Mãos gigantes

23 04 2023

Paisagem Imaginária, 1983

Antônio Henrique Amaral (Brasil, 1935-2015)

óleo sobre tela, 40 x 60 cm

Recentemente encontrei a obra de Antônio Henrique Amaral: Paisagem imaginária, de 1983.  Não a conhecia. Amaral usava imagens simplificadas, de grandes proporções.  Transmitia mensagens  alegóricas entendidas ou não pelo espectador.  Fartamente familiarizado com a arte Pop dos anos sessenta, Amaral desenvolveu, à moda de Andy Warhol, obras icônicas de seu tempo.  Elas levavam o espectador a identificar e reconhecer que as imagens tinham simbolismo relevante para o momento em que foram produzidos.  

Como Andy Warhol e outros artistas  Pop nos Estados Unidos, Amaral usou imagens de objetos corriqueiros, para montar seu discurso.  Cada espectador que tirasse suas conclusões.  Nos Estados Unidos, Andy Warhol escolheu latas de sopa, garrafinhas de Coca-Cola, retratos de Marilyn Monroe e de outros ídolos do momento para fazer sua denúncia  sobre o que era santificado no momento. Jasper Johns  produziu grande variedade de arte-objeto, das bandeiras americanas às latinhas de cerveja.  Todos com o mesmo objetivo de abrir os  olhos dos espectadores para o seu redor.  Jasper Johns era  mais politicamente envolvido, sobretudo com a Guerra do Vietnã, presente no dia a dia do americano dos anos sessenta do século passado.  Esse viés de engajamento político não foi desprezado por Antônio Henrique Amaral que dedicou muitas de suas telas a símbolos da vida cotidiana brasileira: bananas, bambus, bandeiras. Estas imagens, sobrepostas levavam ao engajamento político para qualquer observador de suas telas.  Amaral, convidava, como seus parceiros americanos,  o visitante da galeria ou museu a tirar conclusões frente suas telas, sobre momento histórico ou sobre a vida cotidiana da época.

À esquerda, Antônio Henrique Amaral, Sob a luz do Cruzeiro do Sul, 1993; à direita, René Magritte, Homenagem a Shakespeare, 1963.

Amaral foi responsável por obras enganosamente simples: imagens de  dimensões colossais ganhavam importância no imaginário do observador.  Deveria haver uma razão, uma mensagem numa tela repleta de bambus. Todos procuravam entender o simbolismo, dar significado ao grandioso ícone que encaravam.  Afinal, por que ver uma banana de um metro por oitenta centímetros? Que ele queria dizer com isso? E a banana na frente de duas bandeiras, a nacional e a americana?  Essas telas convidavam à conversa do espectador com o pintor;  quase demandavam a participação de quem as visse.

Genuíno produto segunda metade do século XX, Antônio Henrique Amaral não escapa à influência de seus colegas americanos.  No entanto, volta-se também para os artistas que trabalharam nos anos anteriores à Segunda Guerra Mundial. As  superimposições que usa, como bandeiras e bananas, surgem acompanhadas da estética de René Magritte, que era, por sua vez,  fruto de influências que acomodavam grandes discrepâncias de tamanho.  Comecemos com a importância dada aos objetos, como aconteceu durante o movimento Dada, com Marcel Duchamp.

Roda de bicicleta, 1951, 3º versão, original de 1913 perdido, Marcel Duchamp (França-EUA,1887-1968), ready-made, MOMA, NY

Desse período temos Duchamp e Man Ray, entre outros trazendo a “coisa pronta” [ready-made] para as galerias e colecionadores.  Magritte estava no início do século XX à procura do caminho a seguir.  Estes foram seus verdadeiros anos formativos.  Como uma esponja absorvia o que via, na arte de pintores contemporâneos, nas galerias de arte, revistas, anúncios o que lhe caísse nas mãos.  Foi diretamente influenciado pelos livros-colagem de Max Ernst, La femme 100 têtes e Une semaine de bonté, que precederam seu trabalho. Mas também teve notória influência de Giorgio de Chirico.  E não é que ambos Ernst e de Chirico  combinavam imagens díspares de tamanhos variados?

Em cima, René Magritte, Túmulo dos lutadores, 1960; embaixo, Antônio Henrique Amaral, Banana, s/d.

Característica da arte do século passado, de pintor em pintor, a compreensão do espaço a ser preenchido nas duas dimensões do papel ou da tela, ganha impulso com novas técnicas e maneiras de expressão. O colóquio entre presente e passado, pintura e escultura é frequente, sempre baseado nas obras daqueles que precederam o artista do momento.  Muita vezes, seus próprios contemporâneos servem de apoio a uma nova estética   absorvida ou determinada por uma movimento, por troca de ideias por comprometimento de objetivos.

 A imagem que suscitou essa postagem, Paisagem imaginária, imediatamente pareceu ter afinidade visual com a obra de Oscar Niemeyer, Mão, 1988 situada no Memorial da América Latina, em São Paulo. Teria ele intimidade com o  trabalho de Amaral?  A pintura de Amaral antecede o projeto escultórico de Niemeyer por cinco anos.

Em cima, Paisagem imaginária, 1983 de Amaral; embaixo Mão, 1988, Niemeyer.

 

Na década de 1980,  Oscar Niemeyer já conhecia o trabalho de Antônio Henrique Amaral. Quando pediu ao governador de São Paulo que o painel de Cândido Portinari, Tiradentes  de 1948, fosse realocado do Palácio dos Bandeirantes, para  Memorial da América Latina, em construção, abriu-se uma competição para artistas convidados com o objetivo de preencher o vazio criado no palácio do governo que ficara despido.  Aguilar, Antonio Henrique Amaral, Cláudio Tozzi, Emanoel Araújo, Sérgio Ferro  e Valdir Sarubbi foram chamados para apresentar suas visões do que poderia ser feito. Hoje, esses projetos fazem  parte do acervo do palácio. O escolhido foi Antônio Henrique Amaral que se dedicou então ao São Paulo – Brasil: Criação, Expansão e Desenvolvimento.

 

 

Ainda que no painel para o Palácio Bandeirantes não haja mãos, bambus e outras vegetações tomam toda a superfície, é bom lembrar que não teria sido só em  Paisagem imaginária que Amaral representou mãos de impacto visual. Algumas aparecem em xilogravuras o que torna a popularidade de sua obra maior.  Há, afinal, dezenas de tiragens ou mais dependendo da demanda, que podem ser vistas em inúmeros lugares ao mesmo tempo.  Antônio Henrique Amaral tinha preferência por esta forma de expressão. Em parte por ter estudado com o pintor e  excelente gravador Lívio Abramo, e também porque a xilogravura é parte essencial do vocabulário artístico do país de norte a sul.  

 

Em cima, Consensus, 1967;  embaixo Diálogo Frustrado, 1967, ambas xilogravuras de Antônio Henrique do Amaral.

 

Essa fascinação por mãos que falam, grandes ou pequenas  tão expressivas, às vezes mais expressivas do que um rosto, primeiro me lembrou a obra do escultor chileno Mario Ararrazábal.  Difícil falarmos de mãos no início do século XXI sem referência imediata a este artista e suas várias e gigantescas mãos.  Primeiro agonizante mão plantada no deserto do Atacama, na estrada que leva a Antofagasta, chamada A Mão do Deserto, de 1992.  Gigantesca ela parece pedir auxílio.  Logo vem à lembrança também a mão de Veneza de sua autoria, já menos desesperadora, talvez porque esteja quase toda acima do solo, desenterrada, já. 

 

Em cima, Mão, 1992, Chile; embaixo Mão, 1995, Veneza, Itália. Ambas do escultor chileno Mario Ararrazábal.

 

A Mão de Oscar Niemeyer, no Memorial da América Latina, tem em comum com as obras de Mario Ararrazábal o tamanho gigantesco, os dedos abertos, espalmados ao vento, como num apelo mudo a um ser maior, um espírito protetor, a quem preste atenção ao seu desespero. Mas quaisquer que ela sejam, independente de quem  as fez, há aflição, angústia, ansiedade causadas por estas mãos com  ou sem punhos saindo do solo.  E no entanto volto meus pensamentos uma vez mais à obra de René Magritte, onipresente no século XX. 

 

Colagem, 1966

René Magritte (Bélgica, 1898-1967)

colagem, lápis e tinta sobre papel

 

Um ano antes de falecer, Magritte faz uma misteriosa colagem, que vemos acima: a mão enorme, desproporcional à mesa em que parece apoiada, preenche a paisagem arenosa de uma praia.  Não parece muito diferente daquelas do escultor chileno  Mario Ararrazábal. Nesta obra Magritte parece voltar a atenção ao  início de sua carreira, quando admirou e absorveu a estética de Max Ernst e de Giorgio de Chirico. Por que?  Pergunta difícil de responder.

 

MAX ERNST, FEMME 100 TETES 1

Página do romance gráfico, feito exclusivamente de colagens, La femme 100 têtes, 1929, de Max Ernst

 

MAGRITTE - DECHIRICO SONG OF LOVE

Giorgio de Chirico, Canção de Amor, 1914, óleo sobre tela.

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NOTA:

Este texto é um trabalho em andamento…. parte de futura publicação —  Notas da história da arte: observações aleatórias das salas de aula

 

©Ladyce West, Rio de Janeiro, 2023

 

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Ladyce West é uma historiadora da arte.  Em sua vida acadêmica, antes de abrir uma galeria de arte e antiquário, dedicou-se ao estudo do surrealismo belga.  Seu livro: Humor, Wit and Irony in the Works of Belgian Surrealists, baseado em tese da Universidade de Maryland, está em processo de tradução para o português. 

 







Eu, pintor: Giorgio de Chirico

19 11 2020

Autorretrato, 1935

Giorgio de Chirico (Itália, 1888 — 1978)

óleo sobre tela

Coleção Particular





O escritor no museu: Clarice Lispector

16 05 2019

 

 

 

clarice_por_de_chirico1

Clarice Lispector, 1945

Giorgio De Chirico (Itália, 1888 – 1878)

 

 





Jogos de sombras, poema de Hermes Fontes

15 02 2018

 

 

 

giorgio-de-chiricoPiazza d’Italia, 1960

Giorgio de Chirico (Itália, 1888 – 1978)

óleo sobre tela

 

 

 

Jogos de sombras

 

Hermes Fontes

 

 

Sempre que me procuro e não me encontro em mim,

pois há pedaços do meu ser que andam dispersos

nas sombras do jardim,

nos silêncios da noite,

nas músicas do mar,

e sinto os olhos, sob as pálpebras, imersos

nesta serena unção crepuscular

que lhes prolonga o trágico tresnoite

da vigília sem fim,

abro meu coração, como um jardim,

e desfolho a corola dos meus versos,

faz-me lembrar a alma que esteve em mim,

e que, um dia, perdi e vivo a procurar

nos silêncios da noite,

nas sombras do jardim,

na música do mar…

 

(1930)

 

 

Em: Poesias escolhidas, Hermes Fontes , Rio de Janeiro, Epasa: 1944, p.362-363.





Giorgio de Chirico, anotações de Murilo Mendes

5 01 2016

 

hector-and-andromacheHeitor e Andrômaca, 1917

Giorgio de Chirico (Grécia, 1888-1978)

óleo sobre tela, 90 x 60 cm

Coleção Particular

 

 

♦ Giorgio de Chirico  foi um dos ídolos da minha mocidade. Nessa época eu admirava seus quadros somente de fotografia: mais tarde, ao conhecer os originais, notei que muitos ganham com a reprodução. Alguns poemas da minha fase inicial descendem — direta ou colateralmente — do primeiro de Chirico aquele dos manequins, dos interiores “metafísicos”, do deserto melancólico das praças, italianas ou não, transpostas a uma situação particular de sonho; o poeta de uma Grécia heterogênea, mental e plástica, infinitamente recomeçada, onde o absoluto serve o relativo. Pintura, certo, de evasão, de recriação da memória, mas com implicações revolucionárias: contra o predomínio da mecânica, contra a prepotência da razão, contra certos postulados da civilização burguesa.

 

♦  O segundo de Chirico, involuindo numa direção quase acadêmica, constitui para a crítica um enigma: vestido com uma roupagem do século 17, dirige perguntas a Édipo que se surpreende ao ver renegada a arte moderna por um de seus próprios criadores, a quem André Breton definiu figura maior do surrealismo, com seu irmão e inspirador Alberto Savinio.

 

♦  Desde a primeira época da formação do surrealismo informei-me avidamente sobre essa técnica de vanguarda, a qual, embora eu não adotasse como sistema, me fascinava, compelindo-me à criação de uma atmosfera insólita, e ao abandono de esquemas fáceis ou previstos. Tratava-se de um de dever da cultura. O Brasil, segundo Jorge de Sena, é surrealista de nascimento, de modo que a minha “conversão”, ainda é parcial, àquele método, não foi difícil. Fenômeno análogo verifica-se com Ismael Nery. Não é um pintor surrealista ortodoxo, mas em muitos quadros e desenhos levanta uma realidade “autre”, na linha surrealista da invenção e metamorfose; sem perder a força plástica. Entre os anos de 20 e 30 ele fora à Europa duas vezes, conhecendo alguns membros do grupo em Paris. Trouxe-me abundante documentação sobre o movimento, em especial sobre de Chirico e Max Ernst (outro que me inspirou), cujos nomes ainda estavam longe da irradiação atual.

 

♦  Instalando-me em Roma, logo contatei escritores e artistas. Fui visitar de Chirico (que, a convite de Ungaretti, assistira na universidade à minha aula inaugural). Sua casa da Piazza di Spagna acha-se estupendamente situada junto daquela onde morreu Keats, com vistas para Trinità dei Monti e a Villa Medici. Claro que estava bem informado sobre sua involução, conhecendo muitos quadros dos últimos períodos. Apesar disto, julguei que seu ambiente conservasse vestígios dos tempos do primeiro de Chirico. Enganei-me: os móveis, a decoração, os quadros do próprio pintor (nus medíocres, auto-retratos com chapéus, emplumados), aproximavam-se do gosto burguês. Felizmente lá conheci sua sobrinha, a bela Angelica, filha de Savinio, diretora duma galeria d’arte em Roma; que escapou até hoje de ser retratada pelo segundo de Chirico, e da qual me tornei amigo. Já com o pintor é difícil fundar uma amizade: seu orgulho e excessivo narcisismo dificultam a comunicação.

 

♦  Não importa. Mesmo admitindo que ele reúna em sua pessoa Dr. Jekyll e Mister Hyde, mesmo estranhando o ambiente de sua casa, tão diverso dos interiores “metafísicos”, mesmo reprovando o inimigo da arte moderna que implica o personagem bufo, rival de Dali, a brilhar na televisão, para mim (e, certamente, para muitos) o primeiro de Chirico, fabuloso, permanece. Procedido, talvez, apenas por Monsiu Desiderio, ele é um anunciador de novos tempos, o criador de uma nova dimensão do sagrado, de um espaço específico da pintura de situações enigmáticas e alusões secretas, fautor da passagem a infra-estrutura do subconsciente à supra-estrutura artística, operação esta completada pela sua considerável novela-poema em prosa “Ebdómero”.

 

1971

 

Em: Transístor, Murilo Mendes, Rio de Janeiro, Nova Fronteira: 1980, pp. 218-220.





Eu, pintor: Giorgio de Chirico

22 08 2015

 

 

797px-Self-portrait_by_Giorgio_de_Chirico.jpg LONDONAuto-retrato, 1922

Giorgio de Chirico (Grécia, 1888-1978)

óleo sobre tela, 38 x 51 cm

Toledo Museum of Art, EUA