Floresta Tropical com macacos, 1910
Henri Rousseau ( França, 1844-1910)
óleo sobre tela
National Gallery, Washington DC
Há uma semana tento escrever sobre o livro A costa do mosquito de Paul Theroux, (Rio de Janeiro, Alfaguara: 2009), romance eleito para discussão no mês de outubro no grupo de leitura Papa-livros. A razão da minha dificuldade está na tensão que sinto entre dois opostos: um excelente romance, com uma narrativa extraordinária, de um lado e do outro lado, personagens totalmente detestáveis com exceção do narrador, um menino se aproximando da adolescência, pelo qual sinto total indiferença. Esta combinação tem me deixado paralisada.
O enredo é bastante simples: um homem, um inventor, quase genial, insatisfeito com a moderna sociedade americana, empacota suas coisas e família mudando-se para a América Central, onde pretende instalar numa região remota os rudimentos de uma sociedade perfeita. É a história de um psicopata, um “survivalist”, egocêntrico, que submete os 4 filhos e sua esposa a um grande sofrimento, na esperança sem base realística de que poderá “re-inventar” o mundo, a sociedade, a maneira de viver. Seu relacionamento amoroso, com filhos e mulher, se queda no parâmetro da insensibilidade. Sempre com desculpas para qualquer fracasso, tende a colocar a culpa em outros ou na sociedade que o cerca. Nunca sente arrependimento ou remorso e leva sua prole a sofrer, física e mentalmente, às vezes quase que se divertindo com seu sofrimento, mostrando continuamente um comportamento anti-social, em prol de um benefício que só ele parece perceber.
É difícil decidir qual dos personagens é mais detestável nessa trama: Se Allie Fox, cativo de sua condição mental, aparentemente são, mesmo que suas ações revelem o contrário; ou se “Mãe”, sua cara-metade, que aceita o comportamento esdrúxulo do marido, facilitando sua performance, mesmo que esta se realize em detrimento da educação, do desenvolvimento, da segurança e da saúde de sua prole.
O resultado do romance é esmagador, enfurecedor, revoltante. Reconheço que houve momentos em que tive que colocar o livro de lado, tal minha agonia quanto ao comportamento dos dois adultos desta perigosa família. Se consegui terminar o livro foi por exclusiva admiração ao autor, à sua habilidade com a escrita e em respeito ao seu trabalho anterior.

Paul Theroux sempre me encantou com sua facilidade descritiva e aqui continua a mostrar uma narrativa cheia de imagens ricas e inovadoras. Continua sensacional. Vejamos por exemplo este parágrafo no início do livro, quando Charles decide sair de casa para ver onde estaria seu pai, no campo, à noite:
Nossa casa era rodeada de campos lavrados. Arvoredos cresciam nas extremidades de cada um, para quebrar o vento. O milho e o tabaco já começavam a brotar e embora fosse mais fácil caminhar entre os sulcos, mantive-me na trilha, com os braços à frente do rosto, para me proteger dos galhos. Pior que eles, as teias de aranha atravessavam o caminho e se prendiam em meus cílios. Os bosques eram cheios de charcos, e o som dominante na noite era a algazarra das rãs arborícolas – pequenas, escorregadias e lustrosas como iscas de peixe. As árvores, azuis e negras, lembravam enormes bruxas… [p. 20]
Ou, esta passagem, bem mais no fim do livro:
Jerônimo parecia ter sido bombardeada. Era principalmente pó, um bolsão de cinzas ardentes. As árvores ao redor tinham se transformado em estacas. Como o fogo se espalhara, a clareira se tornara maior, semelhante a uma cratera. Os encanamentos do Menino Gordo haviam desmoronado – e estavam embranquecidos como ossos. As bombas tinham caído. Nenhuma casa ou abrigo ficara de pé. As plantações estavam carbonizadas. Alguns caules restantes estavam empolados como carne queimada. O milharal estava arrasado. As abóboras e os tomates haviam explodido e minavam suco – tinham sido cozidos até apodrecer. Algumas frutas se pareciam com bolsas esfarrapadas.
Mas as ruínas e as cinzas não eram nada comparadas ao silêncio. Estávamos acostumados aos gorjeios e aos grasnidos dos pássaros, e com o ciciar retumbante das cigarras. Não havia som, nem movimento. Toda a vida existente em Jerônimo fora consumida pelo fogo. Os pássaros que víamos estavam mortos, carbonizados, encolhidos, depenados, com asas minúsculas e cabecinhas ridículas, não mais do que bolotas. Peixes viscosos boiavam na superfície do tanque. Ao sol da tarde, tudo estava morto, silencioso e malcheiroso. Algumas pilhas de escombros ainda fumegavam. [p. 321]
Minha familiaridade com Paul Theroux é baseada tanto nos livros de ficção quanto nos seus livros de viagem. Na ficção, lembro-me com muito gosto de Saint Jack, The consul’s file e Hotel Honolulu, livros que li quando morava fora do Brasil. A costa do mosquito, no entanto, está na lista daqueles não lidos no original, apesar de ter sido um romance transformado em filme em 1986, dirigido por Peter Weir. É difícil imaginar Harrison Ford, um galã de primeira linha, fazer o personagem principal desta saga familiar, porque Allie Fox, o papel que desempenha no filme, é um dos homens mais detestáveis da literatura americana! Mais difícil ainda, é imaginar a fantástica atriz inglesa Helen Mirren, que parece ter sempre papéis de mulheres fortes, vestir-se na pele de “Mãe” – personagem casada com Allie Fox e talvez ainda mais desprezível que seu marido pela silenciosa aderência aos planos do marido, por ser a facilitadora de um tipo de abuso sofrido pela ela mesma e por seus filhos, sem nunca se revoltar.

Cena do filme A Costa do Mosquito, com Harrison Ford.
Com freqüência, durante a leitura de A costa do mosquito, lembrei-me de um outro livro que li há um pouco mais de um ano, também americano, chamado O castelo de vidro, de Jeannette Walls — uma leitura escolhida pelo grupo Papa-livros em março de 2008. Este, baseado na verdadeira história da autora. As circunstâncias de uma família disfuncional, com pais irresponsáveis, beirando a loucura, também são descritas nessa autobiografia. Lá também temos um pai com comportamento anormal e uma mãe facilitadora. Em ambos leva muito tempo para os filhos perceberem a situação de extrema dependência em que se encontram e fazerem o que é necessário para se salvarem. Em ambos os livros, quer na ficção, quer na autobiografia, seus narradores, — uma criança em cada uma das famílias – mostram grande fascinação por seus pais, fascinação mesclada por medo indistinto. São crianças aterrorizadas pelos adultos dos quais dependem, e que não conseguem refrear seu amor e dedicação aos pais, como se só eles pudessem entender o gênio que se esconde por trás da loucura. Há momentos em que Charles, em A costa do mosquito, filho mais velho, parece estar a ponto de descobrir a loucura de seu pai, mas tudo não passa de um vislumbre e se despedaça em segundos.
Charles não chega a se lembrar, como nós leitores o fazemos, nem mesmo de uma história contada, só para ele, pelo Sr. Polski. Uma história que preconiza o futuro de Charles. Nela, um rapaz que sofreu na infância pelas manias do pai, morde-lhe fora uma orelha como parte de seu último desejo à beira da morte. Esta história, contada como a dvertência ao menino pelo futuro nefasto que poderia ter, só encontra raízes no leitor, que naquela hora [p.69] sabe como a história de Charles se solucionará. Mas o menino leva muito tempo para que a imensidão do abuso a que foi submetido venha a trazer a revolta e fruir os resultados que o liberarão. Vejamos um exemplo da estranha mistura de loucura e fascinação que Allie Fox exerce, pela descrição de Charles sobre o comportamento de seu pai:
A prova disso é que estávamos em uma pipanto de quatro metros, seguindo rapidamente em direção à costa. Não passava de uma canoa de fundo chato, mas tínhamos sombra, assentos e fumaça para espantar mosquitos. O Pai tinha convertido aquilo em alguma coisa veloz e confortável. Falava de forma desenfreada, mas sua loquacidade era criativa. Durante todo o percurso rio abaixo, não parou de falar. Estivera preocupado. Ontem, havia chorado; hoje vociferava contra sua experiência e sobre o fim do mundo. Parecia faminto. Estava muito agitado e, agora, mais previsível do que nunca. Mas não havia no mundo ninguém mais engenhoso. [p. 335]

Paul Theroux
Com os vaivens das minhas opiniões sobre este romance, só o recomendaria a quem estivesse interessado em um estudo da personalidade psicopata. Se o seu objetivo, no entanto, é conhecer o excelente escritor Paul Theroux, recomendo que se entregue de corpo e alma à leitura de algum outro de seus títulos.