A bela prosa de Teolinda Gersão — trecho de “A árvore das palavras”

24 06 2014

 

 

 

Maluda_Lisboa_30_1985[1]Lisboa XXX, 1985

Maluda (Goa, 1934 – 1999)

[Maria de Lourdes Ribeiro]

óleo sobre tela, 75 x 92 cm

Coleção Particular

 

 

“Estendes as folhas do jornal em cima da mesa e acendes devagar um cigarro abrindo o maço sem olhar, só pelo tacto, como se fosses cego. Não direi nada, não quero interromper-te agora. Respiro devagar, estou unida ao mundo pela boca. O hálito é um sopro, o sopro do vento. Partilho-o com o vasto horizonte em volta, faço parte dele como ele de mim.

A cidade cerca-nos, com seus muito braços, os seus muitos círculos, nenhum dos quais nos exclui. Ninguém nos pode tirar essa sensação de pertencer, de estar contido. Somos parte de um todo, uma cidade viva. Algures os barcos passam, entram no porto e partem. Na praia as crianças brincam, os fatos de banho serão manchas claras ao sol. Haverá barcos de recreio mais ao longe e saindo a barra paquetes, vapores e transatlânticos. Abarcar-se-á tudo isso de um ponto alto, de um mirante, ou mesmo a partir de uma pérgola florida.

Nada vejo, aqui sentada diante da mesa redonda do café, e no entanto essas coisas longínquas, como os barcos passando, o movimento dos barcos, fazem parte deste minuto, em que tudo está contido. Rodo a colher no gelado, levo-a devagar à boca. Creme vermelho, de groselha, derretendo. Sabor do Verão. Mais alto, contra o céu, balançarão as acácias. O que penso não tem nitidez, e talvez só uma aproximação inexacta. A vida cabe numa colher de gelado, respira-se, devora-se com a boca.

Tudo acontece agora muito devagar, os barcos têm todo o tempo para partir ou para entrar no porto, as crianças riem de puro gozo de brincar nas ondas. Devagar, devagar. O tempo é um hálito, um sopro. Não tem nenhuma pressa, demora-se, por momentos parece ficar parado para sempre.

Mas já de novo em volta a cidade se agita — cresce, multiplica-se como um caleidoscópio. Andaremos pelas ruas, sabemo-las de cor. De algum modo elas estão em nós, como linhas gravadas na palma da mão. Paralelas, perpendiculares — geométricas — outras que seguem apenas os seus cursos próprios como os da água ou do vento. A cidade é um corpo vivo respirando, o meu, o teu, o dos outros, o do mundo, é uma infinita intercessão de corpos, dos momentos incontáveis do tempo, repetida como as ondas do mar. E é inútil tentar olhá-la como é inútil olhar as ondas — ainda mal se levantaram e já se desfazem na areia, e também o nosso olhar se desfaz com elas.

Dizem que este verão vai ser mais quente que no ano passado, anuncias sem levantar os olhos. E para a semana começam saldos sensacionais no Fabião.”

 

Em: A árvore das palavras, Teolinda Gersão, São Paulo, Planeta: 2004, pp. 43-44