Papa-livros: A pesca do salmão no Iêmen, de Paul Torday

12 01 2010

 

A pesca do Salmão no Dee

Joseph Farquharson (Escócia 1846-1935)

óleo sobre tela

Quem anda à procura de um romance leve, muito diferente e com um bom senso de humor não deve deixar de ler A Pesca do Salmão no Iêmen do escritor inglês Paul Torday [Record:2008].    O mínimo que posso dizer é que este romance é muito original.  A começar pela forma com que a história é contada.  Lembra, em muitos aspectos, os romances epistolares, pois é feito de cartas, e-mails, páginas de diário, relatórios da Câmara dos Deputados na Inglaterra (House of Commons), programas de entrevistas, até emails relacionados a Al Qaeda fazem parte dessa “pilha” de documentação que conta a história.  Cada capítulo traz à tona uma nova faceta do desenvolvimento de um projeto ambicioso, imaginado por um xeique iemenita, de trazer a cultura do salmão para o seu país a fim de propiciar aos seus habitantes o esporte a que ele se dedicava em sua propriedade na Escócia: a pesca do salmão.  A engenharia social que atrai o abastado xeique seria proporcionar ao Iêmen uma das únicas atividades em que todos, de quaisquer classes sociais, poderiam participar de igual para igual, lado a lado à beira do rio.

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Este é um livro construído como uma sátira aos governos,  a toda a burocracia governamental, que aqui aparece retratada na Inglaterra, mas que com pequenos ajustes é universalmente insana.    O projeto de se fazer a pesca do salmão – um peixe de água doce muito fria–  no Iêmen, um país no deserto é considerado desde o primeiro capítulo como uma loucura, um projeto sem pé nem cabeça.  Mas, por razões diversas e principalmente para favorecer ao primeiro-ministro, este projeto começa a crescer e toma vida própria.  Não só cresce como se torna um projeto imprescindível para o governo inglês.  E ganha mais combustível ainda depois que Alfred Jones, nosso herói, um cientista do Departamento de Pesca do governo, contrário ao projeto, vê-se frente a frente e seduzido pela filosofia do xeique em questão.   O resultado é imprevisível.

 

 

Nesse meio tempo, entre “provas” escritas – emails, diários, cartas, entrevistas – temos uma das mais divertidas narrativas que ironizam e satirizam a vida contemporânea, os casamentos de conveniência, o discurso político.  O que nos resta, por incrível que pareça, é uma mensagem sóbria, gratificante: a esperança é imprescindível para nos dar direção a nossas vidas.  A gente vive, sonha e faz planos, os mais diversos.  Mas mesmo que o que planejamos não venha a se concretizar, aquela esperança que nos ajudou a tentar construí-lo já é o suficiente para dar sentido à nossa vida.    Por trás disso há uma diferença importante entre dois conceitos e quem nos ensina é o xeique:  há religião e espiritualidade.  Ás vezes elas se misturam, às vezes não.    Mas a espiritualidade, quando somos íntimos dela, pode ser encontrada nos recantos mais exóticos, onde jamais esperaríamos encontrá-la.  E é ela quem nos salva. 

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Recomendo a leitura de A pesca do salmão no Iêmen.  Principalmente se você anda desiludido com os seus políticos, com a falência dos seus sonhos.  Há muito material aqui, para dar uma outra vida ao cotidiano, para ver um problema por um outro ângulo.    Achei que esse romance perde um pouco o ritmo no meio das suas 360 páginas.  Mas devo alertar o meu leitor que esta pode ser uma observação só minha.  Ultimamente tenho tido a impressão que na maioria dos romances que leio p texto poderia ter sido cortado, editado, para melhoria do ritmo da narrativa.  Talvez seja um problema meu e não do autor neste caso.  Fica de qualquer maneira, aqui, a minha forte recomendação a esta divertida leitura.





Papa-livros: Viva chama, de Tracy Chevalier

23 11 2009

Goya,osonodarazaoproduzmonstrosO sono da razão produz monstros, 1799  da série:  Os caprichos

Francisco Goya (Espanha, 1746-1828)

Já tive a oportunidade, aqui neste blog, de usar a palavra zeitgeist .  Esta é uma palavra alemã [pronunciada: ‘zaitgaist’] que engloba o conceito de um espírito de época. Originalmente ligada a um movimento do romantismo alemão, com o tempo esta palavra tornou-se a maneira taquigráfica para historiadores explicarem certos fenômenos, atitudes, preocupações que parecem surgir simultaneamente em diversos lugares e culturas diferentes mas que não teriam sido relacionados, apesar dos muitos pontos em comum que apresentam.  Foi justamente este conceito de zeitgeist que primeiro veio à minha mente ao ler Viva Chama [não gosto desta tradução do título inglês: Burning Bright, porque perde a ênfase em português], o mais recente livro de Tracy Chevalier traduzido no Brasil. (Rio de Janeiro, Record: 2009).

Não sou, nem nunca fui, uma especialista do século XVIII, mas conheço o suficiente para me lembrar que uma grande preocupação intelectual do final deste século e  início do século XIX baseava-se nos contrastes, nos opostos.  Intelectuais consideravam seriamente aspectos entre a razão e o sonho;  consideravam os limites do racionalismo em oposição às infinitas possibilidades do inconsciente.  Um dos maiores símbolos para a época, que parece representar fielmente as considerações mencionadas foi a série de oitenta gravuras do pintor espanhol Francisco Goya, chamada de  Los Caprichos, publicada em 1799.  E dentre estas gravuras, uma em particular: O sono da razão produz monstros, se tornou emblemática das preocupações desse fim de século.

william-blake-pieta-1795-londra-tate-gallery

Pietà, 1795

William Blake ( Inglaterra, 1757-1828)

Tate Gallery,  Londres

William Blake (1757-1828), poeta e pintor inglês, contemporâneo de Goya e também um dos personagens do livro de Tracy Chevalier foi um dos intelectuais da época,  mais  preocupados com a dualidade dos elementos.  Blake, que parece no romance um personagem de pano de fundo, tem, no entanto, suas idéias cristalizadas no tecido do romance.  Assim, questões que poderiam ser reduzidas e polarizadas, como razão x sonho; bom x mau; crença x materialismo, encontram no romance a linha de união que as une; a linha de união que preocupava Blake e que ele, através da autora explica:

 — Sim, minhas crianças.  A tensão entre os opostos é o que nos faz ser como somos.  Não somos apenas  uma coisa, mas o oposto dela também, misturando, se chocando e faiscando  dentro de nós.  Não apenas luz, mas escuridão.  Não só paz, mas guerra.  Não só inocência, mas conhecimento.  – Ele descansou o olhar um instante na margarida que Maisie ainda segurava.  – É uma lição que precisamos aprender: ver o mundo todo numa flor… [p. 230].

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William Blake, 1807

Thomas Phillips ( Inglaterra, 1770-1845)

National Portrait Gallery, Londres.

 

 

Tracy Chevalier, astutamente, digere para o leitor a grande temática de opostos se complementando, e o faz em tantos níveis através do romance, que este se torna, para quem o percebe, quase um quebra-cabeças do gênero: quantos quadrados podemos ver neste desenho?  Onde a figura apresentada não só é feita de quadrados como emoldurada por eles.    A trama é difusa e simples, aparentemente centrada nas peripécias de três personagens nos primeiros anos da adolescência.  Uma família sai de um vilarejo na Inglaterra, mudando-se para Londres, a convite do dono de um circo.  O pai, marceneiro, especialista cadeiras, vai para a capital do país ser carpinteiro do circo. Com ele além da mulher vão os filhos: Maisie, uma menina recatada e seu irmão mais velho Jem.   Logo, logo as crianças ficam amigas de Maggie, uma menina de idade próxima à de Jem, filha de vizinhos.  Os três têm muitas aventuras citadinas.  Maggie se aproxima deles feliz por poder mostrar aos “caipiras do interior” sua habilidade e esperteza adquiridas no dia a dia da metrópole.   Um casal — William Blake e sua esposa — que mora no mesmo grupo de casas, é olhado com curiosidade e desconfiança pelos vizinhos.  Assim se torna um elemento de fascinação para os três aventureiros que seguem o casal daqui para acolá e acabam travando uma amizade com o poeta-pintor e sua esposa.

Todos os personagens com grandes ou pequenas participações na trama apresentam duas facetas:  boa e má, inocente e experiente, seriedade e jocosidade.  Anne Kellaway, a senhora sisuda do interior é imediatamente fascinada pelo mundo do circo, onde ela pode se deixar levar por momentos oníricos que não admitia em sua própria vida.  O sério casal Blake é entrevisto nas suas relações sexuais ao ar livre.    Jem, o nosso adolescente do interior luta contra a fascinação e o repúdio por sua amiga Maggie.  Até mesmo as duas meninas, que parecem um o reverso da outra, têm em comum o mesmo nome, Margaret, para o qual cada uma usa um apelido diferente: Maisie e Maggie.  

William Blake é retratado como uma pessoa afável que desperta bastante curiosidade não só por sua impressora, uma máquina que pode ser vista em sua casa, da rua, como também pelos seus desenhos, por suas conversas, por suas poesias e por suas preferências políticas a favor daqueles que no continente apóiam a Revolução Francesa.  E mesmo como um intelectual londrino, William Blake não se esquiva de participar de pequenas discussões sobre uma visão do todo, que inclua seus opostos, com qualquer pessoa que pareça se interessar pelo assunto.   Um exemplo, logo no início do romance, de um diálogo que se desenrola entre ele e o dono do circo Phillip Astley.

Philip Astley

 

 

— O senhor cria, não é? – continuou Phillip Astley – Desenha as coisas reais, mas seus desenhos, suas gravuras não são a coisa em si, pois não?  São fantasias.  Creio que.  apesar das diferenças… – olhou de lado para o paletó preto e simples do Sr. Blake comparado ao vermelho que ele usava, com seus botões de metal brilhando, lustrados diariamente pelas sobrinhas  — somos do mesmo ramo, senhor: nós dois vendemos ilusão. O senhor com seu pincel, tinta e buril, enquanto eu… – Phillip Astley fez um gesto para as pessoas em volta — …todas as noites crio um mundo com artistas no picadeiro.  Tiro o público de seus cuidados e preocupações e dou-lhe fantasia para ele achar que está em outro lugar.  Mas para ser real às vezes temos que ser reais.  ….

 — ………………………………………………………………………………………….  —-

— Não desenho pessoas reais – interrompeu o Sr. Blake, que ouvia com grande interesse e falou. Então, num tom mais normal, sem raiva.  – Mas entendo o senhor.  Porém vejo de outra forma.  O senhor faz diferença entre realidade e ilusão.  Julga que são opostos, não?

— Claro – respondeu Phillip Astley.

— Para mim, são uma coisa só.  ….   [p. 115-116]

E assim, como numa sala de espelhos, a idéia de opostos unidos num todo, é esmiuçada e explicada, multiplicada infinitamente em diferentes níveis através do romance.  Quando vemos, temos em nossas mãos a verdadeira união de “opostos”,  William Blake que parecia apenas um personagem lateral, quase pano de fundo,  tem suas idéias explicitadas de tal forma que é indiretamente o real e único retratado na narrativa.  

Vista da Ponte de Westminster em Londres na segunda metade do século XVIII.

 

É a habilidade narrativa de Tracy Chevalier que leva este romance à leitura rápida, quase compulsiva da trama.  Como leitores anteriores já haviam comentado –  as citações na capa mostram – a riqueza de detalhes desta Londres do final do século XVIII é impressionante.  A autora parece sempre confiante nas descrições em que os cinco sentidos acabam sendo envolvidos: da paisagem do Tamisa de um lado ao outro da ponte de Westminster, aos cheiros dos becos locais, à delicadeza do tato na manufatura de um botão, ao perpétuo gosto de mostarda para os trabalhadores da fábrica, ao assovio de uma canção.  Neste livro todos os nossos sentidos são acordados para o mundo de 200 anos atrás.   E melhor ainda, nós nos lembramos de que esse mundo anterior, poderia ser particularmente cruel e imundo, de vida difícil, esgotante, para a maioria das pessoas.  

Se você gosta de um romance com clareza histórica e uma conexão literária, não deixe de ler Viva Chama.  Vale a pena.

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PS:  A Bertrand do Brasil poderia ter sido um pouco mais cuidadosa na editoração do livro.   Há muitos pequenos errinhos, incluindo a troca de personagens, que distraem a leitura.  Uma falta que não se espera de uma das editoras de um grande conglomerado editorial.  Pena.  Muita pena, que a pressa do lucro haja desvalorizado o texto.

 

Tracy Chevalier





Papa-livros: A costa do mosquito, Paul Theroux

28 10 2009

Henri Rousseau, Floresta Tropical com macacos, 1910, Tate Gallery, LondresFloresta Tropical com macacos, 1910

Henri Rousseau ( França, 1844-1910)

óleo sobre tela

National Gallery, Washington DC

Há uma semana tento escrever sobre o livro A costa do mosquito de Paul Theroux, (Rio de Janeiro, Alfaguara: 2009), romance eleito para discussão no mês de outubro no grupo de leitura Papa-livros.  A razão da minha dificuldade está na tensão que sinto entre dois opostos: um excelente romance, com uma narrativa extraordinária, de um lado e do outro lado, personagens totalmente detestáveis com exceção do narrador, um menino se aproximando da adolescência, pelo qual sinto total indiferença.  Esta combinação tem me deixado paralisada. 

O enredo é bastante simples: um homem, um inventor, quase genial, insatisfeito com a moderna sociedade americana, empacota suas coisas e família mudando-se para a América Central, onde pretende instalar numa região remota os rudimentos de uma sociedade perfeita.  É a história de um psicopata, um “survivalist”, egocêntrico, que submete os 4 filhos e sua esposa a um grande sofrimento, na esperança sem base realística de que poderá “re-inventar” o mundo, a sociedade, a maneira de viver.  Seu relacionamento amoroso, com filhos e mulher, se queda no parâmetro da insensibilidade.  Sempre com desculpas para qualquer fracasso, tende a colocar a culpa em outros ou na sociedade que o cerca.  Nunca sente arrependimento ou remorso e leva sua prole a sofrer, física e mentalmente, às vezes quase que se divertindo com seu sofrimento, mostrando continuamente um comportamento anti-social, em prol de um benefício que só ele parece perceber.

É difícil decidir qual dos personagens é mais detestável nessa trama:  Se Allie Fox, cativo de sua condição mental, aparentemente são, mesmo que suas ações revelem o contrário; ou se “Mãe”, sua cara-metade, que aceita o comportamento esdrúxulo  do marido, facilitando sua performance, mesmo que esta se realize em detrimento da educação, do desenvolvimento, da segurança e da saúde de sua prole.

O resultado do romance é esmagador, enfurecedor,  revoltante.  Reconheço que houve momentos em que tive que colocar o livro de lado, tal minha agonia quanto ao comportamento dos dois adultos desta perigosa família.  Se consegui terminar o livro foi por exclusiva admiração ao autor, à sua habilidade com a escrita e em respeito ao seu trabalho anterior.

A Costa De Mosquito

Paul Theroux sempre me encantou com sua facilidade descritiva e aqui continua a mostrar uma narrativa cheia de imagens ricas e inovadoras.  Continua sensacional.  Vejamos por exemplo este parágrafo no início do livro, quando Charles decide sair de casa para ver onde estaria seu pai, no campo, à noite:

Nossa casa era rodeada de campos lavrados.  Arvoredos cresciam nas extremidades de cada um, para quebrar o vento. O milho e o tabaco já começavam a brotar e embora fosse mais fácil caminhar entre os sulcos, mantive-me na trilha, com os braços à frente do rosto, para me proteger dos galhos.  Pior que eles, as teias de aranha atravessavam o caminho e se prendiam em meus cílios.  Os bosques eram cheios de charcos, e o som dominante na noite era a algazarra das rãs arborícolas – pequenas, escorregadias e lustrosas como iscas de peixe.   As árvores, azuis e negras, lembravam enormes bruxas… [p. 20]

Ou, esta passagem, bem mais no fim do livro:

Jerônimo parecia ter sido bombardeada.  Era principalmente pó, um bolsão de cinzas ardentes.  As árvores ao redor tinham se transformado em estacas.  Como o fogo se espalhara, a clareira se tornara maior, semelhante a uma cratera.   Os encanamentos do Menino Gordo haviam desmoronado – e estavam embranquecidos como ossos.  As bombas tinham caído.  Nenhuma casa ou abrigo ficara de pé.  As plantações estavam carbonizadas. Alguns caules restantes estavam empolados como carne queimada.  O milharal estava arrasado.  As abóboras e os tomates haviam explodido e minavam suco – tinham sido cozidos até apodrecer.  Algumas frutas se pareciam com bolsas esfarrapadas.

Mas as ruínas e as cinzas não eram nada comparadas ao silêncio.  Estávamos acostumados aos gorjeios e aos grasnidos dos pássaros, e com o ciciar retumbante das cigarras.  Não havia som, nem movimento.  Toda a vida existente em Jerônimo fora consumida pelo fogo.  Os pássaros que víamos estavam mortos, carbonizados, encolhidos, depenados, com asas minúsculas e cabecinhas ridículas, não mais do que bolotas.  Peixes viscosos boiavam na superfície do tanque.  Ao sol da tarde, tudo estava morto, silencioso e malcheiroso.  Algumas pilhas de escombros ainda fumegavam. [p. 321]

Minha familiaridade com Paul Theroux é baseada tanto nos livros de  ficção quanto nos seus livros de viagem.  Na ficção, lembro-me com muito gosto de Saint Jack, The consul’s file e Hotel Honolulu, livros que li quando morava fora do Brasil.  A costa do mosquito, no entanto, está na lista daqueles não lidos no original, apesar de ter sido um romance transformado em filme em 1986, dirigido por Peter Weir.  É difícil imaginar Harrison Ford, um galã de primeira linha, fazer o personagem principal desta saga familiar, porque Allie Fox, o papel que desempenha no filme, é um dos homens mais detestáveis da literatura americana!  Mais difícil ainda, é imaginar a fantástica atriz inglesa Helen Mirren, que parece ter sempre papéis de mulheres fortes, vestir-se na pele de “Mãe” – personagem casada com Allie Fox e talvez ainda mais desprezível que seu marido pela silenciosa  aderência aos planos do marido, por ser a facilitadora de um tipo de abuso sofrido pela ela mesma e por seus filhos, sem nunca se revoltar.

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Cena do filme A Costa do Mosquito, com Harrison Ford.

Com freqüência, durante a leitura de A costa do mosquito, lembrei-me de um outro livro que li há um pouco mais de um ano, também americano, chamado O castelo de vidro, de Jeannette Walls — uma leitura escolhida pelo grupo Papa-livros em março de 2008.  Este, baseado na verdadeira história da autora.   As circunstâncias de uma família disfuncional, com pais irresponsáveis, beirando a loucura, também são descritas nessa autobiografia.  Lá também temos um pai com comportamento anormal e uma mãe facilitadora.  Em ambos leva muito tempo para os filhos perceberem a situação de extrema dependência em que se encontram e fazerem o que é necessário para se salvarem.    Em ambos os livros, quer na ficção, quer na autobiografia, seus narradores,  — uma criança em cada uma das famílias – mostram grande fascinação por seus pais, fascinação mesclada por medo indistinto.   São crianças aterrorizadas pelos adultos dos quais dependem, e que não conseguem refrear seu amor e dedicação aos pais, como se só eles pudessem entender o gênio que se esconde por trás da loucura.    Há momentos em que Charles, em A costa do mosquito, filho mais velho, parece estar a ponto de descobrir a loucura de seu pai, mas tudo não passa de um vislumbre e se despedaça em segundos. 

Charles não chega a se lembrar, como nós leitores o fazemos,  nem mesmo de uma história contada, só para ele,  pelo Sr. Polski.  Uma história que preconiza o futuro de Charles.  Nela, um rapaz que sofreu na infância pelas manias do pai, morde-lhe fora uma orelha como parte de seu último desejo à beira da morte.  Esta história, contada como a dvertência ao menino pelo futuro nefasto que poderia ter, só encontra raízes no leitor, que naquela hora [p.69] sabe como a história de Charles se solucionará.  Mas o menino  leva muito tempo para que a imensidão do abuso a que foi submetido venha a trazer a revolta e fruir os resultados que o liberarão.  Vejamos um exemplo da estranha mistura de loucura e fascinação que Allie Fox exerce, pela descrição de Charles sobre o comportamento de seu pai:

 A prova disso é que estávamos em uma pipanto de quatro metros, seguindo rapidamente em direção à costa.  Não passava de uma canoa de fundo chato, mas tínhamos sombra, assentos e fumaça para espantar mosquitos. O Pai tinha convertido aquilo em alguma coisa veloz e confortável. Falava de forma desenfreada, mas sua loquacidade era criativa.  Durante todo o percurso rio abaixo, não parou de falar.  Estivera preocupado.  Ontem, havia chorado; hoje vociferava contra sua experiência e sobre o fim do mundo.  Parecia faminto.  Estava muito agitado e, agora, mais previsível do que nunca.  Mas não havia no mundo ninguém mais engenhoso. [p. 335]

paul theroux

Paul Theroux

Com os vaivens das minhas opiniões sobre este romance, só o recomendaria a quem estivesse interessado em um estudo da personalidade psicopata.  Se o seu objetivo, no entanto, é conhecer o excelente escritor Paul Theroux, recomendo que se entregue de corpo e alma à leitura de algum outro de seus títulos.





Papa-livros: leitura para outubro

24 09 2009

costa do mosquito

 

Esta é a seleção de leitura para o mês de outubro de 2009. 

 

A costa do mosquito

 

Autor: PAUL THEROUX

Editora: Objetiva

ISBN: 9788560281909

Edição: 1ª 2009

Número de páginas: 456

 

Discussão para o dia 18 de outubro de 2009.  Resenha aparecerá aqui depois desta data, quem quiser debater o conteúdo será bem-vindo, depois de 18 de outubro.

Boa leitura!




PAPA-LIVROS: Veronika Peters, O que cabe em duas malas

24 09 2009

Freira lendo no interior de igreja, Enrico Coleman (Itália 1846-1911)Freira lendo no interior de uma igreja, 1877.

Enrico Coleman (Itália, 1846 – 1911)

Aquarela,  54,25 cm x 36 cm

 

Milhares de pessoas, muitas das que temos entre nossos amigos, parecem estar sempre à procura de um significado maior em suas vidas, de uma paz espiritual que não encontram no dia a dia,  de uma comunhão, talvez, um encontro transcendental.  Alguns procuram esta espiritualidade nas filosofias orientais ou no estudo de conceitos metafísicos.  Tenho certeza grande parte do sucesso de muitas das obras do mago brasileiro, Paulo Coelho, se deve,  justamente, a esta procura por um significado maior do que os limites físicos de cada ser.  Poucas pessoas, no entanto, se entregam à esta procura na curiosa maneira em que a autora deste livro autobiográfico relata:  entrada para um convento. 

Considerando-se que Veronika Peters não havia sido educada dentro do catolicismo e que havia saído de casa ainda jovem adolescente de 14-15 anos, rebelde,  sua entrada num convento de freiras beneditinas aos 21 anos, já demonstra desde o início desta narrativa a ânsia de um significado maior em sua vida; a incrível sede de reflexão e auto-conhecimento que a absorvem; todas características que a levam a testar seus limites, seguidamente pelos 12 anos que permance no convento.   Inicialmente, a autora parece ciente do teste a que se submete:

O que vai acontecer se eu for privada de toda espécie de “distração”: sem rádio, sem televisão, sem telefone?  Vou enlouquecer, ou fazer alguma descoberta?  Seja como for, quero conhecer a experiência do silencio, quero sem me distrair, refletir sobre Deus, sobre a minha vida, sobre o mundo….  [pág.45]

Mas, a medida que a vida no convento continua, Veronika, ao contrário do que poderíamos esperar ou ao contrário do que ela mesma esperava, continua procurando por respostas e acalentando dúvidas quanto a sua permanência no local, sem se esquecer de que ainda há algo que lhe escapa. 

Vou bem aqui, é provável que ainda permaneça por algum tempo.  Um pequeno mundo próprio, onde não me sinto mais tão estranha como nos primeiros dias, espera aos poucos ser descoberto por mim.  Viver por algum tempo nesse lugar, com estas mulheres, em conformidade com esta idéia, parece-me ser a oportunidade para descobrir coisas, que em nenhum outro lugar serei capaz de aprender.  Algumas delas possuem algo que eu também gostaria de possuir. [pág 67-68, em carta a sua amiga Lina].

E assim passam-se doze anos no convento.  De noviça à freira, Veronika procura por respostas a perguntas que não sabe formular, mas que sente estarem presentes em sua vida.  Através desses anos, temos uma interessante visão da vida num convento moderno.   Para quem, como eu, que só conhece o interior dos conventos através de turismo histórico,  da leitura de Vida de Santa Teresa e de produções Hollywoodianas, foi uma verdadeira lição do modernismo católico.   Mas mesmo através destes estágios todos para total aceitação da vida como freira, Veronika se sente em descompasso com a comunidade e é frequentemente advertida por isso:

— Você está me ouvindo? Por que fica tão dura assim atrás do volante?

— Desculpe, eu ainda não me sinto muito à vontade no meu novo papel.

— Você não está representando papel nenhum.

— Ainda preciso me exercitar para ser o que represento com esta roupa.

— Isso todas nós precisamos.  [pág. 89]

 

veronika peters 1

A autora, Veronika Peters.

Eventualmente  Veronika sai do convento.  E escreve o livro sobre sua vida lá.   A popularidade deste romance,  (Was in zwei Koffer passt), foi um dos dez livros mais vendidos na Alemanha em 2007, onde permaneceu na lista da Der Spiegel por mais de seis meses, é um testemunho do grande número de pessoas se identificam com a procura espiritual.  E como o texto da editora mesmo diz, esse verdadeiro fenômeno editorial já demonstra um significativo sintoma social.  Um texto leve, de leitura muito rápida, que encoraja todos seus leitores a perseguirem os caminhos — mesmo que difíceis — na procura de sua própria espiritualidade.





Papa-livros: leitura para setembro

25 08 2009

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Esta é a seleção de leitura para setembro do grupo de leitura Papa-livros. 

O que cabe em duas malas: uma viagem para dentro

Autor:  VERONIKA PETERS

Editora:  Guarda-chuva

Edição: 1ª 2009

Número de páginas: 240

 

Discussão para o dia 20 de sembro de 2009.  Resenha aparecerá aqui depois desta data, quando quem quiser debater o conteúdo será bem-vindo.

Boa leitura!




PAPA-LIVROS: Benoîte Groult, Um toque na estrela

25 08 2009

As Parcas castellcoch

As Parcas, c. 1875

Escultura sobre a lareira, Salão Principal

Castell Coch, próximo a Cardiff .

País de Gales, Grã Bretanha

 

Aos 86 anos, Benoîte Groult, famosa feminista e jornalista francesa, escreveu um livro que se tornou um grande best-seller naquele país: Um toque na estrela [Rio de Janeiro, Record: 2009, 2ª edição].  O título é intrigante e esclarecido só ao final da leitura.  Mas o texto é claro e ajuda a refletir sobre um assunto raramente abordado com tanta destreza: a velhice.   Com extraordinário bom humor, Benoîte Groult nos guia revelando o processo de envelhecimento de um ser humano: as restrições físicas; as restrições e expectativas impostas pela sociedade, pelos colegas de trabalho, ou membros da família. 

Um recurso literário de grande valia neste romance,  que ajuda o enquadramento das causas defendidas pela autora, foi a narração  ser feita por uma das Parcas ou Moiras.  No romance, cuja tradução, de Ari Roitman e Carmem Cacciacarro, achei às vezes próximo demais ao francês, uma Moira começa e termina a história.  O parágrafo inicial marca o tom imparcial, às vezes irônico e nunca piedoso desta divindade que não nos deixará esquecê-la através do romance: 

Todos me chamam de Moira.  Vocês pensam que não me conhecem, mas todo mundo vive mais ou menos comigo sem saber, e ocupo um lugar cada vez maior em boa parte de suas vidas.  Aliás, ser uma Moira tornou-se um emprego apaixonante desde que tantas pessoas, que passaram seus verdes anos se achando eternas, perdem o norte conforme a flor da idade vai murchando e surge, inexorável, o fruto da maturidade.

 

Lafayette Ragsdale, (EUA) A good book,  2006

Um bom livro, 2006

Lafayette Ragsdale (EUA, contemporâneo)

 

É de fato esta Moira, quem fechará com chave de ouro a narrativa que culmina no debate interno que cada leitor , gentilmente guiado, trava com a autora, sobre a eutanásia, ou mesmo, o direito de se escolher o momento da morte.   

Acostumada a tratar de assuntos polêmicos através de suas colunas jornalísticas Benoîte Groult se tornou conhecida pela maneira sucinta com que caracteriza conceitos complexos, lembrando em muito suas conterrâneas, as grandes pensadoras francesas do século XVII, XVIII e XIX,  tais como Marquesa de Lambert,  Mme de Sévigné,  Françoise de Graffigny, Mme de Staël, e tantas outras cujas citações, por suas clareza e mordacidade atravessam séculos.   Como elas, Benoîte Groult tem dezenas de frases conhecidas: A velhice é tão longa que não se deve começá-la muito cedo [«La vieillesse est si longue qu’il ne faut pas la commencer trop tôt.»];  O que há de melhor na navegação é desembarcar [«Ce qu’il y a de plus beau dans la navigation, c’est de débarquer.»]; O feminismo nunca matou ninguém – o machismo mata todos os dias [« Le féminisme n’a jamais tué personne – le machisme tue tous les jours »].

 Muitas e muitas citações semelhantes podem ser retiradas de Um toque na estrela.  Quando o grupo Papa-livros se reuniu para discussão do texto , alguns membros, conhecidos por tomarem notas de passagens importantes dos livros que lêem, chegaram desta vez com os próprios livros cheios de marcadores, tal a abundância não só de possíveis citações significativas, mas de passagens inteiras que remetem a experiências próximas, às vezes bastante engraçadas, às vezes sentimentais.  

 

Linda Armstrong Joan_Reading 1994

Joan lendo, 1994, por Linda Armstrong.

 

Entrelaçado à descrição do dia a dia da velhice,  Benoîte Groult narra um belíssimo e tórrido romance entre dois adultos, um romance extraconjugal de ambas as partes, um romance além das fronteiras geográficas de cada componente.  Ele lembra ao leitor, entre outras situações, da necessidade de se aproveitar a vida ao máximo, ao extremo, com corpo e alma, porque é só do presente que se sabe.  E talvez nem mesmo deste. 

Enquanto, como leitores, somos apresentados a situações relativas ao incômodo do envelhecimento, ao incômodo,  para os outros, do nosso próprio envelhecimento, ao incômodo de termos que estar sempre parecendo mais jovens do que somos;  somos também apresentados em cores vivas e berrantes à beleza de se estar vivo, à necessidade que temos de nos agarrar ao momento, ao presente, à plenitude.   Por nos mostrar como é envelhecer, e também como é estar vivo, ainda no esplendor de uma idade madura e competente, somos convidados a desfrutar ao máximo a vida que temos.  Este livro é um hino à vida.  Um lembrete para que não a tratemos mal, mas que a honremos.  É preciso tomar com suas próprias mãos as oportunidades, porque elas não voltam mais.  As Parcas, as Moiras, elas sim, estão sempre atentas, sempre ocupadas, prontas para exercer os seus poderes.

***

 

Benoîte Groult

A escritora Benoîte Groult.

 

 

Benoîte Groult trabalha hoje, aos 89 anos, num outro livro.





Uma discussão sobre a leitura: O Papa-livros chega ao blog

12 08 2009

Ivan Chichelanov (Rússia 1920) aquarela 1977-1Banho de sol com leitura, 1977

Ivan Chichelanov (Rússia, 1920)

Aquarela

 

Hoje abri outra página neste blog: Papa-livros, um clube de leitura: ler, comer, falar

 

A intenção é tornar publica a opinião geral do grupo de leitura Papa-livros, que eu coordeno, sobre o livro que discutimos.  Na página explico como o grupo começou e dou a lista dos livros lidos no curso de mais de cinco anos.  Nessa lista, grifei em azul os livros de que mais gostei.  O meu gosto não reflete completamente o gosto do grupo.  Mas é difícil lembrar agora como foi que as pessoas reagiram há algum tempo atrás.  Fica aqui o convite para a leitura do mês de agosto:

 

um toque na estrela, benoite groult

 

Um toque na estrela de Benoîte Groult, Rio de Janeiro, Record: 2009.  218 páginas.

 

O encontro do Papa-livros será dia 23 de agosto.  E nenhuma discussão sobre o livro será publicada até lá.

 

Bem-vindos.