Recentemente encontrei a obra de Antônio Henrique Amaral: Paisagem imaginária, de 1983. Não a conhecia. Amaral usava imagens simplificadas, de grandes proporções. Transmitia mensagens alegóricas entendidas ou não pelo espectador. Fartamente familiarizado com a arte Pop dos anos sessenta, Amaral desenvolveu, à moda de Andy Warhol, obras icônicas de seu tempo. Elas levavam o espectador a identificar e reconhecer que as imagens tinham simbolismo relevante para o momento em que foram produzidos.
Como Andy Warhol e outros artistas Pop nos Estados Unidos, Amaral usou imagens de objetos corriqueiros, para montar seu discurso. Cada espectador que tirasse suas conclusões. Nos Estados Unidos, Andy Warhol escolheu latas de sopa, garrafinhas de Coca-Cola, retratos de Marilyn Monroe e de outros ídolos do momento para fazer sua denúncia sobre o que era santificado no momento. Jasper Johns produziu grande variedade de arte-objeto, das bandeiras americanas às latinhas de cerveja. Todos com o mesmo objetivo de abrir os olhos dos espectadores para o seu redor. Jasper Johns era mais politicamente envolvido, sobretudo com a Guerra do Vietnã, presente no dia a dia do americano dos anos sessenta do século passado. Esse viés de engajamento político não foi desprezado por Antônio Henrique Amaral que dedicou muitas de suas telas a símbolos da vida cotidiana brasileira: bananas, bambus, bandeiras. Estas imagens, sobrepostas levavam ao engajamento político para qualquer observador de suas telas. Amaral, convidava, como seus parceiros americanos, o visitante da galeria ou museu a tirar conclusões frente suas telas, sobre momento histórico ou sobre a vida cotidiana da época.
À esquerda, Antônio Henrique Amaral, Sob a luz do Cruzeiro do Sul, 1993; à direita, René Magritte, Homenagem a Shakespeare, 1963.
Amaral foi responsável por obras enganosamente simples: imagens de dimensões colossais ganhavam importância no imaginário do observador. Deveria haver uma razão, uma mensagem numa tela repleta de bambus. Todos procuravam entender o simbolismo, dar significado ao grandioso ícone que encaravam. Afinal, por que ver uma banana de um metro por oitenta centímetros? Que ele queria dizer com isso? E a banana na frente de duas bandeiras, a nacional e a americana? Essas telas convidavam à conversa do espectador com o pintor; quase demandavam a participação de quem as visse.
Genuíno produto segunda metade do século XX, Antônio Henrique Amaral não escapa à influência de seus colegas americanos. No entanto, volta-se também para os artistas que trabalharam nos anos anteriores à Segunda Guerra Mundial. As superimposições que usa, como bandeiras e bananas, surgem acompanhadas da estética de René Magritte, que era, por sua vez, fruto de influências que acomodavam grandes discrepâncias de tamanho. Comecemos com a importância dada aos objetos, como aconteceu durante o movimento Dada, com Marcel Duchamp.
Roda de bicicleta, 1951, 3º versão, original de 1913 perdido, Marcel Duchamp (França-EUA,1887-1968), ready-made, MOMA, NY
Desse período temos Duchamp e Man Ray, entre outros trazendo a “coisa pronta” [ready-made] para as galerias e colecionadores. Magritte estava no início do século XX à procura do caminho a seguir. Estes foram seus verdadeiros anos formativos. Como uma esponja absorvia o que via, na arte de pintores contemporâneos, nas galerias de arte, revistas, anúncios o que lhe caísse nas mãos. Foi diretamente influenciado pelos livros-colagem de Max Ernst, La femme 100 têtes e Une semaine de bonté, que precederam seu trabalho. Mas também teve notória influência de Giorgio de Chirico. E não é que ambos Ernst e de Chirico combinavam imagens díspares de tamanhos variados?
Em cima, René Magritte, Túmulo dos lutadores, 1960; embaixo, Antônio Henrique Amaral, Banana, s/d.
Característica da arte do século passado, de pintor em pintor, a compreensão do espaço a ser preenchido nas duas dimensões do papel ou da tela, ganha impulso com novas técnicas e maneiras de expressão. O colóquio entre presente e passado, pintura e escultura é frequente, sempre baseado nas obras daqueles que precederam o artista do momento. Muita vezes, seus próprios contemporâneos servem de apoio a uma nova estética absorvida ou determinada por uma movimento, por troca de ideias por comprometimento de objetivos.
A imagem que suscitou essa postagem, Paisagem imaginária, imediatamente pareceu ter afinidade visual com a obra de Oscar Niemeyer, Mão, 1988 situada no Memorial da América Latina, em São Paulo. Teria ele intimidade com o trabalho de Amaral? A pintura de Amaral antecede o projeto escultórico de Niemeyer por cinco anos.
Em cima, Paisagem imaginária, 1983 de Amaral; embaixo Mão, 1988, Niemeyer.
Na década de 1980, Oscar Niemeyer já conhecia o trabalho de Antônio Henrique Amaral. Quando pediu ao governador de São Paulo que o painel de Cândido Portinari, Tiradentes de 1948, fosse realocado do Palácio dos Bandeirantes, para Memorial da América Latina, em construção, abriu-se uma competição para artistas convidados com o objetivo de preencher o vazio criado no palácio do governo que ficara despido. Aguilar, Antonio Henrique Amaral, Cláudio Tozzi, Emanoel Araújo, Sérgio Ferro e Valdir Sarubbi foram chamados para apresentar suas visões do que poderia ser feito. Hoje, esses projetos fazem parte do acervo do palácio. O escolhido foi Antônio Henrique Amaral que se dedicou então ao São Paulo – Brasil:Criação, Expansão e Desenvolvimento.
Ainda que no painel para o Palácio Bandeirantes não haja mãos, bambus e outras vegetações tomam toda a superfície, é bom lembrar que não teria sido só em Paisagem imaginária que Amaral representou mãos de impacto visual. Algumas aparecem em xilogravuras o que torna a popularidade de sua obra maior. Há, afinal, dezenas de tiragens ou mais dependendo da demanda, que podem ser vistas em inúmeros lugares ao mesmo tempo. Antônio Henrique Amaral tinha preferência por esta forma de expressão. Em parte por ter estudado com o pintor e excelente gravador Lívio Abramo, e também porque a xilogravura é parte essencial do vocabulário artístico do país de norte a sul.
Em cima, Consensus, 1967; embaixo Diálogo Frustrado, 1967, ambas xilogravuras de Antônio Henrique do Amaral.
Essa fascinação por mãos que falam, grandes ou pequenas tão expressivas, às vezes mais expressivas do que um rosto, primeiro me lembrou a obra do escultor chileno Mario Ararrazábal. Difícil falarmos de mãos no início do século XXI sem referência imediata a este artista e suas várias e gigantescas mãos. Primeiro agonizante mão plantada no deserto do Atacama, na estrada que leva a Antofagasta, chamada A Mão do Deserto, de 1992. Gigantesca ela parece pedir auxílio. Logo vem à lembrança também a mão de Veneza de sua autoria, já menos desesperadora, talvez porque esteja quase toda acima do solo, desenterrada, já.
Em cima, Mão, 1992, Chile; embaixo Mão, 1995, Veneza, Itália. Ambas do escultor chileno Mario Ararrazábal.
A Mão de Oscar Niemeyer, no Memorial da América Latina, tem em comum com as obras de Mario Ararrazábal o tamanho gigantesco, os dedos abertos, espalmados ao vento, como num apelo mudo a um ser maior, um espírito protetor, a quem preste atenção ao seu desespero. Mas quaisquer que ela sejam, independente de quem as fez, há aflição, angústia, ansiedade causadas por estas mãos com ou sem punhos saindo do solo. E no entanto volto meus pensamentos uma vez mais à obra de René Magritte, onipresente no século XX.
Colagem, 1966
René Magritte (Bélgica, 1898-1967)
colagem, lápis e tinta sobre papel
Um ano antes de falecer, Magritte faz uma misteriosa colagem, que vemos acima: a mão enorme, desproporcional à mesa em que parece apoiada, preenche a paisagem arenosa de uma praia. Não parece muito diferente daquelas do escultor chileno Mario Ararrazábal. Nesta obra Magritte parece voltar a atenção ao início de sua carreira, quando admirou e absorveu a estética de Max Ernst e de Giorgio de Chirico. Por que? Pergunta difícil de responder.
Página do romance gráfico, feito exclusivamente de colagens, La femme 100 têtes, 1929, de Max Ernst
Giorgio de Chirico, Canção de Amor, 1914, óleo sobre tela.
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NOTA:
Este texto é um trabalho em andamento…. parte de futura publicação — Notas da história da arte: observações aleatórias das salas de aula
Ladyce West é uma historiadora da arte. Em sua vida acadêmica, antes de abrir uma galeria de arte e antiquário, dedicou-se ao estudo do surrealismo belga. Seu livro: Humor, Wit and Irony in the Works of Belgian Surrealists, baseado em tese da Universidade de Maryland, está em processo de tradução para o português.
Em: 101 Poetas Paranaenses: V.1 (1844 -1959)– antologia de escritas poéticas do século XIX ao século XXI, seleção e apresentação de Ademir Demarchi, Curitiba, Biblioteca Pública do Paraná: 2014, p. 203
“Magritte esclarece-nos: “L’art de peindre — tel que je le conçois — se borne à la description de la pensée que unit — dans l’ordre qui évoque le mystère — ce qui le monde manifeste de visible“. Mais ainda: “Les figures vagues ont une signification aussi nécessaire, aussi parfaite que les précises“.
Uma de suas tarefas principais consiste portanto em dar forma concreta ao impreciso, onde ele se encontraria com um seu antípoda, Max Bense, que aconselha o artista a elaborar os pensamentos como formas. As perigosas fronteiras entre poesia e pintura foram de há muito estreitadas por Magritte, ao enquadrar elementos alógicos ou arbitrários numa trama plástica, pelo que poderia ser também aparentadoao Max Ernst dos grandes momentos. Já se disse que Magritte combate a razão com as armas desta.Mas alguém imaginaria justapor Lautréamont à Descartes? A obra de Magritte, que sabe domesticar o absurdo, leva-nos a crer nesta possibilidade”.
Em: Transístor, Murilo Mendes, Rio de Janeiro, Nova Fronteira: 1980,p.189-190.
“Todavia certos pintores — como também certos escritores — apesar de praticarem o culto do sonho e do inconsciente, que muito antes de Freud os ligava aos românticos (especialmente a Novalis, Achim von Arnin, Hoffmann e Nerval), não eram de fato uns instintivos, mesmo porque percebiam nitidamente a polaridade entre forças cerebrais e forças ancestrais. Em breve fundou-se uma linha divisória da teoria e da prática. Pascal escrevera: “Nous sommes automate autant qu’esprit“. Os revisionistas poderiam alterar a fórmula e dizer “Nous sommes esprit autant qu’ automate“. Não foi por acaso que alguns adeptos da doutrina passaram sem choque para o marxismo, que comporta, além de seu aspecto destruidor e polêmico, toda uma construção. O surrealismo, teoricamente inimigo da cultura, tornou-se num segundo tempo um fato de cultura; e muitos surrealistas, superando a técnica do automatismo, dispuseram-se a trabalhar com um método planificador. Por isso mesmo, quando há uns vinte anos atrás Breton procedeu em Nova Iorque à revisão analítica do movimento, a contragosto incluía Magritte entre os pintores surrealistas, insinuando que o seu processo de compor não era automático, antes plenamente deliberado”.
Em: Transístor, Murilo Mendes, Rio de Janeiro, Nova Fronteira: 1980,p.188-9.
« …Pela primeira vez na História, quando governos, corporações e indivíduos privados avaliam o futuro imediato, muitos não pensam na guerra como um acontecimento provável. As armas nucleares tornaram uma guerra entre superpotências um ato louco de suicídio coletivo e com isso forçaram as nações mais poderosas da Terra a encontrar meios alternativos e pacíficos de resolver conflitos. Simultaneamente, a economia global abandonou as bases materiais para se assentar no conhecimento. Antes, as principais fontes de riqueza eram os recursos materiais, como minas de ouro, campos de trigo e poços de petróleo. Hoje, a principal fonte de riqueza é o conhecimento. E, embora se possam conquistar poços de petróleo na guerra, não se pode conquistar conhecimento dessa maneira. Desde que o conhecimento se tornou o mais importante recurso econômico, a rentabilidade da guerra declinou e as guerras tornaram-se cada vez mais restritas àquelas regiões do mundo – como o Oriente Médio e a África Central – nas quais as economias ainda são antiquadas, baseadas em recursos materiais.”
Em: Homo Deus, Yuval Noah Harari, tradução de Paulo Geiger, Cia das Letras: 2016, pp 24-25
Siem Sigerius é um grande matemático especializado na teoria dos nós e reitor de uma universidade holandesa. É também um dos narradores de Bonita Avenue, assim como seu principal personagem. Ainda que ele divida com Joni, sua enteada e Aaron o namorado dela a apresentação ao leitor dos eventos que levaram ao colapso da família, é seu o papel principal dessa obra.
Diz a teoria dos nós que : “O artesão que faz uma trança, uma rede, ou alguns nós estará preocupado, não com questões de medidas, mas com aquelas de posição: o que ele vê ali é a maneira na qual os fios estão entrelaçados”. [Wikipédia] Como um bom entendedor de nós, e de seus emaranhados, Siem, na segunda metade da obra quando começa a perceber a teia em que ele se encontrava, começa a desatar um a um os nós que estruturavam as relações familiares. Até o momento em que precisa ele mesmo desaparecer. Desse ponto de vista seu suicídio é previsível. E para os que acham que posso estar revelando segredos, acalmem-se: o suicídio é contado logo no início do livro. Pois não só a narrativa é baseada em três vozes, como ela é apresentada no presente e no passado sem qualquer ordem que possa ser detectada pelo leitor.
Bonita Avenue não é para o leitor de coração fraco, ou do que gosta de uma narrativa linear. Nem é para o leitor que deseja simplesmente se divertir. Temos que trabalhar o cérebro para seguir essa trama espetacular, confusa, estranha e, sobretudo questionadora dos comportamentos modernos, pós-internet. No coração dessas questões está o hábito do consumo de pornografia na rede, assim como a questão curiosa sobre a imagem das mulheres e homens que se expõem em sites pornográficos: são ou não profissionais da prostituição? Os atores pornográficos são exibicionistas? E suas identidades podem de fato se manter desconhecidas? A identidade na rede é uma das questões levantadas nessa obra abrangente sobre a vida moderna.
A história circula em volta da família Sigerius entre os anos de 1980 e 2000. É uma família moderna. Segundo casamento de ambas as partes com filhos dos compromissos anteriores. Também é uma família disfuncional. Seus personagens são fascinantes e incluem além do matemático conhecido mundialmente, um fotógrafo, uma marcineira e uma atriz pornô. Há referências ao judô, a doenças mentais e sobretudo à indústria pornográfica na internet. A família não é feliz. A época em que foi mais feliz se resume aos anos passados na Califórnia, em Berkeley, num endereço na Bonita Avenue.
Peter Buwalda
Peter Buwalda tem uma maneira singular de narrar. Paga seus tributos à literatura do século XIX dando-se ao trabalho de apresentar personagem por personagem logo no início da obra. Mas são poucos. Isso contribui para a sensação de claustrofobia, e também para dar a impressão de que o enredo não progride. O que lembra de novo as obras do século XIX, em particular a afirmação da escritora inglesa Geoge Eliot em relação à linha do tempo de uma obra: “O melhor fogo não é o que se acende mais rapidamente.” Buwalda toma seu tempo e diferente da literatura mais tradicional apresenta seus personagens com viés: todos parecem caracterizados pelos seus piores aspectos, como se os víssemos só pelo lado B de suas personalidades. Outro artifício é a apresentação de um enredo simples centrado na família, mas contado com tantas interferências de fatos irrelevantes, anedotas, histórias paralelas que parece chegar ao essencial paulatinamente, comendo pelas beiradas.
Uma história espetacular, em que personagens fora da norma nos convidam a reflexões nem sempre fáceis. É violenta. Ocasionalmente bastante gráfica, inclusive na pornografia. Mas não é para qualquer um. Você precisa gostar de uma história apresentada de maneira complexa, não linear e com final em aberto. Fora isso, magistral.
[Aqui, Matilda no papel de interventora a favor da absolvição de Henrique IV, junto ao abade Hugo de Cluny].
É curioso como histórias que aprendemos há tempos às vezes retornam, assim do nada, trazidas por um fio puxado dos confins da memória, de tal modo que nem nós mesmos entendemos como viemos a nos lembrar dessa ou daquela informação. Estou lendo o livro Bonita Avenue do autor holandês Peter Buwalda e encontrei logo no primeiro capítulo referência ao conto do peixe e do anel, que neste romance é atribuído a uma passagem (uma anedota) de Vladimir Nabokov. Essa atribuição me deixou surpresa. Eu a conheço como parte do folclore belga.
Todos os meus caminhos me levaram ao estudo da Bélgica e da Holanda. Se houve um território na Europa que mais mudou de mãos através dos séculos, esse foi um deles. Foi francês, flamengo, espanhol, holandês, alemão, católico e protestante. Deu-nos não só as raízes do capitalismo, do mercantilismo, da classe média, da bolsa de valores, da tolerância religiosa, assim como nos deu Bosch, Bruegel, de Rubens, Rembrandt e Vermeer a Ensor, van Gogh e Mondrian, de René Magritte a Delvaux e Folon.
Pois a história do peixe e do anel também aparece na Bélgica e está ligada à fundação da Abadia de Nossa Sra. de Orval, fundada em 1132. Matilda da Toscana ou Matilda de Canossa era uma poderosa rainha medieval que visitando as terras da região de Gaume [Florenville], quando já se encontrava viúva, perdeu o belo anel de casamento em uma fonte. Matilda ficou muito contrariada e em desespero rezou fervorosamente para que o anel fosse encontrado. Eis que uma truta, de repente, salta da água segurando em sua boca o anel da Rainha Matilda. Grata pela resposta aos seus pedidos a rainha então exclamou: “Este é um verdadeiro Vale de Ouro” [Val d’Or], batizando, naquele momento, a região que veio a ser conhecida como Orval. E foi lá que os monges cisterciences decidiram construir um monastério.
Quando se menciona a palavra surrealismo poucos, hoje, pensam na literatura ou na poesia. O que passa pela cabeça são os relógios derretidos de Salvador Dali ou os homens com chapéu coco e uma maçã no rosto de René Magritte. Vivemos em um mundo mais influenciado pela imagem gráfica do que pela palavra escrita. No entanto, o surrealismo foi um movimento estético primeiramente literário, fundado por André Breton, um romancista e pintor por surrealiadade e batizado pelo poeta Guillaume Apollinaire (1880-1918), pai da poesia concreta.
Lembrei-me da importância de Apollinaire durante a leitura de Nadando de volta para casa, de Deborah Levy, porque parte do poema do poeta francês Il pleut [Chove] (imagem acima) tem papel importante e simbólico na narrativa. O poema como podemos ver tenta imitar no papel, com as palavras de seu corpo, as gotas de chuva caindo.
Il pleut des voix de femmes comme si elles étaient mortes même dans le souvenir c’est vous aussi qu’il pleut, merveilleuses rencontres de ma vie. ô gouttelettes ! et ces nuages cabrés se prennent à hennir tout un univers de villes auriculaires écoute s’il pleut tandis que le regret et le dédain pleurent une ancienne musique écoute tomber les liens qui te retiennent en haut et en bas
[Chovem vozes de mulheres como se estivessem mortas mesmo na recordação
Chovem também encontros maravilhosos da minha vida ó gotículas
E estas nuvens empinadas começam a relinchar um universo de cidades mínimas
Escuta se chove enquanto a mágoa e o desdém choram uma música antiga
Escuta caírem os elos que te retém em cima e embaixo]
Tradução de Sérgio Caparelli, com o nome A Chuva
Guillaume Apollinaire, do livro Calligrammes. [Salut monde dont je suis la langue]
Guillaume Apollinaire, como o personagem do romance mencionado acima, era polonês, Wilhelm Albert Włodzimierz Apolinary Kostrowicki, e adotou o nome Guillaume (tradução para o francês de Wilhelm) Apollinaire (afrancesamento de um de seus sobrenomes). Nascido na Itália, imigrou para a França onde se tornou importante intelectual; inventou o termo surrealismo e, semelhante às sibilas da antiguidade, profetizou o uso da precisão na digitação de um texto, ou poema, pelos novos meios de reprodução: o cinema e o fonógrafo .
Apollinaire foi o primeiro a usar o termo surrealista publicamente em 1917 na sua peça teatral em dois atos e um prólogo, Les Mamelles deTirésias, drame surréaliste [As tetas de Tiresias, drama surrealista]. O termo se tornou popular imediatamente. [Mais tarde, em 1947, com permissão de Mme Apollinaire, viúva do poeta, Francis Poulenc inaugurou a ópera-bufa do mesmo nome, com libreto de Apollinaire, e figurinos de Erté.]
Convite da première de Les Mamelles de Tirésias.
Mas a maior influência de Apollinaire foi e é ainda na poesia concreta. Foi a publicação de Calligrammes, em 1918, que o levou a ser considerado o pai da poesia concreta moderna e a dar o nome a uma classificação inteira de poemas (caligramas) cujas palavras formam uma imagem com significado relativo ao seu conteúdo: Caligramas, Poemas de Paz e Guerra, 1913-1916.
O Caligrama [combinação de duas palavras: caligrafia e telegrama] é fruto da fascinação de Apollinaire com o telégrafo sem fio, sobretudo com contribuição do francês Émile Baudot, que em 1874, inventou uma máquina que transformava os sinais telegráficos de modo automático, em caracteres tipográficos. Apollinaire definiu seus caligramas como uma idealização do verso livre. Era poesia com precisão de digitação, usando novos meios de reprodução.
Guillaume Apollinaire, do livro Calligrammes [Reconnais-toi cette adorable personne]
Guillaume Apollinaire foi ainda influente na gestação de outros movimentos das artes plásticas como o Futurismo, Cubismo e Orfismo. Mas nada que se comparasse ao poder de previsão que ele demonstrou em sua famosa palestra, “L’Esprit Nouveau et les Poétes,” [O novo espírito e os poetas] de novembro de 1917, quando incitou outros poetas a abraçarem a inovação e previu que a poesia do futuro seria inventiva e surpreendente. O dia chegaria em que poetas iriam brincar com seus versos, e teriam a habilidade de combinar palavras com imagens.
A título de curiosidade, em 1917, Apollinaire morava no bairro de Montparnasse em Paris e contava entre seus amigos e atendentes dessa palestra Pablo Picasso, Gertrude Stein, Marie Laurencin e Marcel Duchamp, todos ainda longe dos louros que receberiam mais tarde, como pensadores culturais da modernidade.