Morte de Fernando Pessoa, nota de Miguel Torga

3 12 2025

Procissão funerária 

Markenzy Julius Cesar (Haiti-EUA, 1974)

óleo sobre tela, 76 x 101 cm

 

“Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era.”

 

Miguel Torga, Diário, vol.I





Um grande português, conto de Fernando Pessoa

4 06 2025
Ilustração anônima do século XIX.

Perdi recentemente cinquenta reais de uma velha maneira, num conto do vigário.  Como o engodo foi no quarteirão em que moro, a cores e viva voz, cheguei ao meu edifício comentando com o porteiro chefe que havia sido lesada por um bom vendedor.  Ele é muito bom, competente, morando no Rio de Janeiro há mais de 25 anos, vindo da Paraíba.  No entanto, a expressão ‘conto do vigário ele desconhecia.  Expliquei. Mas com a explicação, história perde muito da graça. Minha postura estava entre a pessoa que ri de si mesma e a vergonha de considerando-me tão ‘experiente’ que jamais cairia numa bobagem tão óbvia. 

Em casa, procurei a origem da expressão ‘conto do vigário’. Há muitas.  Muitas mesmo.  Minha pesquisa me deixou com uma única certeza a expressão já estava em uso, no Brasil, no inicio do século XIX. Mas aparentemente já estava em existência em Portugal. Nessa aventura literária, conheci o conto de Fernando Pessoa, Um grande português. Eu não conhecia nenhum conto do poeta português. Continuo o considerando um excelente poeta, entre os maiores da nossa língua. Nesse conto Pessoa nos dá outra possibilidade para a expressão.  Aqui está para seu deleite.

 

Um grande português

 

Fernando Pessoa

 

Vivia há já não poucos anos, algures, num concelho do Ribatejo, um pequeno lavrador, e negociante de gado, chamado Manuel Peres Vigário.

Da sua qualidade, como diriam os psicólogos práticos, falará o bastante a circunstância que dá princípio a esta narrativa.

Chegou uma vez ao pé dele certo fabricante ilegal de notas falsas, e disse-lhe: «Sr. Vigário, tenho aqui umas notazinhas de cem mil réis que me falta passar.

O senhor quer? Largo-lhas por vinte mil réis cada uma.». «Deixa ver», disse o Vigário; e depois, reparando logo que eram imperfeitíssimas, rejeitou-as: «Para que quero eu isso?», disse; «isso nem a cegos se passa.» O outro, porém, insistiu; Vigário cedeu um pouco regateando; por fim fez-se negócio de vinte notas, a dez mil réis cada uma.

Sucedeu que dali a dias tinha o Vigário que pagar a uns irmãos, negociantes de gado como ele, a diferença de uma conta, no valor certo de um conto de réis.

No primeiro dia da feira, em a qual se deveria efectuar o pagamento, estavam os dois irmãos jantando numa taberna escura da localidade, quando surgiu pela porta, cambaleando de bêbado, o Manuel Peres Vigário. Sentou-se à mesa deles, e pediu vinho. Daí a um tempo, depois de vária conversa, pouco inteligível da sua parte, lembrou que tinha que pagar-lhes. E, puxando da carteira, perguntou se se importavam de receber tudo em notas de cinquenta mil réis. Eles disseram que não, e, como a carteira nesse momento se entreabrisse, o mais vigilante dos dois chamou, com um olhar rápido, a atenção do irmão para as notas, que se via que eram de cem.

Houve então a troca de outro olhar.

O Manuel Peres, com lentidão, contou tremulamente vinte notas, que entregou. Um dos irmãos guardou-as logo, tendo-as visto contar, nem se perdeu em olhar mais para elas. O Vigário continuou a conversa, e, várias vezes, pediu e bebeu mais vinho.

Depois, por natural efeito da bebedeira progressiva, disse que queria ter um recibo. Não era uso, mas nenhum dos irmãos fez questão. Ditava ele o recibo,disse, pois queria as cousas todas certas. E ditou o recibo — um recibo de bêbado, redundante e absurdo: de como em tal dia, a tais horas, na taberna de
fulano, e «estando nós a jantar» (e por ali fora com toda a prolixidade frouxa do bêbado. . .), tinham eles recebido de Manuel Peres Vigário, do lugar de qualquer coisa, em pagamento de não sei quê, a quantia de um conto de réis em notas de cinquenta mil réis. O recibo foi datado, foi selado, foi assinado. O Vigário meteu-o na carteira, demorou-se mais um pouco, bebeu ainda mais vinho, e daí a um tempo foi-se embora.

Quando, no próprio dia ou no outro, houve ocasião de se trocar a primeira nota, o que ia a recebê-la devolveu-a logo, por escarradamente falsa, e o mesmo fez à segunda e à terceira. . . E os irmãos, olhando então verdadeiramente para as notas, viram que nem a cegos se poderiam passar. Queixaram-se à polícia, e foi chamado o Manuel Peres, que, ouvindo atónito o caso, ergueu as mãos ao céu em graças da bebedeira providencial que o havia colhido no dia do pagamento. Sem isso, disse, talvez, embora  inocente, estivesse perdido.

Se não fosse ela, explicou, nem pediria recibo, nem com certeza o pediria como aquele que tinha, e apresentou, assinado pelos dois irmãos, e que provava bem que tinha feito o pagamento em notas de cinquenta mil réis. «E se eu tivesse pago em notas de cem», rematou o Vigário, «nem eu estava tão bêbado que pagasse vinte, como estes senhores dizem que têm, nem muito menos eles, que são homens honrados, mas receberiam.» E, como era de justiça, foi mandado em paz.

O caso, porém, não pôde ficar secreto; pouco a pouco se espalhou. E a história do «conto de réis do Manuel Vigário» passou, abreviada, para a imortalidade quotidiana, esquecida já da sua origem. Os imperfeitíssimos imitadores, pessoais como políticos, do mestre ribatejano nunca chegaram, que eu saiba, a qualquer simulacro digno do estratagema exemplar. Por isso é com ternura que relembro o feito deste grande português, e me figuro, em devaneio, que, se há um céu para os hábeis, como constou que
o havia para os bons, ali lhe não deve ter faltado o acolhimento dos próprios grandes mestres da Realidade — nem um leve brilho de olhos de Macchiavelli ou Guicciardini, nem um sorriso momentâneo de George Savile, Marquês de Halifax.

 

— X —

(1926)





Lidos em maio…

2 06 2025

 

O banqueiro anarquista e outros contos, Fernando Pessoa

SINOPSE — Este livro reúne 24 textos em prosa: 21 da autoria de Fernan­do Pessoa, o primeiro d­e­­les escrito originalmente em in­glês, e três traduções que realizou do contista americano O. Henry. Dispostos em ordem crono­lógica, são textos produzidos entre 1907 e 1935, ou seja, da adolescência do autor até o ano de sua morte. Há, na maioria, uma data em alguns casos aproximada, e cinco deles têm data ignorada: “A perversão do Longe”, “O mendigo”, “Memórias de um ladrão”, “Manuel Fontoura” e “O Soares e o Pereira”.

 

Oração para desaparecer, Socorro Acioli

SINOPSE — Cida, uma mulher sem identidade nem memória, reconstrói pouco a pouco uma nova vida em um lugar completamente desconhecido. Jorge encontra nessa misteriosa estrangeira uma paixão inesperada, que recria o que não parece provável. Do outro lado do Atlântico, Joana é o fantasma de um amor há muitos anos perdido por Miguel.

Quando os quatro personagens se entrecruzam no tempo em busca de respostas para as próprias angústias, se deparam também com uma trama fantástica sobre magia, ancestralidade e pertencimento. Oração para Desaparecer é uma das histórias possíveis sobre o amor e seu poder de dissolver as barreiras do imponderável.

 

A contagem dos sonhos, Chimamanda Ngozi Adichie

SINOPSE — Chiamaka é escritora de livros de viagem e vive nos Estados Unidos. Sozinha durante a pandemia, ela relembra os relacionamentos do passado e pondera sobre suas escolhas e seus arrependimentos.

Zikora, sua melhor amiga, é uma advogada que foi bem-sucedida em tudo, até que, após ser traída e ter o coração partido, busca a ajuda de quem achou que menos precisava.

Omelogor, a prima ousada e franca de Chiamaka, é uma gênia das finanças na Nigéria que começa a questionar o quanto se conhece de verdade.

E Kadiatou, que cuida da casa de Chiamaka, cria com orgulho a filha nos Estados Unidos — mas precisa lidar com uma provação inconcebível que ameaça tudo que ela trabalhou para conseguir.

Neste romance, Chimamanda Ngozi Adichie volta seu olhar arguto a essas mulheres, numa narrativa brilhante que discute a própria natureza do amor. A verdadeira felicidade é de fato alcançável? Ou é apenas um estado passageiro? E quão honestos devemos ser com nós mesmos para amar e ser amados?

Uma reflexão incisiva sobre as escolhas que fazemos e aquelas feitas por nós, sobre filhas e mães, sobre nosso mundo interconectado, A contagem dos sonhos pulsa com urgência emocional e observações pungentes e inflexíveis sobre o coração humano, em uma linguagem que se eleva com beleza e poder. Isso confirma o status de Adichie como uma das escritoras mais fascinantes e dinâmicas da cena literária hoje.

 





Sobre a poesia: Fernando Pessoa

5 05 2025

Orlando, 2024

Nikoleta Sekulovic (Itália-Espanha, contemporânea)

pastel, grafite e tinta acrílica sobre tela, 194 x 225 cm

 

 

 

“Toda a poesia – e a canção é uma poesia ajudada – reflete o que a alma não tem. Por isso a canção dos povos tristes é alegre e a canção dos povos alegres é triste.”

 

Fernando Pessoa

 

 





Palavras para lembrar: Fernando Pessoa

31 01 2025

Reading,1900

George Agnew Reid ( Canadá 1860-1947)

pastel sobre papel; 59 x 40 cm

 

 

“A melhor maneira de começar a sonhar é mediante livros. Os romances servem de muito para o principiante. Aprender a entregar-se totalmente à leitura, a viver absolutamente com as personagens de um romance, eis o primeiro passo. Que a nossa família e as suas mágoas nos pareçam chilras e nojentas ao lado dessas, eis o sinal do progresso.”


Fernando Pessoa





Passa uma borboleta, poesia de Alberto Caeiro

23 02 2023
Ilustração Hilda T. Miller

 

Passa uma Borboleta

 

 

Alberto Caeiro

 

 

 

Passa uma borboleta por diante de mim

E pela primeira vez no Universo eu reparo

Que as borboletas não têm cor nem movimento,

Assim como as flores não têm perfume nem cor.

A cor é que tem cor nas asas da borboleta,

No movimento da borboleta o movimento é que se move,

O perfume é que tem perfume no perfume da flor.

A borboleta é apenas borboleta

E a flor é apenas flor.

 

 

 

 

Em: O Guardador de Rebanhos, Fernando Pessoa, [Poemas de Alberto Caeiro], 10ª edição, Lisboa, Ática:1993, p. 64





Curiosidade literária

12 09 2022

Por volta da  meia noite

Alejandra Caballero (Espanha, 1974)

óleo sobre tela, 30 x 30cm

Fernando Pessoa é conhecido pelas inúmeras superstições que acalentava, assim como pelo crédito que dava à astrologia.  No legado deixado, mais de vinte e cinco mil páginas encontradas em baú de guardados,  estão seu próprio mapa astrológico, [Gêmeos com Sagitário ascendente] e os mapas astrológicos de seus heterônimos: Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos, com data e hora precisas de nascimento. Estudioso da astrologia dedicou-se a calcular os mapas astrais desenhados e calculados por si próprio.  Mas ainda há registros de mais mapas astrológicos de outros de seus mais de setenta heterônimos.





Noite de São João, poesia de Alberto Caeiro

14 06 2021

Festa de São João, 2007

Enrico Bianco (Itália/Brasil, 1918 – 2013)

óleo sobre tela, 70 x 100 cm

 

 

Noite de São João

Alberto Caeiro

 

Noite de S. João para além do muro do meu quintal.

Do lado de cá, eu sem noite de S. João.

Porque há S. João onde o festejam.

Para mim há uma sombra de luz de fogueiras na noite,

Um ruído de gargalhadas, os baques dos saltos.

E um grito casual de quem não sabe que eu existo.

 

 

Em: Poemas completos de Alberto Caeiro, Mensagem, Fernando Pessoa, Lima, Peru, Los Libros Mas Pequeños del Mundo: 2011, página, 242





Antes do voo da ave, Fernando Pessoa

27 08 2018

 

 

 

sky-and-water-ii.jpg!LargeCéu e água II, 1938

M.C. Escher ( Holanda, 1898-1972)

Xilogravura

 

XLIII

 

Antes do voo da ave

 

Antes do voo da ave,

que passa e não deixa rasto,

Que a passagem do animal

que fica lembrada no chão.

A ave passa e esquece,

e assim deve ser,

O animal,

onde já não está

e por isso de nada serve,

Mostra que já esteve,

o que não serve para nada.

A recordação

é uma traição à Natureza,

Porque a Natureza

de ontem não é Natureza.

O que foi não é nada,

e lembrar é não ver.

 

Passa, ave, passa,

e ensina-me a passar!

 

 

Em: Poemas completos de Alberto Caeiro, Mensagem, Fernando Pessoa, Lima, Peru, Los Libros Mas Pequeños del Mundo: 2011, páginas 149-150.

 

 





“Chove. É Dia de Natal”, poema de Fernando Pessoa

4 12 2017

 

 

 

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Chove. É Dia de Natal

 

Fernando Pessoa

 

Chove. É dia de Natal.

Lá para o Norte é melhor:

Há a neve que faz mal,

E o frio que ainda é pior.

 

E toda a gente é contente

Porque é dia de o ficar.

Chove no Natal presente.

Antes isso que nevar.

 

Pois apesar de ser esse

O Natal da convenção,

Quando o corpo me arrefece

Tenho o frio e Natal não.

 

Deixo sentir a quem quadra

E o Natal a quem o fez,

Pois se escrevo ainda outra quadra

Fico gelado dos pés.

 

Em: Cancioneiro, Fernando Pessoa, Cyberfil: 2002 –  página 34