Saber viajar, texto de Francisco de Barros Júnior

20 05 2020

 

 

AGOSTINHO BATISTA DE FREITAS (1927-1997)Maria Fumaça na Paisagem Campestre, ost,. 1992. 50 x 71 cm.Maria fumaça na paisagem campestre, 1992

Agostinho Batista de Freitas (Brasil, 1927-1997)

acrílica sobre tela, 50 x 71 cm

 

 

“É frequente ouvirmos alguém afirmar que só viaja à noite, por ser “muito pau” aguentar dez ou doze horas a olhar pelas janelas, sentados em bancos incômodos, sem ver nada de importância, a não serem pastos, matos e morros longínquos. É que esses cavalheiros são daqueles de quem falam as escrituras: “oculos habent sed non vident“. E deles tenho pena.

Para quem sabe ver, não há paisagens monótonas. Numa campina verdejante onde pasta o gado, nos rápidos segundos que durou a visão, se soubermos ver, notaremos se os bois estão gordos, qual a raça predominante, divertimo-nos com o bezerrinho assustado pelo treme instintivamente o nosso pensamento vai para a fazenda em que passamos a infância, ou visita à estância de amigos, e à nossa memória acodem episódios relacionados com o que acabamos de ver. A paisagem é desoladora, só pedras e mato ressequido, mas tem, no alto de um barranco ou encosta empedrada cortada a prumo, um coqueiro esguio, ou elegante ipê coroado de ouro e pensamos na linda fotografia que poderíamos tomar…

Até o repugnante quadro  de uma rês morta e centenas de urubus, a se banquetearem uns, outros infartados, empoleirados nas árvores, é tema para uma série de divagações. De que teria morrido? Cobra? Erva? E figuramos o vaqueiro que, tendo visto de longe os tétricos necrófagos adejando em círculo, esporeia o cavalo para verificar, pesaroso, a perda, e depois or ao patrão dar a triste notícia nesse tom de mágoa, que conhecemos quando um vaqueiro fala da perda de uma cabeça de gado.

E enquanto a nossa fantasia trabalha, os quilômetros são vencidos e os minutos se passam sem que tenhamos tempo para nos aborrecer.  Até na monotonia das travessias marítimas temos como nos distrair e ilustrar, vendo surgir as nuvens de peixes voadores, os numerosos  golfinhos que afloram à superfície como se nadassem rolando sobre si mesmos, as gaivotas que adejam à volta do navio, ou o inesperado jato d’água de alguma baleia longínqua. E essas cenas nos ficam na memória, servindo mais tarde para tornar mais agradável a nossa conversação.

Estas considerações vieram-me de começo, quando ia dizer-lhes que a nossa viagem S. Francisco abaixo ia decorrendo sem que sentíssemos passarem os dias.”

 

Em:  Caçando e pescando por todo o Brasil, 3ª série: no planalto mineiro, no São Francisco, na Bahia, de Francisco de Barros Júnior, São Paulo, Melhoramentos: s/d, pp. 139-140.

 

Francisco Carvalho de Barros Júnior (Campinas, 14 de dezembro de 1883 — 1969) foi um escritor e naturalista brasileiro que ganhou em 1961 o Prêmio Jabuti de Literatura, na categoria de literatura infanto-juvenil.

Francisco Carvalho de Barros Júnior, patrono da cadeira n° 16 da Academia Jundiaiense de Letras, colaborou em vários jornais e revistas e é o autor da série Caçando e Pescando Por Todo o Brasil, um relato de viagens pelo Brasil na primeira metade do século XX, descrevendo diversos aspectos das regiões visitadas (entre outros botânica, animais e populações caboclas e indígenas).

Obras:

Série Caçando e Pescando Por Todo o Brasil

Primeira série: Brasil-Sul, 1945

Segunda Série: Mato Grosso Goiás, 1947

Terceira Série: Planalto Mineiro – o São Francisco e a Bahia, 1949

Quarta Série: Norte,  Nordeste,  Marajó, Grandes Lagos, o Madeira, o Mamoré, 1950

Quinta Série: Purus e Acre, 1952

Sexta Série: Araguaia e Tocantins, 1952

Tragédias Caboclas, 1955, contos

Três Garotos em Férias no Rio Tietê, 1951, infanto-juvenil

Três Escoteiros em Férias no Rio Paraná, infanto-juvenil

Três Escoteiros em Férias no Rio Paraguai, infanto-juvenil

Três Escoteiros em Férias no Rio Aquidauana, infanto-juvenil





Reflexões de viagem, texto de Bernhard Schlink

9 12 2018

 

 

Charles HoffbauerNova York, primeira metade do século XX

Charles Hoffbauer (EUA, 1875-1957)

óleo sobre madeira

 

 

“Sempre que estou em outro país me pergunto se seria mais feliz nele. Quando percorro as ruas e vejo numa esquina um grupo de pessoas conversando e rindo, penso que,  se eu vivesse ali, agora também estaria feliz num grupo em uma dessas esquinas. Quando passo por um café com mesas ao ar livre e um homem se aproxima de uma mesa onde há uma mulher sentada e os dois se cumprimentam alegremente, penso que ali eu também, um dia, encontraria uma mulher que se alegraria ao me ver, e que eu me alegraria em vê-la. E quando à noite se acendem as luzes nas janelas!  Cada janela promete ao mesmo tempo liberdade e aconchego, libertação da vida antiga e aconchego numa nova.”

 

 

Em: A mulher na escada, Bernhard Schlink, tradução de Lya Luft, Rio de Janeiro, Record: 2018, p. 65.





Viajar, texto de Agatha Christie

11 08 2018

 

 

57c3db05b5c6338468f318c3d2b144f0Cartaz de viagens à América Central, década de 1920.

 

 

” A vida, na verdade,  assemelha-se a um navio — isto é, ao interior de um navio, com seus compartimentos estanques. Emergimos de um deles, selamos e trancamos as portas, e nos encontramos dentro de outro. Minha vida, desde que deixamos Southampton até o dia em que regressamos à Inglaterra, foi um desses compartimentos. Desde então sinto  sempre a mesma coisa em relação a viagens. Passamos de uma maneira de viver a outra. Decerto, continuamos os mesmos mas somos ao mesmo tempo diferentes. A nova personalidade desembaraçou-se das centenas de teias de aranha e fios que nos envolvem como um casulo na vida do dia a dia doméstico: cartas a escrever, contas a pagar, tarefas a cumprir, amigos que queremos visitar, fotografias para revelar, roupas para cerzir, nurses, e empregadas a aplacar, vendedores e lavanderias a censurar! A vida em viagem é da essência do sonho. É algo fora do normal e, no entanto, faz parte da nossa vida. Está povoada de pessoas que jamais havíamos visto e que, segundo todas as probabilidades, jamais veremos de novo. Pode acontecer, eventualmente, em viagem, algo aborrecido, tal como o enjoo e a solidão, a saudade de alguém a quem amamos muito, (…).  Mas nos sentimos como os vikings ou os mestres marinheiros da era elisabetana, que entraram num mundo de aventura,  e o lar só é lar quando regressamos.”

 

Em: Autobiografia, Agatha Christie, tradução de Maria Helena Trigueiros,  Rio de Janeiro, Nova Fronteira: 1979, p. 321.





Minutos de sabedoria: Miguel Torga

5 10 2016

 

 

lost-pocketbook-night-train-sally-storchBolsa perdida, trem noturno, 2005

Sally Storch (EUA, 1952)

óleo sobre tela, 75 x 75 cm

 

 

“Viajar, num sentido profundo, é morrer. É deixar de ser manjerico à janela do seu quarto e desfazer-se em espanto, em desilusão, em saudade, em cansaço, em movimento, pelo mundo além.”

 

Miguel Torga

 

torga-miguelMiguel Torga (1907-1995)

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Ormuz, o início da viagem de Marco Polo

23 08 2014

 

 

 

Marco Polo at the gates of Hormuz City(maybe) Livres des Merveilles, Snark, Bibliotheque NationaleMarco Polo às portas da Cidade de Ormuz [há dúvidas sobre essa identificação].Livres des Merveilles, Snark, Bibliothèque Nationale, Paris

 

Há dois anos leio de vez em quando uma passagem do livro Marco Polo: de Veneza a Xanadu, Laurence Bergreen.  Isso depois de já ter lido o livro inteiro.  Na primeira leitura fui marcando as cidades pelas quais passava Marco Polo. [Quem lá na companhia americana 3M inventou as Post-it notes ™, na minha opinião tem entrada garantida no céu…  Que delícia poder marcar um livro todo sem desfigurá-lo!] Bem, fui marcando cada passo da viagem de Marco Polo, para procurar na internet o que se sabe desses locais e se existem construções da época [século XIII].  Sei que isso pode parecer coisa de quem não tem o que fazer, e provavelmente é.  Mas para quem gosta de história isso é uma fonte incrível de entretenimento, muito mais atraente do que grande parte dos programas de televisão, do que muito romance na lista dos mais vendidos.  Com um pouquinho de informação, com o Google Maps, e fotos, com acesso a bibliotecas inteiras na rede, a imaginação se solta e com tempo e tenacidade preencho muitos dos espaços que desapareceram apagados pelas pegadas de invasões, guerras, pestes, e todo tipo de calamidade que já nos atingiu e continuará atingindo. Há muito pouca informação segura ainda sobre esses locais, principalmente em regiões como a Pérsia (maior parte do Irã hoje) que se encontra em grande turbulência faz muito tempo.  Sítios arqueológicos nem sempre permaneceram abertos através dos diversos confrontos bélicos e corremos o risco de perder muito do que ainda poderia ser resgatado. Mesmo assim essa viagem eletrônica pelo mundo de Marco Polo tem sido fascinante.

 

640px-Braun_Hormus_UBHDOrmus” (Braun e Hogenberg. “Civitates Orbis Terrarum“, 1572)

 

Ormuz é um dos locais — visitado por Marco Polo no início de sua viagem — que encontra numerosas referências na rede.  Tem mais: muitas dessas referências são em português.  Isso porque os portugueses estiveram por lá em 1507, dominaram a cidade, e tentaram construir o Forte de Nossa Senhora da Vitória, mas foram surpreendidos pela deserção de três capitães.  Os portugueses tentavam colocar o cabresto no comércio internacional que obrigatoriamente passava por essa ilha na entrada do Golfo Pérsico. Mas  inicialmente não foram bem sucedidos.  Só em 1515, Afonso de Albuquerque, já governador da Índia, estabeleceu a suserania de Ormuz submetida ao governo da Índia.  A Ormuz que atraía os portugueses não era mais aquela visitada por Marco Polo, pois os portugueses estiveram por lá trezentos anos depois da viagem do mercador italiano, mas desde o período medieval que o local era de grande importância para o comércio de produtos exóticos vindos do Oriente.

[À parte: toda vez que leio sobre as explorações portuguesas na Era dos Descobrimentos sinto profunda admiração pelos homens que se atreveram a explorar o desconhecido. Na Era  dos Descobrimentos, a população de toda a Europa é estimada em 60 milhões e a população total de Portugal entre 1400 e 1500 é estimada em um milhão de pessoas.  Um país tão pequenino, com uma população ínfima [1/60 de toda a Europa] que se jogava em frágeis embarcações, sair pelo mundo, conquistando, brigando, construindo, lutando, guerreando, tendo o atrevimento de desbancar governos locais, já estabelecidos, tem algo de mágico, do mitológico, do conhecido enredo do arquétipo do “pequeno contra o gigante”, que me comove.  Os obstáculos eram enormes, as dificuldades aterrorizantes, as doenças intermitentes, o desconhecido era abismal e assim mesmo, espada em punho, foram aos muitos cantos do mundo. É muito impressionante.] Para ter uma ideia dos perigos enfrentados em Ormuz, pelo viajante no século XIII,  fica aqui abaixo uma citação do livro de Laurence Bergreen, com citações diretas da descrição original de Marco Polo.

 

MARCO_POLO_DE_VENEZA_A_XANADU_1250679902P

 

Para o grupo de viajantes, a visão de tanta água após passarem meses no deserto os fez recordar Veneza e o Mar Adriático, porém, observando-a melhor, Ormuz não era exatamente a joia que tinham  avistado de longe. Em primeiro lugar, “se um mercador aqui morre, o rei confisca todos os seus bens”.  O clima também trazia riscos aos viajantes desprevenidos. O vento do deserto circundante podia ser “tão sufocantemente quente que seria mortal se, tão logo percebessem sua chegada, os homens não mergulhassem na água até o pescoço para escapar do calor”.

Enquanto estiveram em Ormuz, Marco ficou horrorizado ao saber que o vento mortal apanhara de surpresa  pelo menos 6 mil soldados (5 mil a pé, o restante a cavalo) no deserto e sufocara “todos eles, de sorte que ninguém sobreviveu para levar a notícia ao senhor”. Com o tempo, os “homens de Ormuz”, souberam da morte em massa e decidiram enterrar os corpos para evitar infecções, mas “quando os suspenderam pelos braços para levá-los às covas, eles [os cadáveres] estavam tão ressecados pelo calor que os braços caíram do tronco, de forma que eles [os homens] tiveram que fazer as covas ao lado dos cadáveres e empurrá-los.”

 

Em: Marco Polo: de Veneza a Xanadu, Laurence Bergreen, tradução Cristina Cavalcanti, Rio de Janeiro, Objetiva: 2009, pp 68-69.

 





Viagem de trem, texto de Geraldo Brandão em “Café Amargo”

4 09 2013

ARMÍNIO PASCUAL (1920) Trem, óleo sobre madeira industrializada - 49 x 64.Trem, s/d

Armínio Pascual (Brasil, 1920-2006)

óleo sobre madeira, 49 x 64 cm

“Como lagarta sonolenta o trem vinha de Mato Grosso. Corumbá , Campo Grande, Três Lagoas.  O sol estava a pino. O trem em linha sinuosa como uma serpente. Não tinha pressa de chegar. O sol entrava ora de um lado, ora de outro, queimando, torrando. Que linha… A gente pensava que ia parar numa cidade e o trem se afastava, depois vinha novamente. E o sol torrando aquela gente. Não podiam fechar as janelas por causa do calor, abafado. “É antigamente os engenheiros ganhavam por quilômetro construído, quanto mais comprida a linha, mais ganhavam, então faziam a linha cheia de curvas…” Alguém falou. Os vagões atulhados de gente sonolenta que tentava dormir, que esticava as pernas, tirava os sapatos, virava a cabeça. Gente branca, gente amarela, gente preta. Profusão de malas, trouxas e pés. Cheiro de suor, chulé, budum, morrinha. Miséria.

Uma família de gente loira. Quanta criança! Deve ter vindo do Báltico tentar a sorte na América, mas, está voltando pobre. Filhos, trouxas e ossos marcando sob a pele. A cada tranco do vagão um olho se abre e volta a fechar-se vencido. A perna estica, a cabeça se ajeita na trouxa imunda. A criança do colo geme. Sonolenta, a mãe abre o corpete, dá-lhe o seio murcho e volta ao sono, incapaz… Nos solavancos, de sono ou fraqueza o menino solta o bico que a mãe lhe pusera na boca. O seio enorme, pendurado, balança, balança no ritmo inconsciente do vagão. Passa o chefe-do-trem apregoando as estações. Passam jovens soldados que vão buscar água no vagão de primeira. O seio está balançando, balançando…mas ninguém olha para ele com olhar profano.

E o trem prossegue nas curvas que não acabam mais com apitos que não têm sentido. O sol queimando, queimando, só curvas e cafezais, roças e mais roças.

Uma moça dorme com os pés no banco da frente. O cabelo em desalinho é como uma cortina a defender a beleza mal formada. A mala de papelão, toda esfolada, amarrada com corda para não estourar. Por que deixou sua terra natal? Seria da Bolívia ou do Paraguai? Fugiria da miséria ou da maldade da gente que não lhe perdoou ter amado um dia? Talvez procurasse a cidade, onde a vida é mais fácil, mais fácil esconder e esquecer…

Outro é mascateador. É o único que fala, que fala do seu bairro distante. É de Vila Maria, e com orgulho repete o nome. Tem malas e pacotes além do número permitido. Espalha-as pelo vagão. O chefe passa, percebe a fraude e finge não entender. Deixa o mascate mascatear…”

Em: Café amargo, Geraldo Brandão, São Paulo, Brasiliense: 1968, pp,225-6





O mundo em 11 x 16 cm — cartões postais para onde foram?

15 08 2011

Modelo escrevendo cartões postais, 1906

Carl Larsson ( Suécia, 1853-1919)

Meu avô materno me apresentou ao passatempo de colecionar cartões postais e com isso plantou as sementes da viajante em mim, um grande desejo de conhecer o mundo.  Ele descobriu outros países a trabalho, mas sempre achou uns minutos para mandar cartões postais variados, com pequenas notas de viagem para cada membro da família: três filhas, esposa, netos, genros e amigos.   Vem desse tempo a minha fascinação por postais.  Talvez tenha sido nessa época o início do meu gosto pelas artes gráficas.  Não sei.  Mas cartões postais fizeram parte de toda a minha infância e adolescência: do Oiapoque ao Chuí, do Senegal à Suíça, o mundo se descortinava para mim, com cada visita do carteiro.  O formato era o mesmo, um envelope comum de 11 x 16 cm, mas o conteúdo, ah… como variava!   Havia os cartões com fotografias de locais pitorescos, dos principais monumentos do mundo; havia os postais com bonequinhas com roupas de diferentes regiões dos países europeus, bordadas no cartão e alguns postais com curiosidades esdrúxulas: da feira de produtos agrícolas da Sérvia, aos tocadores de cornetas na Suíça, com seus instrumentos tão longos que pousavam na terra, em gramados impecáveis por entre as montanhas alpinas.  Havia também os postais que eram fotos de vovô: à beira do Lago …, nos Jardins de Luxemburgo…  Cartões que hoje imagino terem sido tirados em lambe-lambes locais ou seus equivalentes no estrangeiro.  Os postais do Brasil eram sempre em preto e branco, alguns mais avermelhados,  com o nome dos locais escritos em branco sobre as fotos.   Alguns postais eram quase desenhados, fotos trabalhadas com tinta e coloridos posteriormente…  Além, dos cartões postais com desenhos interessantes:  na Páscoa pintinhos e ovos ou no meu aniversário, uma cestinha com gatinhos falando em francês: Joyeux anniversaire!

Recentemente tive a idéia de voltar a alguns dos lugares brasileiros cujos postais guardei por tanto tempo.  A maioria está irreconhecível!  Aí sim, vemos o crescimento populacional, as mudanças na paisagem.  Estive em Teresópolis, no estado do Rio de Janeiro, com um cartão nas mãos, para ver à distância o Dedo de Deus.  No meu cartão eu deveria estar num campo cheio de cavalos pastando…  Hoje, daquele mesmo ângulo eu estaria no meio de alguns edifícios de muitos andares.   Tudo mudou.

Postais da minha estadia na Argélia.

Ontem, passando os olhos nos blogs do The New York Times, encontrei o interessante artigo de Charles Simic, titulado A decadente arte de escrever postais [The Lost Art of Postcard Writing], que me trouxe uma enxurrada de memórias, não só de cartões recebidos como de cartões mandados, das centenas de postais que encaixotei soltos, amarrados em grupos com cordões plásticos, com elásticos, em caixas de sapatos, em álbuns, pulando de residência em residência, de guarda-móveis a guarda-móveis, resultado de uma vida de inúmeras viagens e de longas moradias em quatro diferentes continentes.  Charles Simic está correto: estamos perdendo o hábito de mandar postais, e certamente de escrevê-los.  Mas ainda há muita gente adepta… Vejam a quantidade de postais à venda nos jornaleiros dos pontos próximos a lugares turísticos ou a hotéis no Rio de Janeiro.

O postal para mim foi sempre uma maneira de fazer uma pausa no quarto de hotel, no café da manhã, no bar de praça européia.  Um momento de reflexão sobre onde eu estava e o que havia visto.  Nunca fui de escrever:  Saudades.  Gostaria que você estivesse aqui…   O envio do postal, já indica  que estou pensando em quem o recebe.  E saudades também são assim expressadas.   Esse sentimento tão pessoal, delicado e fluido, quase melancólico não pertence, a meu ver, a uma mensagem que se encontra descoberta, exposta a qualquer um, nua, avidamente devorada pelos olhos de quem quer que manipule o cartão.  É pessoal demais…  Meus recados em postais são sempre baseados naquilo que eu diria para a pessoa a quem endereço as mensagens caso estivesse contando a minha viagem.  Sempre fui prolífica, principalmente com o pessoal da família.  Já até tive que colocar postais em envelopes, porque houve lugares – todos em países comunistas — em que os Correios achavam que tinha escrito demais no cartão, que já contava como carta…   Prolífica, todos que lêem esse blog já sabem que sou …

Cartão postal de Ghardaia [Pentápolis] — A praça do mercado

Querida mamãe: É assim mesmo!  O mercado na praça de Ghardaia.  Não tem o que tirar nem por. Você não pode imaginar o labirinto de ruas de +- 1,50m a 2m de largura pelo centro da cidade à medida que se sobe o morro para se chegar à mesquita no topo.  Só se vê homens – o meio de transporte é o burrico.  As mulheres que se vê têm véu e só deixam um olho aparecer.  Elas se viram de encontro à parede quando um homem passa.  Beijoca, L…

Cartão postal de Beni-Isguen [Pentápolis], cemitério do Palmeiral.

Querida mamãe: Este tipo de arquitetura dos oásis de Ghardaia, foi o que inspirou a arquitetura de Le Corbusier quando ele fez a Capela Ronchamp.  Outros arquitetos famosos como Frank Lloyd Wright também foram muito influenciados pela arquitetura dos Mozabites.  Beijocas, L…

Mostro o que escrevi, mas não me considero uma excelente “escritora” de postais. Isso porque tenho amigos que parecem mais sucintos, mais interessantes nas suas observações.  Recebi uma vez um cartão postal de um amigo que visitava Petrópolis, com a foto da casa de Santos Dumont, uma única frase:  Ele já morava nas alturas… para a volta à Torre Eifel foi um passo… Taí… Diferente… a continuação de uma conversa jogada no ar… Maravilha!

Charles Simic em sua postagem menciona algumas outras observações em postais feitas por amigos e lembra que não conhece nenhuma coletânea de escritos de cartões postais como as que existem de cartas, mas que se houvesse,  está certo de que a coletânea seria bastante interessante.    Pessoas que por uma frase, ou por uma observação revelam-se aos amigos de forma mais que imprevisível. Há muitos exemplos e Simic nos dá um bem humorado:

Queridos Mamãe e Papai, perdemos nosso último centavo e chegamos ao limite dos cartões de crédito em Las Vegas e estamos pegando carona desde então, às vezes passando a noite na cadeia de modo que pudemos tirar vantagem das cozinhas locais providenciadas pelas polícias do Texas.  Vocês vão gostar de saber que um padre levado à cadeia por dirigir bêbado e com quem dividimos uma cela recentemente nos disse que parecemos um casal de antigos mártires cristãos.  Os noivos.  

[Dear Mom and Dad, We lost our last penny and maxed our credit cards in Las Vegas and have been hitchhiking ever since, spending a night in jail at times so we could avail ourselves of whatever local cuisine the law enforcement provides in Texas. A priest arrested for drunken driving who shared our cell recently told us that we look like a couple of early Christian martyrs, you’ll be happy to hear.  The Newlyweds]

A comunicação entre amigos e familiares mudou muito.  O telefonema internacional está do tamanho do bolso de quem viaja e as fotos digitais nos fazem participar das viagens de nossos amigos quase em tempo real.  Neste verão tive uma inundação de emails com fotografias das diversas aventuras internacionais de amigos e conhecidos e confesso que, como Charles Simic, senti saudades da comunicação por cartão postal.  Os avanços tecnológicos são facas de dois gumes: ao mesmo tempo que participamos gratuitamente do desenrolar de uma aventura, de uma viagem especial de nossos amigos e familiares, também temos nossas caixas postais entupidas por emails com fotografia mal tiradas, muitas vezes de celulares, onde vemos Fulano com a Torre Eifel ao fundo, Beltrano na muralha da China, e até o café da manhã de Sicrano na Polônia…   Será que precisamos mesmo dessa intimidade toda?

Se não recebemos as fotos por email, temos a coleção das mesmas estampadas nas nossas páginas no Facebook, como se todos os momentos das vidas de quem conhecemos fossem de interesse absoluto e essencial para todos os que dali participam.  Voltamos de uma maneira tortuosa ao passado, às noites em que nos reuníamos na companhia de parentes para ver uma infinita coleção de slides documentando as “férias fabulosas” de nossos conhecidos, dos nossos familiares, que apareciam em frente aos pontos turísticos mais conhecidos do mundo.  Um exercício de paciência e de sono contido.  Uma verdadeira maratona que testava a amizade e o amor ao próximo.   Pelo menos hoje em dia, podemos colocar uma ou duas observações em fotos no site de relacionamento e dar por encerrada a atividade voyeurística.

Praça Paris, cartão postal,  coleção Flicker, favaro JR.

A vantagem do cartão postal está na seleção da foto, que é sempre de qualidade.  E na breve mensagem escrita à mão, que revela a quem o recebe as características de quem o enviou.  Há também uma dupla filtragem, coisa maravilhosa, de forma e conteúdo: as escolhas da imagem do cartão e do texto.  A atividade requerida em escrever um texto que irá viajar pelo mundo, já pede que pensemos no que dizer e como dizer; enquanto que a escolha do que mostrar, da foto, da imagem que mandamos, também nos dá a oportunidade de dividir com uma pessoa específica um ponto de vista, um enfoque, uma ironia, uma piada, um carinho.  A facilidade da foto digital, mandada por email ou através de sites de relacionamento permite que não se selecione, nos permite a auto-indulgência, a promiscuidade visual.  Não há triagem, não há exigência.

Além disso, o cartão postal oferece não só uma visão do lugar que se visita, mas também, e não menos importante, uma visão do que o povo daquele lugar que se visita considera importante para que os turistas se lembrem daquele local.  Há uma troca. Quando morei na Argélia, por exemplo, tive grande dificuldade de encontrar cartões postais que refletissem o que via à minha volta.  Muitos dos postais eram reimpressões de outra época no país, quando ainda fazia parte da França.  À minha volta as coisas eram diferentes e essa discrepância me incomodava.  E, como havia muitos lugares onde não era permitido se fotografar – o governo não dava muita liberdade nem a turistas nem a residentes temporários como nós – ficava difícil poder repartir as minhas experiências com familiares e amigos.

Cartão postal, Praia de Copacabana, Rio de Janeiro, coleção Flicker: rio antigamente

A recente exposição Turismo no Rio de Janeiro, no Espaço Cultural Fundação Getúlio Vargas, mostrou como o cartão postal serve de testemunha da história de um local.  Muitas vezes  fotos de fotógrafos amadores se perdem.  Fotos dos meios de comunicação concentram-se mais no dia a dia local.  São justamente os cartões postais as imagens que nos dão uma idéia mais sistemática do crescimento de uma comunidade, de seus valores e de seus encantos.  E porque são produzidos aos milhares, têm uma melhor chance de serem preservados.

Da próxima vez que você viajar, mande um postal aos seus amigos e ajude a preservar a história daquele lugar, além é claro, de preservar a amizade e o carinho que você tem pelo seu correspondente.

©Ladyce West, Rio de Janeiro: 2011





O trenzinho da infância leva a Maceió, poesia de Oliveiros Litrento

19 01 2011

Fumareira na estação da Ribeira, em Itapemirim, ES, s/d

Mauro Ferreira ( Brasil, 1958)

óleo sobre tela

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O trenzinho da infância leva a Maceió

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Oliveiros Litrento

Teu namorado pela vida afora,

vou viajando agora pelas matas,

com usinas de cana bordejante

o caminho que vai para Alagoas.

No trenzinho da infância vou chegando

às vilas alagoanas encantadas.

E São José da Lage vai ficando

longe. Logo trem pára em União,

a terra onde nasceu Jorge de Lima.

Satuba, Rio Largo, Fernão Velho:

cidades embalando Bebedouro,

bairro dos pastoris, do Bonifácio

da antiga Maceió, formosa e lírica.

No trenzinho da infância vai passando

o bairro proletário  da Levada

com sururus e cheiro de canoas.

O trem vomita a praia do Sobral

na viagem agora terminando.

Quero rever São Luis, Camaragibe

e conhecer a cidade de Penedo.

Mas fico na Manguaba e o Mundaú.

A meninice, alada como um pássaro,

lâmpada azul de sonho e litoral,

ondula em águas verdes das lagoas

o chão da infância, o meu país natal.

Em:  O Leopardo Azul, Oliveiros Litrento, Rio de Janeiro, Livraria São José: 1965

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Oliveiros Litrento nasceu em S. Luis de Quitunde, Alagoas, em 1923.





Cartas de viagem: Espanha V

30 09 2009

girassolCampos de girassóis dominam a paisagem rural da Alta Andaluzia, de Jaen a La Carlota.

 

 

25 de outubro

 

Meus queridos,

Deixamos Córdoba em direção a Portugal, ontem à tarde.  No caminho me lembrei que tinha duas cartas e quinze cartões postais para colocar nos Correios.  Já estávamos a caminho. De modo que decidimos parar na primeira cidade que encontrássemos.  Paramos afinal num lugar chamado La Carlota.  Lá, tive uma experiência muito interessante.

La Carlota é cortada em duas pela estrada em que viajávamos.  Depois de ter ido ao lado errado da cidade, finalmente me disseram que eu tinha que atravessar a estrada para lá  achar os Correios, dentro da prefeitura.  Na prefeitura eu os achei do outro lado de um enorme jardim interno cheio de laranjeiras, escondido por filas e filas de pessoas umas indo para a enfermaria da cidadezinha (parecia fila de atendimento médico brasileiro); outras indo para uma caixa receber pensões: uma longa fila de senhoras idosas vestidas de preto.  Havia outras filas, mas com franqueza não me lembro para que, só que o reboliço era enorme, crianças chorando, balbúrdia geral.  Nos Correios eu me deparei com um senhor bem redondinho, que olhou muito intrigado para a minha pilha de cartões, olhou bem para os endereços, coçou a cabeça e apanhou um livro grande, que mais parecia um dicionário do século XIX e pôs-se a procurar por alguma coisa.  Alguns momentos depois ele me disse que não tinha ali os selos necessários para as tarifas das cartas para o Brasil, nem dos cartões postais.  Mas que ele achava que a tabacaria do outro lado da praça talvez tivesse.

 

campiña, la carlota

Região de La Carlota, Espanha. 

 

Esse homenzinho, então, calmamente tirou o avental que trazia por sobre a roupa normal, saiu detrás do balcão,  fez um aceno com a mão para que eu saísse da sala também, colocou um cartaz na porta, “Correios Fechados” e me levou, quase pela mão, até o outro lado da praça à tabacaria em questão.   Na loja eu tive que comprar setenta selos e precisei colá-los lá mesmo.  Cada carta levou cinco selos, cada postal quatro.  Os donos da loja se colocaram à minha disposição imediatamente e nós três começamos a lamber os selos ( que já vêm com cola) e colá-los, tudo na mais perfeita comunhão de interesses.  Conversamos um pouco com o meu brasinhol e depois de dizerem que era bom mesmo que eu estivesse escrevendo para minha mãe “porque mãe é a coisa mais preciosas que temos no mundo”, eles se candidataram a me levar de volta aos Correios onde eu teria que depositar a correspondência numa caixa amarela.   Eu garanti que sabia voltar, e eles relutantemente me deixaram ir.

Quando estou para colocar as cartas na caixa amarelíssima, bem na entrada dos Correios, de lá, sai depressa num passo de jato o homenzinho redondinho, tomou os postais e as cartas de minhas mãos, segurou-os com firmeza e cuidado e me garantiu de uma maneira bem importante que iria “tomar conta dessa correspondência pessoalmente”.

Sabem agora por que eu adoro a Espanha?

 

Saudades e beijinhos, a próxima carta já será de Portugal.  Já quase dá para ver a fronteira! H. se anima, adora Portugal e sente saudades da comida portuguesa!   L.





Cartas de viagem: Espanha IV

19 09 2009

 

cordoba juderia

Córdoba, Espanha.

 

Córdoba, outubro de 19…

 

 Meus queridos: 

Córdoba e Granada são duas jóias espanholas.  Decidimos não rever Sevilha desta vez, porque estaremos de volta a Sevilha, tudo permitindo, durante a Semana Santa.

Desta vez visitamos ambas as cidades com uma calma invejável.  Revisitar é também redescobrir.   Nenhuma delas nos deixou desapontados.  Eu estava com medo de que Córdoba não fosse, nesta segunda visita, tão interessante quanto a achei da primeira vez.  Mas a minha memória não me falhou, e ainda a acho um dos lugares mais interessantes que conheço.  Tenho uma afeição inexplicável por ela.

Não faz sentido tentar descrever para  vocês a grandiosidade da arquitetura islâmica na Espanha.  Seria impossível.  O Alhambra é mesmo um castelo das Mil e Uma Noites e os jardins Generalife fazem a maioria dos outros jardins e parques, orgulhos nacionais de outros países, parecerem projetos primitivos.  A mesquita de Córdoba também cai nessa mesma categoria.  São todas obras de príncipes visionários que tinham muito dinheiro, sábios matemáticos nas suas cortes e mão de obra abundante (em grande parte escrava) para construírem para seu desfruto pessoal as maravilhas arquitetônicas que nos restam.  Acho que vocês não devem saber – porque eu também só aprendi agora – que os escravos utilizados pelos califas no sul da Espanha, não eram africanos, como pode vir a nossa mente hoje em dia, mas eram, em sua grande maioria, portugueses e espanhóis, cristãos capturados durante as invasões na península ibérica pelos muçulmanos e feitos escravos nessa época medieval.   

 

cordoba, patio

Pátio em Córdoba.

 

Gosto especialmente de Córdoba, por causa de sua atmosfera e também por causa de sua Juderia – bairro judeu da idade média.   A maioria das cidades da Andaluzia e também do resto da península ibérica que estiveram sob controle islâmico tem áreas das cidades de residência para os judeus.  São em geral enclaves interessantíssimos dentro do perímetro urbano, que começaram a ser evacuados pelos judeus quando a Inquisição bateu firme e forte: 1488 na Espanha e 1496 em Portugal. Esses bairros atingiram o seu apogeu durante a dominação islâmica porque os mouros eram mais tolerantes do “povo da Bíblia”, que seus inimigos cristãos.  

A Juderia de Córdoba é um grupo de talvez 30 a 40 ruas bem estreitas (da largura de um carro) e becos.  Tem casas de dois ou três andares dos dois lados, que são todas brancas.  Tão brancas que poderiam ser usadas nos anúncios de “que sabão lava mais branco?”  Em geral, ela tem uma porta bem larga, no centro do prédio, que anteriormente talvez pudesse ser usada por uma carreta de mão.  Este portão leva a um saguão coberto de azulejos decorados com motivos mouriscos.  Esse saguãozinho deixa-nos perceber através de portões de ferro batido os jardins internos das casas.  Esses jardins são tão famosos que os atuais donos dessas casas deixam suas portas abertas para que passantes, como nós, possam ver e desfrutar de seu charme, olhando lá dentro.

 

juderia de cordoba, patio de la juderia

Pátio da Juderia, Córdoba.

 

Do lado de fora, essas casas são cobertas de vasos e potes de cerâmica, carregadinhos de plantas, de trepadeiras e choronas, e parecem estar colocadas nas paredes sem nenhuma ordem visível.  Não há grandes áreas de paredes pintadas de branco sem que alguém não coloque ali pelo menos uns vinte potes de plantas, pendurados nas paredes e também há  potes dependurados em arames que vão de lado a lado das ruas, dando a elas, dessa maneira, um teto de verduras, que sombreia o caminho.

Os nomes das ruas são também maravilhosos:  Rua das Flores, Rua da Lua, Esquina do Ouro, Rua dos Judeus, Praça do Burro.  Esses becos e ruas, de vez em quando, se abrem em pracinhas minúsculas, que podem  ter pequeninos monumentos, como encontramos um ao filósofo e astrônomo árabe  Averroes  e outro ao judeu andaluz, Maimonedes, rabino, médico e filósofo.  As ruas mais largas ( um carro e meio de largura) têm laranjeiras dando sombra às diminutas calçadas.  Nesta época do ano essas árvores estão carregadas de frutos.  E que aroma!

Bares e restaurantes freqüentemente usam esses jardins internos  como suas salas de almoço.  Sentados à mesa a gente pode apreciar todos os potes de plantas que populam as paredes internas dessas casas.  De vez em quando, ouve-se alguém cantarolar uma típica melodia andaluza.  

Na Juderia há uma pequena sinagoga do século XIV, uma das pouquíssimas ainda em pé na Espanha ( a outra famosa sinagoga é a de Toledo).  Essa construção também tem à moda das casas e da mesquita, um jardim interno e por incrível que pareça foi construída num estilo bem islâmico de arquitetura semelhante ao encontrado nas mesquitas da época.  A arquitetura cristã em Córdoba deixa muito a desejar.  Preservados também estão os banhos árabes, hoje parte de uma loja de artigos turísticos, que tem quatro de seus cômodos dos fundos tombados, por serem os antigos banhos das cidade.  E há também na Juderia o Museu do Touro – o melhor que conheço na Espanha.   Assim como a Inquisição e a Guerra Civil Espanhola nesse século, a fascinação do espanhol com o touro está na lista daqueles assuntos que qualquer pessoa que queira entender a Espanha, tem que um dia destrinchar.

 

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Plaza de las Tendillas, Córdoba.

 

Mas Córdoba também é o desfile de seus habitantes nas ruas.  Gentes de todas as idades passeiam da Plaza de las Tendillas.  Observar as pessoas, por volta das cinco da tarde, de um dos muitos cafés nessa praça, é o grande passatempo tanto de espanhóis quanto dos turistas que visitam o local. Regado a chocolate quente com churros todos observam e são observados.   Todas as cidades espanholas têm esse fenômeno do andar/desfilar.  Todas as cidades espanholas são, conseqüentemente, dos melhores lugares para se observar pessoas, o comportamento humano.  Cada cidade tem sua personalidade; a mais barroca dessas atividades é a que se desenrola em Barcelona, sem dúvida.  Mas Córdoba é pequena o suficiente para que, depois só de alguns dias, sentada no mesmo café, a gente possa começar a conhecer os transeuntes.  Reconhece-se a senhora que vem passear acompanhada de sua filha, ou a adolescente que fez de tudo, no dia anterior, para ganhar a atenção de um rapaz, que hoje já não está com a camisa vermelha que lhe caía tão bem.  Em Córdoba é mais fácil a gente se sentir como parte da cidade; perde-se logo a noção de estarmos olhando para o cenário de uma peça teatral, como a gente se sente no início. Ao invés, a gente passa a se sentir como um extra numa cena de bar, depois de termos ido lá uma meia dúzia de vezes, e acompanhamos o roteiro da peça imaginária logo ali, debaixo dos nossos narizes.    E, no momento em que a gente se levanta para ir embora, de repente a gente cruza aquela linha imaginária que nos separava de um ator principal.  Como num passe de mágica, passamos a ser um deles, desfilando também na Plaza de las Tendillas, deixando que outros nos olhem e observem.  

 

Beijinhos a todos, e muitas saudades,  L.

 

 PS: Sabem que eu adoro esses 3 pingos da palavra beijinhos?