José Ferraz de Almeida Júnior (Brasil, 1850-1899)
óleo sobre tela, 64 x 85 cm
Coleção Particular
A minha primeira pescaria no Avanhandava foi feita em companhia de um senhor, advogado em Penápolis, e de seu filho, estudante do terceiro ano da nossa Politécnica, ambos fanáticos pescadores.
Era em maio, e as águas límpidas tinham seu nível muito baixo. Os dourados, à montante do salto, vinham até sua borda, mas evitavam descer, certamente advertidos pelo instinto, da quase impossibilidade de retorno. Na corredeira rasa onde ficavam, eram fisgados com facilidade. Para atingir esse local, tínhamos de entrar pela margem direita e atravessar o canal –mestre quase na boca do salto, com água pela cintura. A passagem era perigosíssima, e disso fui advertido, mas pai e filho estavam acostumados a vencê-la. Venceram com facilidade, passando de uma para outra pedra submersa, colocadas como batentes da porta desse canal. Quando chegou a minha vez, fiquei como o Colosso de Rodes, de pernas tão abertas, que não podia comandar os músculos para prosseguir ou voltar. Deveria, quando dei o passo, aproveitar o impulso para vencer a passagem, em lugar de estender a perna tateando, medroso de me faltar apoio.
Fiquei nessa posição sem rolar no abismo, porque quando tombava, instintivamente procurei amparar-me na vara que levava na mão direita, e esta firmou-se em alguma fenda de pedra, mantendo-me em equilíbrio. Nessa insegura posição, passei momentos angustiosos, sentindo claramente rondar-me a morte. Por fim, numa prece íntima implorando auxílio divino, reuni as forças que se iam esgotando e retrocedi, não sem cair sentado, com água até o pescoço. Desisti da empresa e fiquei a ver de longe as ferradas seguidas dos companheiros que matavam os dourados com golpes das costas do facão, atravessavam-lhes nas guelras uma correia e a prendiam na cinta, prosseguindo a pescaria. Avançavam contra a correnteza, com uma profundidade média de um metro e iam lançando a linhada para a frente. Os dourados abocanhavam a isca, mal esta tocava a superfície, ou logo ao iniciar a descida. Com a pequena profundidade, brigavam pouco. Quando a carga lhes pesava, iam depositar os peixes sobre uma pedra que aflorava à superfície, e continuavam. Quando voltaram, traziam seis dourados de três a seis palmos, e mais não pescaram pela dificuldade do transporte.
Fiz essa pescaria com esses amigos de um dia, cujos nomes, por mais que me esforce não posso recordar, e segui para Corumbá.
Regressei um mês depois com intenção de ficar em Penápolis e fazer, em tão excelente companhia, nova pescaria no lindo salto.
Nem cheguei a ficar, pois quando me dispunha a descer a bagagem, fui abordado pelo pai do rapaz. Estava de luto fechado.
Uma semana depois voltou com o desditoso filho e passou o primeiro passo perigoso, prosseguindo a pescaria. Ao jovem sucedeu o que me havia acontecido, e não podendo firmar-se, rolou no abismo. Um pescador que estava embaixo, na margem do canal, o viu tombar, sumir-se no turbilhão e surgir adiante, desgovernado, debatendo-se desesperadamente, a fronte sangrando de larga ferida.
Era tal a velocidade da descida, que, chicoteando-o com a sua linha, na esperança de fisgá-lo com o anzol, não mais pode alcançá-lo e o corpo sumiu-se entre os cachões de espuma, para só ser encontrado três dias depois, vários quilômetros mais abaixo.
Desta vez depois de inúmeras dificuldades, conseguimos um pirangueiro para a rodada. A triste lembrança acudiu-me à memória, desde que cheguei ao majestoso salto, até que fisguei o primeiro dourado de uns três palmos. Durante os dois quilômetros que descemos, consegui pegar quatro dourados. Dois, mais ou menos do tamanho do primeiro, e o último de seis palmos, que brigou bastante antes de ser embarcado,.
Na volta, aludindo à tragédia, o pirangueiro, um dos que procuraram o corpo, indicou o poço onde fora encontrado já bastante atacado pelos peixes. (*)
Não tive mais vontade de pescar nesse dia, e no seguinte voltei para S. Paulo, sem aproveitar os que me restavam de férias.
(*) Recentemente soube que no mesmo passo perigoso, haviam perecido anos depois, o pai e um tio do infeliz estudante, quando aquele tentava salvar o irmão.
Em: Caçando e pescando por todo o Brasil, 3ª série: no planalto mineiro, no São Francisco, na Bahia, de Francisco de Barros Júnior, São Paulo, Melhoramentos: s/d, pp. 34-36
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Francisco Carvalho de Barros Júnior (Campinas, 14 de dezembro de 1883 — 1969) foi um escritor e naturalista brasileiro que ganhou em 1961 o Prêmio Jabuti de Literatura, na categoria de literatura infanto-juvenil.
Francisco Carvalho de Barros Júnior, patrono da cadeira n° 16 da Academia Jundiaiense de Letras, colaborou em vários jornais e revistas e é o autor da série Caçando e Pescando Por Todo o Brasil, um relato de viagens pelo Brasil na primeira metade do século XX, descrevendo diversos aspectos das regiões visitadas (entre outros botânica, animais e populações caboclas e indígenas).
Obras:
Série Caçando e Pescando Por Todo o Brasil
Primeira série: Brasil-Sul, 1945
Segunda Série: Mato Grosso Goiás, 1947
Terceira Série: Planalto Mineiro – o São Francisco e a Bahia, 1949
Quarta Série: Norte, Nordeste, Marajó, Grandes Lagos, o Madeira, o Mamoré, 1950
Quinta Série: Purus e Acre, 1952
Sexta Série: Araguaia e Tocantins, 1952
Tragédias Caboclas, 1955, contos
Três Garotos em Férias no Rio Tietê, 1951, infanto-juvenil
Três Escoteiros em Férias no Rio Paraná, infanto-juvenil
Três Escoteiros em Férias no Rio Paraguai, infanto-juvenil
Três Escoteiros em Férias no Rio Aquidauana, infanto-juvenil