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Paço de São Cristóvão, 1817
Thomas Ender (Áustria, 1793-1875)
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Laços de fitas
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Viriato Corrêa
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— Fitas, arranja-me fitas verdes para toda esta gente, disse D. Pedro jovialmente, tocando no braço de dona Leopoldina.
— Vou buscá-las.
E, risonha, a princesa deixou o grande salão burburinhante, em caminho da alcova.
Naquela noite, de 14 de setembro de 1822, o palácio de São Cristóvão estava num pruido febril de festa e novidade.
Ao escurecer D. Pedro havia voltado de São Paulo e, como por milagre, a cidade inteira soube que o príncipe, nas colinas do Ipiranga, tinha dado o grito da Independência.
Aquilo estalara na cidade como uma bomba. Os salões da Boa Vista encheram-se num momento. Os grandes vultos da propaganda correram a ouvir do próprio imperador os pormenores do gesto emancipador.
D. Pedro, com uma alegria de rapaz e aquelas maneiras democratizadas que ele tinha nos seus momentos de júbilo, contava a sua grande revolta ao receber de Paulo Bregaro, o correio que José Bonifácio lhe enviara, as notícias das cortes de Lisboa: o seu movimento imediato e espontâneo em arrancar do chapéu o tope português gritando “Independência ou Morte”; os transportes da comitiva ao ouvir o brado libertados; a marcha galopante para São Paulo; os delírios do povo paulista naquela mesma noite no teatro da Ópera; o hino que ele mesmo escrevera e que a platéia com ele cantara, alucinadamente; os vivas do padre Ildefonso Xavier, aclamando-o rei do Brasil, enfim, a sua viagem para o Rio, vitoriado por toda a parte.
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Dona Maria Leopoldina de Áustria (Viena, 1797- Rio de Janeiro, 1826)
Primeira Imperatriz-consorte do Brasil, esposa de D. Pedro I
Rainha-consorte de Portugal
Arquiduquesa da Áustria
Née: Dona Carolina Josefa Leopoldina Francisca Fernanda de Habsburgo-Lorena
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A fisionomia dos patriotas fulgurava.
José Bonifácio envolvia-o num olhar de ternura emocionada. Gonçalves Ledo, nervoso, agitado movia eloquentemente o braço, a cada passagem vibrante da narrativa. Frei Sampaio devorava-o com o olhar em fogo. Cunha Barbosa esticava-se nas pontas dos pés, a mão ao pavilhão da orelha para ouvir melhor. Nóbrega veio colocar-se mais perto para não perder uma palavra da narrativa. José Clemente, calmo, com aquele ar de serenidade inalterável, de quando em quando, traía-se por um fulgor mais vivo nos olhos. Não havia quem não sentisse naquele instante um grande fogo na alma.
A princesa voltou com as mãos cheias de fitas verdes.
D. Pedro tomou um dos laços da mão da esposa, oferecendo-o a José Bonifácio.
— Foi a cor que escolhi para a bandeira – o verde. Ponha o laço no braço.
Dona Leopoldina começou a distribuir as fitas. Todos se curvaram respeitosamente.
Entre a figura serena da princesa e a figura vibrante do príncipe havia uma diferença profunda no desenrolar daquele movimento político de emancipação. Dona Leopoldina era a amiga incondicional do Brasil. Desde o primeiro momento da propaganda que ela se tinha colocado espontaneamente ao lado da Independência. Enquanto D. Pedro, aquela sua cabeça de vento, ora bandeava para um lado, ora para o outro, ora cedendo às exigências de Avilez e da divisão portuguesa, ora tendo gestos imprevistos de simpatia pelos brasileiros, ela, com uma ternura religiosa pela paz em que lhe nasceram os filhos, esteve sempre ao lado da grande aspiração política do Brasil.
A vitória dos campos do Ipiranga era principalmente dela, da sua habilidade, da sua candura, do seu coração, em torcer o príncipe tão leviano e tão estouvado, para um feito tão alto.
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Dom Pedro I, o Libertador do Brasil ( Queluz, 1798 – Queluz, 1834)
Primeiro Imperador do Brasil
Pedro IV de Portugal
[Pedro de Alcântara Francisco António João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon]
Pintura de Benedito Calixto ( Brasil, 1853-1927)
óleo sobre tela, 1902
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Todos que ali estavam sabiam do papel que ela tivera.
A cena de quatorze dias atrás era conhecida nas suas minúcias. O ministério de José Bonifácio tinha-se reunido para conhecer as exigências das Cortes de Lisboa. Essas exigências eram tão prementes, que só um golpe de independência poderia resolvê-las. O velho Andrada conclui pela separação definitiva do Brasil de Portugal e todos, inclusive a princesa, aplaudem a decisão. É preciso mandar um emissário a D. Pedro, em São Paulo. Paulo Bregaro é chamado. José Bonifácio entrega-lhe os papéis, recomendando:
— Se não arrebentar uma dúzia de cavalos no caminho nunca mais será Correio; veja o que faz.
E, quando o oficial vai montado para partir, dona Leopoldina assoma as escadas de pedra do palácio, detendo-o com um gesto:
— Falta ainda isto.
E, a sua carta, carta escrita pela sua própria mão, dirigida ao marido, aconselhando-o, pedindo-lhe que fizesse imediatamente a Independência do Brasil.
Os salões continuavam a encher. A todo o momento carros paravam à escadaria do palácio.
A noite estava fria. Chuviscava. Pelas janelas via-se o clarão longínquo da cidade que começava a iluminar-se festivamente.
D. Pedro passeava pelo salão radiosamente. Estava de uma alegria como nunca se tinha visto. Ora passava o braço aos ombros de José Bonifácio, ora aos de Gonçalves Ledo, ora ia conversar com frei Sampaio, ora atender à reverência de um patriota que entrava. Tinha-se a impressão de que ali não estava o príncipe que havia acabado de fundar um império, mas um homem como outro qualquer, um excelente camarada que se democratizava em abraços e rompantes festivos.
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Paço de São Cristóvão, c. 1835-1840
Barão Karl Robert Planitz ( Alemanha, 1804- Brasil, 1847)
Gravura aquarelada
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Nas salas agora, quase que ninguém se podia mover. D. Pedro lançou os olhos pelo salão em que se reuniam os vultos da propaganda e exclamou:
— Mas nem todos têm o distintivo da Independência!
E, com a jovialidade dos seus vinte e quatro anos, voltou-se para a esposa num momento de intimidade encantadora:
— Os laços foram poucos. Não haverá mais fitas verdes no palácio?!
Dona Leopoldina sorriu. Chegou-se-lhe até perto e disse-lhe baixinho aos ouvidos:
— Não há.
Mas seguiu em rumo da alcova. Abriu as gavetas do primeiro móvel, remexeu-as. Não havia fitas. Foi a outras gavetas, a mais outras, a mais outras. As fitas que encontra não são da cor do distintivo.
E vai sair e fechar a porta quando os seus olhos se voltam para a sua larga cama estendida no quarto. Os grandes travesseiros de cambraia estão enfeitados de fitas verdes. Aproxima-se e nervosamente arranca as fitas uma por uma, pedaço a pedaço, sem deixar um só.
E entra no salão com uma alegria de criança, segurando a mão do marido:
— Arranjei as fitas.
Há uma exclamação de contentamento em toda a sala. Com um leve tom de rosa no rosto a princesa conclui:
— Tirei-as dos travesseiros de minha cama.
No movimento instintivo toda a gente baixa respeitosamente a cabeça, numa reverência de profunda emoção. Que alma maravilhosa tinha aquela mulher que amava tanto o Brasil a ponto de oligar candidamente à intimidade recatada dos travesseiros de sua cama!
Ninguém se sente com ânimo de merecer tão alta honra. Há um ligeiro silêncio, uma ligeira indecisão.
Antonio Menezes de Vasconcelos Drummond avança um passo. Dona Leopoldina oferece-lhe o laço de fita. Ele beijou-o num respeito comovedor:
— Obrigado, majestade! Era verdade. Ninguém se havia lembrado que já não mais estava ali a arquiduquesa d’ Áustria e sim a soberana do Brasil.
E todos avançam. Dona Leopoldina distribui as fitas. A cada laço que entrega um beijo estala, o beijo da ternura, o beijo da gratidão, a única e mais bela homenagem que aqueles patriotas podiam, naquele momento, prestar aquele imenso coração de mulher.
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Em: Terras de Santa Cruz: contos e crônicas da história brasileira, Viriato Corrêa, São Paulo, Civilização Brasileira: 1956.
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Manuel Viriato Correia Baima do Lago Filho (Pirapemas, MA 1884 — Rio de Janeiro, RJ 1967) – Pseudônimos: Viriato Correia, Pequeno Polegar, Tibúrcio da Anunciação. Diplomado em direito, jornalista, contista, romancista, teatrólogo, autor de literatura infantil e crônicas históricas, professor de teatro, membro da ABL e político brasileiro.
Obras:
Minaretes, contos, 1903
Era uma vez…, infanto-juvenil, 1908
Contos do sertão, contos, 1912
Sertaneja, teatro, 1915
Manjerona, teatro, 1916
Morena, teatro, 1917
Sol do sertão, teatro, 1918
Juriti, teatro, 1919
O Mistério, teatro, 1920
Sapequinha, teatro, 1920
Novelas doidas, contos, 1921
Contos da história do Brasil, infanto-juvenil, 1921
Terra de Santa Cruz, crônica histórica, 1921
Histórias da nossa história,crônica histórica, 1921
Nossa gente, teatro, 1924
Zuzú, teatro, 1924
Uma noite de baile, infanto-juvenil,1926
Balaiada, romance, 1927
Brasil dos meus avós, crônica histórica, 1927
Baú velho, crônica histórica, 1927
Pequetita, teatro, 1927
Histórias ásperas, contos, 1928
Varinha de condão, infanto-juvenil, 1928
A Arca de Noé, infanto-juvenil, 1930
A descoberta do Brasil, infanto-juvenil,1930
A macacada, infanto-juvenil, 1931
Bombonzinho, teatro, 1931
Os meus bichinhos, infanto-juvenil, 1931
No reino da bicharada, infanto-juvenil, 1931
Quando Jesus nasceu, infanto-juvenil, 1931
Gaveta de sapateiro, crônica histórica, 1932
Sansão, teatro, 1932
Maria, teatro, 1933
Alcovas da história, crônica histórica, 1934
História do Brasil para crianças, infanto-juvenil, 1934
Mata galego, crônica histórica, 1934
Meu torrão, infanto-juvenil,1935
Bicho papão, teatro, 1936
Casa de Belchior, crônica histórica, 1936
O homem da cabeça de ouro, teatro, 1936
Bichos e bichinhos, infanto-juvenil, 1938
Carneiro de batalhão, teatro, 1938
Cazuza, infanto-juvenil, 1938
A Marquesa de Santos, teatro, 1938
No país da bicharada, infanto-juvenil, 1938
História de Caramuru, infanto-juvenil, 1939
O país do pau de tinta, crônica histórica, 1939
O caçador de esmeraldas, teatro, 1940
Rei de papelão, teatro, 1941
Pobre diabo, teatro, 1942
O príncipe encantador, teatro, 1943
O gato comeu, teatro, 1943
À sombra dos laranjais, teatro, 1944
A bandeira das esmeraldas, infanto-juvenil, 1945
Estão cantando as cigarras, teatro, 1945
Venha a nós, teatro, 1946
As belas histórias da História do Brasil, infanto-juvenil, 1948
Dinheiro é dinheiro, teatro, 1949
Curiosidades da história do Brasil, crônica histórica, 1955
O grande amor de Gonçalves Dias, teatro, 1959.
História da liberdade do Brasil, crônica histórica, 1962