do ano e será feita em leilão público.  A confusão é gerada pela reclamação de alguns da saída do país de documentos de tal importância.

 

Mas, é justamente de vendas como esta, que a Biblioteca Nacional de Portugal pode se beneficiar, como já o fez no ano passado quando arrematou, para seu acervo, cadernos de notas de Fernando Pessoa.  Como Kimmelman em seu artigo lembra, a maior parte da obra de Pessoa está em manuscritos, nunca tendo sido publicada — diz-se que chegam aos 30.000, ainda guardados em baús na última moradia do escritor. 

 

A decisão dos herdeiros de venderem pelo maior e melhor preço estes documentos é volátil.  Recentemente o ministro da cultura de Portugal, José Antonio Pinto Ribeiro, lembrou, numa conferência aberta ao público na Casa Fernando Pessoa, que o estado português tem o poder de manter dentro de seu território qualquer objeto (e os manuscritos se enquadram aqui) que achar ser necessário para o patrimônio nacional.  A mensagem, bem entendida por Manuela Nogueira, a sobrinha de Fernando Pessoa, que se encontrava na audiência, era de que ela não se sentisse muito confiante, porque a qualquer momento o governo poderia decidir que tais documentos eram do interesse cultural do país e não só proibir sua venda, como também tombar tais documentos, e nada dar aos herdeiros em troca. 

 

Manuela Nogueira já estava preparada para a luta.  Já havia fotografado tudo que pretendia vender de modo que cópias estarão sempre abertas para estudiosos, não importando o destino final dos originais.  Além do que, um contrato já havia sido assinado por ela e pela casa de leilões.

 

O artigo de Michael Kimmelman continua então com considerações sobre Pessoa e sobre a alma portuguesa, inclusive opiniões sobre a última, com uma breve entrevista sublinhando as opiniões de Inês Pedrosa, a escritora que esteve recentemente aqui em Paraty, na FLIP [Feira Literária Internacional de Paraty] deste ano.  O artigo revela também algumas opiniões de Jerônimo Pizarro diretor da Casa Fernando Pessoa, em Lisboa.  Mas, o assunto pelo qual tenho interesse aqui é diferente daquele enfatizado pelo New York Times, que se mostrou mais interessado em mostrar a forma peculiar, culturalmente falando, de pensar dos portugueses – um artigo até bastante irônico. O que me interessa é ponderar sobre os diversos direitos envolvidos neste caso, para que possamos, no futuro, pensar em como resolver situações semelhantes que certamente ocorrerão na tentativa de preservação de uma cultura brasileira:

 

1° – Tanto no Brasil como em Portugal seria necessário tornar mais claras as regras estabelecidas para dar prioridade ao que deve ou não ser preservado dentro do país.

 

2° – Acredito que os herdeiros têm todo o direito de vender os documentos.  Muitos autores, com herdeiros, fazem projetos de vida contando com esta possibilidade de renda para as gerações futuras, assim como os grandes donos de terras o fazem.

 

3° – Também acredito que o governo tem todo o direito de comprar os documentos.  Se são de tamanha importância como se diz, tenho certeza que qualquer governo acharia os meios de comprá-los no leilão, ou seja ao valor estabelecido pelo mercado.

 

4° – Onde há vontade há um meio.  O governo pode se juntar a diversas ONGs culturais para comprar os documentos e mantê-los na Biblioteca Nacional ou em alguma outra instituição pública de acesso livre aos estudiosos.

 

5° – Nada impede que um grupo de intelectuais e outros interessados, que hoje choram e gritam lamentando a perda física dos documentos, não se cotizem para comprá-los e depois doá-los ao país.  Acho que as pessoas têm que aprender a colocar o dinheiro onde insistem ser um bom investimento, quer seja cultural ou econômico.

 

6° – Não há nada mais injusto do que o governo proibir alguém de vender algum objeto ou documento por o haver declarado Patrimônio Nacional, tombá-lo e não indenizar o atual dono do patrimônio ao preço de mercado.

 

7° – Se nenhuma destas possibilidades aparecerem, por que os documentos não podem sair do país e serem velados por uma outra instituição de responsabilidade social como seria o caso de uma biblioteca especializada em manuscritos de grandes autores?

 

8° – Último, estive vendo, no outro dia que a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro é a 7ª maior biblioteca do mundo.  ALÔ !!!!  Diretores da BN, está na hora de aumentarmos o nosso patrimônio!  Tenho certeza de que Portugal preferiria que nós  brasileiros – da mesma pátria, porque afinal nossa língua é nossa pátria – fossemos os guardiões destes documentos.  Melhor do que qualquer outro país que se interessar possa, não é mesmo?