O Natal em Curvelo – texto de Maria Helena Cardoso

19 12 2012

Natal, 1969

Di Cavalcanti (Brasil, 1897-1976 )

óleo sobre tela

Coleção Particular

O Natal em Curvelo era simples e não havia o hábito das pessoas se presentearem, não sei se porque todos eram pobres. Rezava-se a Missa do Galo na matriz, e o que marcava aquele dia como de festa, era o número de comunhões a mais.

Em compensação, o presépio era um costume tradicional. Ninguém que se prezasse deixava de armar o seu: havia-os nas igrejas, nas moradias particulares, os famosos que arrastavam visitantes de fora e os modestos, armados no interior das casas mais humildes.

Nas proximidades do dia, acorriam dos arredores da cidade mulheres, algumas de longe, que traziam para vender, enfeites os mais variados: tocos de pau com parasitas em flor, frutos silvestres, musgo, pedaços de limo verdinho, arrancados das margens de riachos ou de barrancos úmidos e pedrinhas. Quem podia, comprava, e quem não podia, ia ao mato procurar, o que já constituía um aparte da festa. Eram caminhadas sob o sol ardente e à tardinha o regresso, carregados de gravatás, frutos do mato, de cheiro penetrante e agradável, barba-de-pau e seixinhos polidos.

Para enfeitar o lago, imprescindível em qualquer presépio que se prezasse, muito antes da data, plantavam-se em latas de manteiga vazias, arroz, que crescia verdinho e viçoso. As serras eram feitas com o maior apuro: sobre folhas de papel pardo de embrulho, bem encorpadas, passava-se grude de polvilho, espalhando em cima carvão bem moído, reduzido a pó, cinza de borralho e vidro colorido, triturado em pedacinhos no almofariz de bronze, que faziam cintilante a serra.  Quanto mais variadas as cores dos vidros empregados, mais mesas, de acordo com a imaginação de cada um: altas, mais baixas, formando grotas, despenhadeiros, grutas, e de espaço em espaço, barba-de-pau, que lhe dava um cunho de semelhança.

Depois vinha a colocação de vários figurantes: na gruta principal, a manjedoura onde descansava o Menino, N. Senhora e S. José ao lado, os animais tradicionais: o burro, o boi e os pastores.  Pela serra e pelos caminhos polvilhados de areia branca, tudo aquilo que se tinha colecionado durante o ano e, muitas vezes, durante anos.  Animais diversos, homens com cajados, pastores, ovelhas, peregrinos, monjolos, marrecos, leitõezinhos, lenhadores com seus machados, carros de bois, trens de ferro, tudo na mais pitoresca confusão. Era uma procissão de bichos os mais engraçados, camponeses, tocadores de sanfona, pássaros variados nos galhos das árvores das estradas e da serra, todos em demanda da manjedoura onde repousava o Menino sob a guarda de seus pais. Bem no alto, uma grande estrela de papel prateado cintilava, apontando o caminho para os reis magos, ainda em viagem, ao lado de casas coloridas espalhadas, algumas em verdadeiros despenhadeiros, completamente inacessíveis.  Ao redor do espelho, que fingia o lago, latas de arroz mais verde e lindo e patinhos brancos nadando: de celulóide, de louça, ou barro da Cacimbinha, conforme as posses do dono do presépio.  Misturado a tudo, sobre areia e folhas, mangas cheirosa, abacaxis maduros, gravatás e uvas pretas pendentes de belos cachos, que ainda conservavam frescas as suas folhas.

De 24 de dezembro a 6 de janeiro não se pensava senão na visita aos presépios da cidade.

Ia-se de casa em casa, à procura deles, desde os mais famosos, que tinham monjolos pequeninos movidos à água, oficina de carpintaria completa, com instrumentos se movendo, até os mais humildes como o nosso, que só possuía as figuras do estábulo, as serras que nós mesmos fazíamos, o lago rodeado de arroz plantado muito tempo antes, uns poucos bichinhos disformes, moldados por nossos dedos inábeis no barro cinza que trazíamos de Cacimbinha.

Para mim, porém, não havia nenhum mais belo, nenhum que o igualasse.  Passava o dia colocando nele flores e frutos que conseguia arranjar com uns e outros. Tempo feliz.

Em: Por onde andou meu coração: memórias, Maria Helena Cardoso, Rio de Janeiro, José Olympio: 1968, 2ª edição, Coleção Sagarana, volume 70.

 

Maria Helena Cardoso, professora, escritora, ficcionista e memorialista.  Nasceu em Diamantina, MG em 1903 e faleceu  no Rio de Janeiro em 1994.  Passou a infância em Curvelo, MG, onde fez os primeiros estudos, prosseguindo-os em Belo Horizonte, onde se formou na Escola de Farmácia.  Mudou-se com a família para o Rio de Janeiro em 1923.  [Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras: 1711-2001, Nelly Novaes Coelho]

Obras:

Por onde andou meu coração, memórias, 1967

Vida,vida, romance, 1973





Como comecei a amar os livros: Pedro Nava

24 11 2012

Mulher lendo, 2009

Ana Flor Castro Perez (Cuba, contemporânea)

óleo sobre tela

“Minha tia voltava do Sacré-Coeur pelas quatro horas e passava o resto do dia ao piano ou agarrada aos livros. Eu gostava de admirá-la entregue a esses misteres e fascinava-me a capa de uma de suas coleções de romances, parece-me que chamada Horas de Leitura, onde havia uma dorida figura de senhora lendo e destacando seu perfil agudo e o luto de sua roupa,  contra a claridade de uma janela ao fundo. Parecia minha tia e comecei a amar os livros”.

Em: Baú de Ossos: memórias, Pedro Nava, Rio de Janeiro, Sabiá: 1972, pág. 336.





O jardim e o ritmo da vida: do que sinto falta da vida na América

15 11 2012

Dia de verão, 1904

Georgina de Albuquerque (Brasil, 1885-1962)

óleo sobre tela, 130 cm X 89cm

Museu Nacional de Belas Artes,Rio de Janeiro

Depois de quase dez anos de volta ao Brasil, ainda me perguntam, do que eu mais sinto falta da minha vida lá fora.  Concluí, recentemente, que minha nostalgia está relacionada à natureza.  Sinto falta das estações do ano, dos rituais que cada uma delas traz para a vida de uma pessoa comum. Sinto falta daquela conexão com os ciclos da natureza.

Meu primeiro contato com o hemisfério norte foi num inverno.  Dia 15 de dezembro desembarquei para o que na época acreditava ser por 3 anos.  Permanecer lá por muito mais tempo, como aconteceu, não estava programado.  Fui morar numa cidade muito arborizada, mas só descobri isso na primavera, pois em dezembro as ruas tinham enfileiradas nas calçadas só troncos, mais ou menos retorcidos, sem uma única folha.  Um aspecto desolador.  Não havia neve.  Só frio.  Deixando para trás o calor de verão no Rio de Janeiro, o frio pareceu muito intenso.  Com os anos a sensação de frio diminuiu: eu já estava aclimatizada.

O conhecimento intelectual de que as folhas crescem com a aproximação da primavera, não retira o intenso prazer de vermos, ao final de fevereiro e no mês de março (na minha região), os pequeninos brotos, primeiro como verrugas, depois dedinhos delicados, saindo dos troncos, outrora aparentando estarem mortos.

Jovem senhora no parque, 1880

Edouard Manet ( França, 1832-1883)

óleo sobre tela

Coleção Particular

Existe a expressão Febre da Primavera [Spring Fever] que rotula um comportamento alegre, sapeca, cheio de energia, sensual e sexual, difícil de entender por quem só morou nos trópicos, onde as estações do ano quase não se manifestam com intensidade.  A expressão rotula um momento de comunhão com a natureza, quando nossos instintos animais se manifestam, quando nos contagiamos com a alegria da primavera, com a promessa de um futuro promissor.  Aqui não percebemos esse ímpeto da reprodução, essa força que embriaga, maior que nós mesmos.  Porque nos trópicos  isso acontece o ano inteiro, acaba desapercebido. Lá, tanto os mais velhos quanto crianças, que em tese estão fora dos parâmetros hormonais afetados pela “febre”, sentem o empurrão da natureza acoplado ao prazer de viver.  É uma febre que brota de dentro da alma, uma bem-aventurança com apelo sensual, um prazer físico intenso despertando o corpo.  Variações de latitude promovem a Febre da Primavera  em diferentes semanas.  Onde morei o início de abril trazia a vontade irreprimível de aventura.  Mas antes disso, os sinais de que o mundo mudava já apareciam. Com que alegria víamos as primeiras forsythias!  É uma planta com aparência desregrada,  um arbusto de flores amarelas, que desabrocha quase de um dia para o outro, como se um ramalhete de raios de sol fosse plantado no jardim, mesmo quando ainda está coberto de neve.  A forsythia é a primeira flor a aquecer olhos e corações.  Depois dela, tulipas, narcisos e com as azaléas a primavera vinga! Sinto falta dessa sinfonia de cores e de cantos dos pássaros!

A história de amor, 1903

Emanuel Phillips Fox ( Austrália, 1865-1915)

óleo sobre tela, 102 x 153 cm

Ballarat Fine Art Gallery

A primavera traz também as primeiras colheitas de frutos: morango, framboesa, mertilo, amora. E nos estados onde morei nos Estados Unidos, saíamos de balde em punho, chapéu de palha e muito protetor solar, para os campos de sítios e fazendas que vendem essas frutas ao quilo se você colher.  Eram sempre manhãs de sol em que sujávamos as mãos de terra, colhíamos as frutas nos pés e chegávamos à casa carregados, exaustos, vermelhos de calor, suados e muito felizes. Íamos então para a cozinha, lavar e comer as frutas frescas, o quanto bastasse, e com as sobras, o final de semana era dedicado a fazer tortas, bolos, geleias, alguma coisa para congelar e outras preservadas para os dias em que esses frutos já tivessem desaparecido.

Este também era o período do ano em que plantávamos pimentões, tomates e flores no jardim.  Éramos visitados por bando de pássaros negros, possivelmente starlings, todo início de primavera, pássaros que tomam conta do jardim ou de uma árvore, mas não ficam por muito tempo.  Se ainda não soubéssemos, a aparição desses pássaros mostrava que era hora de plantar    Mudas das plantas que não sobrevivem durante o inverno e que precisam ser plantadas todos os anos são vendidas em todo canto, do supermercado às lojas de conveniência.  Todo mundo entra na dança do plantio, mesmo na cidade grande, num ritual cansativo e alérgico.  Sim, porque foi só lá que descobri ser muito alérgica ao pólen.  Mas, antialérgicos ingeridos, íamos todos plantar algumas centenas de mudas de Maria-sem vergonha no jardim, (eu as plantava em abundância para me lembrar daqui) e também mudas de tomates e pimentões na área do quintal onde havia sol.  A primavera era o período da alegria, da renovação, da esperança.

Tarde sossegada

Ellen Lerner O’Donnell (EUA, contemporânea)

óleo sobre tela, 60 x 90 cm

http://www.ellenodonnell.com

Outros pequenos rituais que marcam a estação também têm magia.  Em março,  às portas da primavera, há o dia de São Patrício, celebrado inicialmente pelos imigrantes irlandeses católicos.  Em sua homenagem todos tentam vestir verde ou algo verde no dia 17.  Chope, bebidas diversas, bolos são servidos  coloridos de verde e decorados com o trevo de 4 folhas, símbolo do santo.  Mais tarde, já no meio da primavera celebra-se a Páscoa.  Lá, essa comemoração é marcante, sendo em geral, a primeira festa ao ar livre do ano.  Todos vão às suas respectivas igrejas, vestidos para a primavera.  Mulheres têm roupas em tons claros de rosa, azul, amarelinho, branco, beige e invariavelmente, até nos dias de hoje, um chapéu de palha.  Mesmo na primeira década do século XXI, esse chapéu de palha com abas largas e fitas coloridas era item essencial para o dia da Páscoa.

Engana-se quem acredita que o verão nos Estados Unidos não é quente.  É muitas vezes mais insuportável do que o carioca.  As temperaturas são altas e a umidade é elevadíssima.  À medida que o verão se aproxima, passa-se a aproveitar o ar livre no cair da tarde.  Não são poucas as festas, as reuniões entre amigos que começam no quintal e acabam no ar condicionado na cozinha dentro de casa por causa do calor.  Mas o verão trazia, como aqui, o chamado pela estadia fora da cidade, nas montanhas, nos rios e na praia.  É a hora das férias, que são poucas  – a grande maioria dos americanos tem só duas semanas de férias ao ano.  Mas os rituais americanos de verão estão ritmados por 3 grandes feriados nacionais: o dia do Mortos nas Guerras  [Memorial Day]– última segunda-feira de maio, dia da Independência, 4 de julho e o dia do Trabalho, primeira segunda-feira de setembro.

Sem título, 2003

Arie Zuidersma (Holanda, 1925)

acrílica sobre papel, 69 x 89 cm

É na primavera, em março,  antes da Páscoa, que se acompanha as finais de basquete colegial, chamado de Loucura de Março, [March Madness]  que nas cidades e nos estados da costa leste onde morei é tão importante quanto o basquete profissional.  É o adeus aos esportes de competição em recinto fechado.  Daí por diante começam os esportes ao ar livre.  Basebol é o primeiro da fila, mas nunca consegui entender sua lógica.  Durante os meses de março e abril faz-se a grande limpeza de casa, adequadamente chamada de Limpeza da Primavera [Spring Cleaning].  Lava-se a jato o exterior das casas, limpa-se e reparam-se as calhas.  Assim que as  escolas entram em férias, no início de maio, é a hora de se jogar fora o inverno com todas as suas poeiras e teias de aranha.  Depois de meses e meses  fechados por conta do clima, os americanos abrem suas casas para limpar, limpar tudo: telhado, janelas, varandas, decks, piscinas, ventiladores, canalização do ar condicionado. Limpa-se por dentro e por fora.  Faz-se uma faxina nos armários dos quartos, da cozinha, dos banheiros e garagem.  Pilhas e pilhas de objetos e roupas são colocados primeiro à venda nas conhecidas vendas de jardim, ou de garagem, onde os preços não passam de uns trocados, uma bagatela de poucos dólares, ou centavos, quer para objetos usados ou novos.  O que não se vende doa-se.  A data mais concorrida para o evento é justamente o fim de semana longo do Memorial Day, [Dia dos Mortos nas Guerras], que ritualmente fecha a primavera.

Viveiros, 1890

William Merritt Chase(EUA, 1849 – 1916)

Óleo sobre madeira

Coleção particular

O verão começa com a abertura das piscinas particulares e públicas que se enchem de crianças em férias, no feriado dos Mortos das Guerras. Até então a temperatura é fria demais para os esportes aquáticos ao ar livre. E os fins de semana começam a ser musicados pelo cantar incessante das máquinas de cortar grama. O ar cheira a grama cortada.  Nessa época colhem-se os primeiros tomates que têm o gosto delicioso do jardim.  Tudo que pode ser feito ao ar livre ganha novos adeptos: feiras dos pequenos produtores, exposições de arte e de artesanato nos parques da cidade. A maioria das cidades tem programas de música e teatro ao ar livre, à noite, porque o horário de verão permite que se tenha luz do dia até as 21-22 horas, convites para festas realizadas nos jardins de casa, encontros nos decks, regados a vinho californiano,  abundam, ocupando as tardes dos fins de semana ao crepúsculo.  O gosto do verão é melancia.  Mas também cereja e cachorro-quente. Junho ainda é um mês agradável, mas mosquitos e outros insetos começam a dominar o ambiente. Essa manifestação de pragas voadoras em enorme quantidade foi uma das grandes surpresas que tive nos primeiros anos.  Como as flores aparecendo todas juntas, de uma vez, cobrindo árvores e arbustos, os insetos também “brotam” juntos, aos montes.  Não é à toa que leis da saúde pública requerem que toda casa tenha tela nas janelas. Sem tela, casas não podem ser vendidas, nem alugadas.  A estação dos furacões entra em curso, mas em geral eles só chegam à costa a partir de agosto.  Chove bastante no verão. Chove muito. Depois, o ar fica pesado e não leve como no Rio de Janeiro, porque a umidade não desaparece.   O verde nas árvores já deixou para trás o frescor verde claro, cor de alface da primavera, as folhas adquirem tons escuros e as árvores têm a copa cheia para a sombra profunda. E o canto das cigarras acalenta o crepúsculo dos longos dias de julho e agosto. Lá e cá, o verão é a estação de que menos gosto.

Horas de lazer, s/d

Lynn Renée Sanguedolce (EUA, contemporânea)

óleo sobre tela,  115 x100 cm

www.lynnrenee.com

O feriado de 4 de julho  marca o meio da estação mesmo que este aconteça na 3ª semana do verão oficial.  Isso porque assim como aqui, o verão é ritmado pelo calendário escolar. E no início de julho os alunos já estiveram de férias pelas últimas seis semanas.  Em julho começa a época das hortênsias no jardins e nos estados do Mid-Atlantic – costa leste central dos EUA.  Essas flores foram para mim, uma surpresa. Eu sempre as associara à estrada Teresópolis-Petrópolis, mil vezes percorrida nos verões da minha infância e juventude, caminho emoldurado por quilômetros de abundantes flores de hortênsias.  Que ironia, só vim a ter arranjos hortênsias em vasos com água, quando as cultivei num jardim em outro país, e fica lindo, como aprendi com Martha Stewart.  Elas, assim como a comemoração do dia da independência, simbolizam o meio do verão.  Por isso mesmo as festividades do 4 de julho são simultaneamente alegres e nostálgicas.  O dia da independência é comemorado ao ar livre, onde quer que você esteja.   Não há 4 de julho sem piquenique, sem fogos de artifício, sem família e amigos reunidos, sem festa para comemorar, por mais abafado e quente que o dia se mostre. Daí por diante, sobram praticamente só mais seis semanas de verão.  A última quinzena de agosto já é marcada pela correria da preparação para o ano letivo que começa próximo ao feriado nacional: o Dia do Trabalho, a primeira segunda-feira de setembro.

Folguedo de verão,  s/d

Lucius Rossi (Itália, 1846-1913)

óleo sobre tela , 60 x 52 cm

Christie’s Auction House, 1999

Se o jardim recebeu sol suficiente, o final do verão é repleto de alegrias culinárias. Em geral colhe-se muito mais do que se consome.  Começa então a tradição de final de verão: as conservas.  Mesmo hoje, quando se encontra de tudo nos supermercados locais, até nas menores cidades, a tradição da conserva em vidro, consume donas de casa, mesmo as que trabalham fora, advogadas, economistas, empresárias.  São centenas de receitas familiares que atravessaram gerações para a conserva de legumes e frutas, originalmente mantidas para os dias de inverno. Pepinos, que quase todo mundo planta, são transformados em picles, assim como cenouras, couve-flor, até mesmo a couve de Bruxelas. As partes brancas das melancias também são transformadas em um dos mais deliciosos picles que conheço.  Melancias são frutas comuns do verão americano.  O final de verão é a época de pêssegos e por isso inicia-se a estação dos deliciosos “cobblers”. O de pêssego é o meu favorito mas à medida que as frutas que dão em árvores começam a ser colhidas em abundância, essa sobremesa, feita de frutas e migalhas, açúcar e canela, aparece de todos os jeitos e formas.  E os escritórios se enchem de cobblers trazidos pelos empregados.  Aliás essa é uma característica americana que quase não vejo aqui: à noite as pessoas cozinham bolos, tortas, receitas especiais e levam receita inteira, extra, para dividir com os colegas de trabalho no dia seguinte. Isso aconteceu em todos, absolutamente todos os lugares onde trabalhei.  E, não há distinção social de quem traz as guloseimas, pode ser a pessoa de menor qualificação ou o dono/diretor/executivo da área.   Bolos de frutas  e cobblers estão entre os mais levados por quase todos nessa época do ano, porque os jardins produzem mais do que se pode consumir.

No pomar, 1891

Edmund Charles Tarbell (EUA, 1862-1938)

Óleo sobre tela, 154 x 166cm

Terra Foundation for American Art,

Daniel J. Terra Collection, Chicago, Illinois

O ritmo da vida está totalmente submetido às estações do ano.  E acho que é disso que sinto falta. Em meados de setembro, os dias já têm o ar um pouco mais frio. Começa a estação do futebol americano.  Começa a estação dos piqueniques antes do jogo. Mas, pelo menos uma vez por dia, há um ventinho que quebra a monotonia do calor abafado.  É o outono se anunciando, de longe minha estação favorita, a mais colorida do ano.  Árvores trocam de cor e suas copas vão do amarelo claro ao escarlate antes das folhas caírem.  Os jardins explodem numa grande palheta colorida com margaridões e crisântemos, plantados ou comprados.  Esses “mums” – crisântemo [chirsantemum] — aparecem nos jardins e dentro das casas.  As últimas begônias resistem e as samambaias de jardim já voltam ao seu período dormente, desaparecendo da paisagem. Assim como a primavera, o outono é de muito trabalho:  tirar as folhas secas do chão e colocá-las em montes massivos no meio fio para a cidade vir pegar as pilhas e pilhas de folhas para o composto da cidade.  Só folhas.  Esses caminhões aceitam só folhas, eles são equipados com um aspirador gigante.  E uma população enorme de 1.000.000 de jardins obedece, civilmente, aos pedidos do governo e só folhas são colocadas no meio fio: nem galhos de árvores  podadas, nem um pouquinho de lixo… Chama-se responsabilidade civil.  Sim, tenho saudades disso, dessa organização, em que ninguém se acha no direito de ter mais direitos do que outros.  Durante este período também se planta bulbos no jardim: narcisos, tulipas e outros bulbos.  No outono o solo ainda está macio  para se plantar essas flores  que precisam passar algum tempo no solo congelado do inverno para poderem florescer na primavera.  Esta é um atividade que requer não só força física como bom planejamento e a habilidade de se imaginar o conjunto da obra daí a seis meses.  Garanto: é sempre uma suspresa ver as flores na primavera seguinte.

Folhas de outono, 1856

John Everett Millais (Inglaterra, 1829-1896)

óleo sobre tela, 95 cm x  75 cm

City Art Galleries, Manchester

O outono traz outra delícia: as feiras rurais.  Cada estado tem uma feira rural.  São eventos gigantescos, porque são estaduais.   Produtores de todo o estado participam nessa semana de festas da colheita.  Há parques de diversões temporários, competições de bois, de coelhos, da melhor geleia.  Há pequenos rodeios. É uma festa só, única, de dez dias.  As escolas mandam seus alunos para que todos sintam o gosto e o prazer da vida rural.  Há shows de música country, moderados, nada de alto falantes com decibéis de ensurdecer os vizinhos.  Muita música e muita dança. Barraquinhas de comidas típicas do interior assim como acontece nas nossas festas juninas – que no Brasil também são a celebração do outono, das colheitas. Montanha russa, trem fantasma, roda gigante, algodão doce, maçã caramelizada no espeto, são alguns dos prazeres gentis desses dias encantados cujo frio de 10 a 14º C durante o dia contrasta com as noites de zero grau. Mas os céus do outono têm um azul de dar inveja: profundo, límpido e sempre sem nuvens.   Sim, o outono é mágico.  Fechando outubro há a festa das crianças, e realmente só as crianças participam de Halloween.  Sim todo mundo compra bala para dar às crianças fantasiadas que batem à porta.  Em geral não se celebra Halloween depois dos 12 ou 13 anos.  Quando um adolescente desses aparece na nossa porta, nem sempre é bem recebido.  Entende-se que, assim como Papai Noel, há coisas que só se faz ou se acredita em uma tenra idade.

Grande ocasião, s/d

Clare Atwood (Inglaterra, 1866-1962)

óleo sobre tela

Nas cidades também é o outono que traz os grandes espetáculos, as peças de teatro, os concertos, os musicais. É “a estação”, como se diz, quando começamos a nos acostumar a viver mais dentro de quatro paredes do que ao ar livre.  Festas e reuniões abundam. De repente os amigos convidam para jantares, coquetéis,  que se concentram nas cozinhas e nas salas ao redor.  Assim será através do inverno, quando finalmente a lareira é acesa ritual que dependendo do frio vai até fevereiro.  Vez por outra no céu vemos  patos voando em grupos  para o sul.  Não só vemos.  Podemos muitas vezes ouvi-los, vai depender  do silêncio à nossa volta. Desse período de resfriamento do ar, do solo e de frio verdadeiro tenho saudades.  O frio é facilmente combatido.  Todo lugar é aquecido.  Todos os meios de transporte também.  Tenho saudades da brisa fria de encontro à pele, enquanto se anda até o teatro, ao show, à casa de um amigo. Muitas saudades porque é o período mais feliz e alegre do ano.

O primeiro Thanksgiving, 1912-1915

Jean Leon Gerome Ferris (EUA, 1863-1930)

Óleo sobre tela

Coleção Particular

Thanksgiving, um feriado que estamos querendo importar, numa das nossas maiores sandices imitativas. É um feriado tipicamente americano com sua própria história, toda americana, e simbolismo único.  Ninguém tenta reinventar essa comemoração.  Ela é centrada em uma refeição, composta sempre dos seguintes itens obrigatórios: peru, presunto, batatas doce, vagens, milho, torta de abóbora, geleia de Cranberry, melado.  Você pode adicionar alguns elementos a essa refeição, mas não pode subtrair, ou sua família pensará que não teve Thanksgiving. É uma refeição no meio da tarde da última quinta-feira de novembro.  Depois desse farto almoço ajantarado todos se colocam a postos para ver um grande jogo de futebol americano!  Esta é  a única data em que toda a família se reúne num único teto, o que eles chamam de família extensa, ou seja, mais do que pai, mãe e filhos.  E a tradição é ter sempre uma pessoa de fora, de preferência um estrangeiro, porque esta festa surgiu para relembrar como os índios convidaram peregrinos estrangeiros, que se tornariam mais tarde americanos, para uma refeição em comum.  Ocorre sempre nessa data e dá início às comemorações natalinas.

Patinando no gelo, 1885

Hanry Sandham (Canadá, 1842-1910)

Gravura baseada no óleo do pintor

Coleção Particular

Quando dezembro chega o jardim está nu. Todos os milhões de folhas do jardim já caíram e as árvores voltaram a ter aquele aspecto desolador, esqueletos escuros e sem vida.  A natureza entrou em recesso. Arbustos floridos que dão tanta alegria na primavera e verão também perdem suas folhas: forsythias, hortênsias,  azaleias se transformam em meros galhos sem cor.  Para  dar alento nos concentramos nas poucas “ilhas” verdes: cedrinhos, pinheiros, e na minha casa na Carolina do Norte muitas aucubas – arbustos de folhas verde e amarelo, que dão frutinhos vermelhos comidos pelos poucos pássaros que enfrentam o inverno [Louro-do-Japão ou Louro-manchado (Aucuba japonica) é seu nome]. Mas o Natal dá a justificativa de se alegrar o exterior da casa.  Não só as guirlandas, círculo de verde nas portas, feitas justamente de galhos dessas plantas que não perdem as folhas, como guirlandas que decoram o exterior das casas, e as árvores que perderam suas folhas são decoradas com centenas de luzinhas brancas que iluminam um jardim que sem elas ficaria triste.  E assim passa o mês de dezembro. O Natal, celebrado no dia 25 de dezembro, é uma festa íntima, só para o núcleo familiar: pai, mãe, filhos e em geral se permanece mais ou menos dentro de casa até a chegada do ano novo.  Nos estados onde morei, no Mid-Atlantic, em geral não se tem um Natal com neve.  Mas é frio, faz frio. Os dias mais frios do ano acontecem em janeiro e fevereiro, quando o próprio solo já não retém mais calor.

Noite de inverno, 2006

Brian Larsen (EUA, 1975)

glicée gravura

Mas o inverno traz outros pequenos rituais. É hora de se aprender a patinar no lago gelado, — ele gela mesmo que não haja neve no chão.  Se há neve, então é uma festa.  Atrapalha, é verdade, mas também é muito gostoso ter a vida atropelada por um monte de neve, pelo silêncio que ela traz mesmo às ruas mais movimentadas.  Não há quem não tenha sorrisos quando vê os primeiros flocos de neve.  A neve é sempre seguida de um dia de sol brilhante e céu azul.  Mas frio, mesmo com sol, o frio é cortante.  O inverno é também a época  quando prestamos mais atenção às atividades domésticas de família, atividades de dentro de casa: jogos, leitura, visitas.  As árvores estão sem folhas, a grama morreu, a natureza se  despiu  mas o mundo continua: as escolas têm aula, as pessoas trabalham, os dias são curtos. Não chove.  Chuva é coisa de primavera e verão.  E só nos resta esperar pelas delicadas camélias nos arbustos, em fevereiro, colorindo levemente o final do inverno.

A natureza determina o ritmo de vida, os rituais do dia a dia.  Para esta carioca, acostumada a verões de seis meses e a não-verões de outros seis, a descoberta das estações do ano foi deslumbrante.  Viciante.  Cada mês tem seus segredos, suas necessidades. Em cada mês sente-se o passar do tempo e tenta-se aproveitar ao máximo as quatro semanas que levarão a outros dias, mais ou menos quentes, mais ou menos chuvosos, mas sempre encantadores.  Sim, é disso que sinto falta, do movimento da natureza, perceptível, sentido na pele e no meio ambiente. Não sinto falta de mais nada.  Gosto de estar ciente da passagem do tempo.  Alerta para as mudanças que acontecem a cada semana.  Eu me sinto mais viva!

——

Nota: Morei nos seguintes estados: Maryland, Washington DC, Virgínia e Carolina do Norte.

© Ladyce West, Rio de Janeiro, 2012





O casamento de meu tio — texto das memórias de Anna Ribeiro de Goes Bittencourt (1843-1930)

11 05 2012

Despedida dos noivos, 1958

Antônio Gonçalves Gomide (Brasil, 1895-1967)

aquarela, 36 x 52cm

Coleção Particular

Hoje vou dar uma idéia das razões do meu gosto pela leitura de memórias ou diários.  É neles que temos uma visão mais pessoal do que era a vida na época em que essas pessoas viviam.  As memórias de Anna Ribeiro de Goes Bittencourt (1843-1930) são uma maneira deliciosa de se adentrar pelo fim do século XIX no Brasil.  Vejamos a descrição desse casamento:

Capítulo VI — Tomo II

Pouco depois realizou-se o casamento de meu tio Manoel José no Sítio, fazenda de D. Ziza. Minha mãe apesar de mostrar-se já conciliada com a sociedade, não foi, não sei porque, ao ato a que só assistiu meu pai.  Não se recusou, porém, a ir esperar os noivos na residência de meu tio.  Uma irmã da noiva, D. Guilhermina, foi preparar a casa para a recepção, não só dos noivos, como dos parentes que os precediam.  Foi uma das festas mais movimentadas a que na minha infância assisti. A chegada foi animadíssima, tornando-a ruidosa o espocar de numerosos foguetes. A família do Lisboa e outros amigos acompanhavam os noivos. Os homens vinham a cavalo, bem como a noiva e Sinfronia, filha do Lisboa. Ostentava-se então certo luxo não só na qualidade dos cavalos como nos arreios e trajes cavaleiros, o que tornava mui luzida a cavalgada.

Vinham em carro de boi a mulher do Lisboa, sua segunda filha e as meninas do meu tio Manoel José. As filhas do Lisboa e um seu irmão aspirante a padre cantavam e tocavam flauta e rabeca. Um senhor do Catu cantava e tocava violão. Eram as modinhas brasileiras então muito apreciadas: foi a música a principal diversão daquela festa familiar. Logo após a agitação da chegada, iniciou-se o pequeno concerto musical. Sinfronia não era dotada da melhor voz, o que era compensado pela graça e pela boa vontade com que acedia aos pedidos dos circunstantes, embora fossem às vezes bem exigentes. A outra tinha bela voz, mas se fazia muito rogar, o que, em certas ocasiões, aborreceu até o próprio Sr. Lisboa, vaidoso de exibir as prendas das filhas.

Seguiu-se o jantar ainda com a luz do dia, e pareceu-me muito mais lauto do que aqueles a que tinha eu até então assistido. Havia até um luxo relativo na confecção dos pratos, enfeitados com papéis recortados e fitas. Neste e em outros jantares, lembro-me de ver as senhoras modificarem o arranjo dos pratos para introduzir mais alguns que julgavam lisonjear  o paladar dos comensais e merecer elogios, manifestados ingenuamente. Esta refeição, sem cerimonial, foi bem aproveitada por estômagos sãos, como costumam ser os dos homens de trabalho. Logo depois da sopa, fez-se o primeiro brinde, não muito palavroso, como os que se seguiram, sem dúvida por um tácito acordo: era preciso satisfazer as necessidades do estômago. O primeiro brinde fora feito pelo noivo, que declarou atender a pedido da noiva: solicitava a alguns parentes com os quais tivera atritos para ser lançado um véu sobre tudo aquilo.

Guiomar, já muito simpatizada por toda família, exigira do noivo convites para aqueles parentes com o intuito de uma conciliação. Estes não se negaram ao convite porque tal recusa seria olhada como uma grosseria, e creio mesmo que estariam desejosos de voltar à antiga harmonia familiar. Houve abraços comovidos, tocaram-se os copos entre os conciliados, e alguns, trançando os braços que empulhavam as taças, esvaziavam-nas ao mesmo tempo. Tudo isso simbolizava a amizade duradoura, o que não evitava que esta fosse, tempos depois, alterada. Esta bela qualidade de Guiomar, o empenho de harmonizar os parentes do marido, jamais se desmentiu.

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Bolo de noiva, 1943

Lula Cardoso Ayres (Brasil, 1910-1987)

aquarela, 49 x 71 cm

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Voltemos ao jantar de que tratávamos. Após o brinde no noivo, seguiram-se outros, todos breves. Como já disse, creio que por um tácito acordo exigido pelos estômagos, nenhum dos convivas se estendia muito nas saúdes ao princípio do jantar. Depois, levantaram-se todos para ser arranjada a mesa dos doces. A este arranjo, presidiu Sinfronia, auxiliada pelas outras senhoras.  O Lisboa tinha parentas num convento. Nessas casa religiosas é que eram confeccionados os melhores doces, apreciados não só pelo sabor como pela beleza dos enfeites – ramos de flores e frutos de alcorce e papel, trabalhos na verdade delicadíssimos. Sinfronia recebia presentes que lhe serviam de modela, pedia receita e, muito curiosa, como então se dizia, tornou-se perita nesses trabalhos, o que lhe valia elogios do seguinte teor: “nos conventos não se faz melhor!”  A mesa, muito larga, ficou repleta. Seu aspecto vistoso e florido muito agradou a todos segundo os comentários que ouvi.

Entre os convidados, havia lavradores e agregados que mereciam a estima do proprietário para ter lugar à sua mesa. Havia diferença entre o lavrador e o agregado. O lavrador era o que, possuindo escravos e carros, tinha meios de plantar canas e dava lucro ao senhor de engenho, que lhe outorgava certas garantias; o agregado era sempre gente pobre que trabalhava com seu braço, para si e sua família, e não pagava renda. O proprietário tinha direito de exigir dele algum serviço, o que raras vezes sucedia, pois todo o trabalho era feito pelo escravo. Alguns desses agregados, que se distinguiam por seu caráter ou serviços prestados, eram convidados e tratados com atenção.

Houve muitos brindes. Era de praxe que todos os recebessem. Seria uma desatenção não fazer uma saúde a um qualquer, que ficaria triste, julgando-se desconsiderado. Lembro-me de ver em jantares subsequentes, algumas senhoras segredarem ao cavalheiro mais próximo: “faça uma saúde a fulano; olhe que ele ainda não foi lembrado.” Alguns homens do povo mais desembaraçados, abalançavam-se a levantar brindes em português estropiado e frases disparatadas, o que às vezes era comentado, porém de modo que não fosse percebido pelo autor do brinde, porque o dono da casa bem como os parentes empenhavam-se em que todos os hóspedes saíssem satisfeitos, sem o menor vislumbre de queixa. Terminada a mesa, repetiu-se o pequeno concerto musical que tanto havia agradado a todos. Aquela festa durou dois dias, e até meu pai, que era um dos primeiros a retirar-se, não o fez desta vez. Ele era doido por música, principalmente por modinhas.

Em: Longos Serões do Campo; infância e juventude, Anna Ribeiro de Goes Bittencourt (1843-1930), volume II, Rio de Janeiro, Nova Fronteira:1992, pp 57-8





A vida como experimento: memórias de família

30 04 2012

Hoje seria o aniversário de meu irmão mais novo.  Era sempre festa, porque 30 de abril é sempre véspera de feriado nacional.  Dizem que não há dor mais cruel do que aquela de pais que perdem seus filhos.  Mas posso garantir que a saudade não acaba quando se perde um irmão caçula, de repente, sem aviso.   Eu era sete anos mais velha de modo que me lembro bem de seu nascimento.  Com meu outro irmão, o do meio (sou a mais velha) é diferente: não consigo me lembrar da vida sem ele, já que há 3 anos e meio de diferença entre nós.  Tenho vagas lembranças ajudadas, sem dúvida, por fotos antigas mas a vida familiar sempre o incluiu.

A cada ano que passa procuro achar uma maneira diferente de me lembrar de Marcus.  No primeiro ano mandei rezar uma missa.  Fui sozinha.  Não convidei ninguém.  Não queria impor nada a parentes ou amigos, não queria que ninguém se sentisse na obrigação de prestar apoio.  Havia algo de revolta em mim, uma revolta generalizada, contra o mundo inteiro.

Hoje vou me lembrar de Marcus de outra maneira.  Tem a ver com drosófilas.  Sim, drosófilas, aquelas mosquinhas de frutas, de bananas…  Talvez eu tenha que dar uma ideia da nossa família antes disso, um pequeno esboço.

Não cresci numa família muito normal… Quem cresceu?  A nossa diferença eram os nossos interesses…  Quaisquer que eles fossem éramos incentivados a desenvolvê-los.  É claro, desde que fossem honestos, não estivessem relacionados a vícios e a projetos fora da lei.

Desde pequeno Marcus gostava das ciências.  Não dava para saber, em sua tenra idade,  que se tornaria um engenheiro de estruturas, um matemático [dedicado à matemática pura] e mais tarde um programador de computação, porque seus interesses variavam das exatas às naturais.  Incentivados por meu pai, que era um cientista, um químico e físico, um verdadeiro Professor Pardal, que inventava de tudo, que acreditava no experimento como meio de entender o universo, passamos nossa infância dedicados às mais variadas experiências práticas.  Essa que vos fala, hoje uma historiadora, que como adulta esteve sempre ligada às artes visuais, literárias e à história, passou muitas horas montando navios de plástico – quando pensava em ser engenheira naval; olhando estrelas com mapas celestiais – quando pensava em ser astrônoma;  montando protótipos de moléculas de carbono com biscoitos Maria e Maisena – quando estava de amores com a química orgânica.   Ilustro assim a nossa infância, para melhor situar a Fazenda de Drosófilas.

Marcus tinha entre sete e oito anos quando descobriu, por causa dos irmãos mais velhos e de seus pais, a genética.  A nossa família já se prestava a esse estudo, porque conseguimos ser tão diferentes uns dos outros, na aparência, digo.  Tenho cabelos louros escuros acinzentados e olhos azuis.  Meus dois irmãos nasceram com cabelos bem escuros e olhos negros.  A genética era de fácil compreensão para nós.  Mas Marcus precisava provar que assim era de fato.  E não havia nada mais fácil para isso do que ter uma Fazenda de Drosófilas.

As drosófilas, vulgarmente conhecidas como moscas de fruta, são frequentemente utilizadas para demonstrar a genética porque elas:

1)      Se reproduzem com rapidez e facilidade.

2)      Podem ser diferenciadas pela cor dos olhos.

De um antigo aquário, Marcus fez um terrário, ou seja, colocou terra no fundo e uma fazenda finíssima, como um micro filó, para sua cobertura, muito bem atada a toda volta.  As drosófilas ficavam lá dentro.  E é claro que ele colocava frutas que iam apodrecendo para que essas mosquinhas ficassem felizes: casa e comida de graça…  Quem não ficaria?  Hospedaram-se ali e se reproduziram.  E Marcus separava as moscas de acordo com os olhos, passando-as para outros pequenos terrários. Todo prosa, ele voltava da escola e ia direto ver as moscas. Não me lembro exatamente do final desse experimento, só das consequências.

Moramos num país tropical.  Terra em que se plantando tudo dá.  E o solo do terrário, que havia sido simplesmente trazido do jardim, apresentava agora outros bichinhos, umas minhocas gorduchas, que não eram as que a gente conhecia.  Resolveu criá-las também.  Francamente, minha mãe deve ter arranjado um lugar no céu, porque aguentar como aguentou essas coisas todas acontecendo ali, na área de serviço, do lado de fora da cozinha, só com abnegação e muita paciência com os filhos e com o marido.  Porque a criação desses invertebrados testou sua paciência.  Para saber o que estava crescendo ali no seu terreno, no seu microsítio, na fazenda miniatura, Marcus colocou de tudo nessa terra.  Já não se importava mais com as mosquinhas…  Agora queria saber exatamente o ciclo de vida desses seres que haviam aparecido do nada… da terra do jardim… de óvulos que ele não vira e não havia reconhecido.  E numa época em que não se reciclava lixo orgânico, meu irmão conseguiu colocar naquela terra da fazenda ovos inteiros, sobras de legumes, pó de café, pedaços de frutas, folhas de mate, de chá; tudo que fosse orgânico era misturado ali naquele mundo.  Gênesis ao vivo e a cores.

Semanas se passaram.  Talvez meses.  O período da engorda foi grande.  Tudo orquestrado por Marcus, com assistência técnica de papai, que a essa altura já havia comprado alguns livros de classificação de invertebrados tropicais, de insetos comuns no Rio de Janeiro.  Os sebos e as livrarias sempre ficavam felizes quando papai fazia uma visita.  Essa é a verdade.  Tudo corria bem.  Novas minhoquinhas, novas lagartinhas sempre chegando ao mundo.  Podíamos ver tudo pelos  vidros do terrário, quando estes não estavam cobertos de limo.  Eu já não passava muito por perto.  Não tenho muita simpatia por invertebrados.  Mas me lembro bem do dia em que vovó, que morava conosco, gritou.  Escandalosamente.  Grito de vó escandaloso junta família, empregada, vizinhos, todo o bairro. Evidentemente o sítio andava pequeno para tantos habitantes e a criação do Marcus – sejam lá quais tenham sido os animaizinhos – achou por bem explorar outros terrenos, quando descobriram  — ou fizeram?  – uma pequena abertura na tela. Os bichinhos, que pelos gritos de vovó poderiam ter sido dinossauros, haviam se libertado daquela prisão e encontrado algumas dobras da roupa que saíra da corda, empilhada, limpinha, pronta para passar…

Foi o que bastou.

Talvez essa experiência o tenha levado às exatas.  Não sei.  Mas Marcus sempre se referia à Fazenda de Drosófilas com muito orgulho.  Não há melhor maneira de lembrá-lo.

Marcus e eu, foto de uma daquelas máquinas em Nova York.




Adeus, Stalin! Olá, Brasil!

31 01 2012

Bazar Kolkhozean, 1934

Alex Afanassievitch Coquelles (Rússia, 1880-1956)

óleo sobre tela

Adeus, Stalin! – memórias de uma menina que fugiu da guerra, de Irene Popow [Rio de Janeiro, Objetiva: 2011] vem a preencher uma lacuna na historiografia brasileira, de um assunto que se faz presente em outros países do Novo Mundo: a transmissão de relatos de imigrantes, relatos das guerras e da sobrevivência de milhares de pessoas que encontraram um lar nas Américas. A característica fundamental dos países do Novo Mundo é, em diferentes proporções, mas sempre constante, a variedade das levas de imigrantes além da pluralidade de influências culturais que formam uma nova e única cultura.

O texto de Irene Popow me levou de volta aos cursos de pós-graduação em História da Arte que fiz nos EUA, onde mais da metade dos professores que tive havia imigrado para lá, ainda crianças ou jovens, por terem se encontrado em campos de pessoas deslocadas depois da Segunda Guerra Mundial: judeus, russos, poloneses, franceses, italianos que criaram novas raízes nos EUA e lá se aliaram às melhores universidades do país.  Lendo Adeus, Stalin!  me dei conta dos poucos relatos de imigrantes vindos depois da Segunda Guerra, que fizeram do Brasil sua nova moradia e raiz de nova identidade. Mesmo entre os conhecidos de meus pais, lembro-me só de dois amigos deles com esse perfil: Sr. Ladislau, polonês e Sr. Eugênio, prussiano. Procurei por outras publicações, depois de ler esse livro e percebi que são poucos os relatos dedicados a contar as vidas desses novos brasileiros, antes e durante a guerra, como Irene Popow o faz.


A narrativa de Adeus Stalin! encanta.  Uma senhora que conseguiu guardar as percepções de criança, conta o dia a dia da vida na Ucrânia sob o domínio russo, com Stalin como figura máxima do país.  Seguimos a perseguição que este regime faz à sua família e o pular de cidade em cidade daqueles que eram considerados inimigos do estado.  Ficam claras para o leitor as vicissitudes encontradas e ultrapassadas pelos ucranianos e a persistência em se tentar manter uma vida normal no período de ocupação soviética do país.  Seus pais e tantos outros foram os grandes heróis, por conseguirem manter a unidade familiar intacta diante dos obstáculos. E ainda depois desses percalços somos testemunhas de como Irene e sua família, continuam a insistir numa vida “quase normal”,  indo à escola, fazendo os afazeres domésticos, mesmo depois da invasão alemã.  Temos o retrato da garra dos sobreviventes nos campos de trabalhos forçados, que conseguem manter um módico de dignidade mesmo que sujeitos às mãos inimigas.  E por fim, a lentidão e o viver nos campos de pessoas deslocadas, que perderam tudo e principalmente sua terra e sua nacionalidade: apátridas.

Não fosse a mão de dois interessantes personagens no destino dessa família não sabemos se teriam sobrevivido.  Depois de estarem no campo de pessoas deslocadas, foi o jeitinho do inglês Simon Bloomberg que, não tão ingênuo quanto os americanos seus aliados, percebeu o que aconteceria com a família se ela voltasse para território russo como os russos reivindicavam e conseguiu blefar os comunistas, trocando a nacionalidade da família da autora para polonesa.   Depois veio o jeitinho brasileiro, quando o cônsul Ubatuba, flexionou os limites das leis brasileiras de imigração: só estávamos aceitando engenheiros agrônomos.  A família de Popow só tinha um engenheiro de construção de minas de carvão, um engenheiro químico e um engenheiro geólogo.  Será que eles se importariam de entrar no Brasil como engenheiros agrônomos?

Irene Popow


Outra característica dessa narrativa é não tentar esconder, por simpatias políticas, as agruras da vida sob o comunismo de Stalin.  Assim como as condições de vida em Cuba são hoje ignoradas pelo nosso governo simpático a Fidel Castro, também as condições de vida sob o comunismo foram e são ignoradas pelo posicionamento de esquerda de muitos dos nossos intelectuais.  Irene Popow não faz desse livro uma narrativa de denúncia do regime comunista, mas conta, de maneira cativante e convincente, os sofrimentos passados por aqueles que viveram sob a presidência megalomaníaca de Stalin.

Digo que a narrativa é encantadora porque não é amarga.  São memórias.  São memórias de tempos muito difíceis cujo tempo ajudou a esvair o fel que deveria impregná-las.  O distanciamento de Irene Popow é distinto.  Diferente de muitos outros imigrantes ela teve a oportunidade de voltar à terra natal e descobrir que já não era mais, para ela, o mundo dela.  Era o mundo de seus pais.  Ela, sim, ganhara uma nova vida, uma nova identidade.  Como imigrantes eles conseguiram o seu quinhão.  Deram a volta por cima.  Sem alarde, sem vanglória.   E hoje, Irene Popow pode olhar para a Ucrânia de maneira distante, vê-la como outra terra, com muitas afinidades com o seu mundo, mas estrangeira. Belíssimo relato.





Vinheta de memória do pintor Tomás Santa Rosa — por Rachel Jardim

21 10 2011

Meninos, 1946

Tomás Santa Rosa ( Brasil, 1909-1956)

óleo sobre tela

Santa Rosa

Rachel Jardim

Santa Rosa morreu na Índia, um país onde a morte é considerada um acidente natural, ou apenas uma pequena pausa.  Ele, tão plantado na vida, buscando-a sempre, persistentemente, em tudo o que fazia.

Nesta ocasião apareceu o seu retrato nos jornais – rosto redondo, óculos, nenhum cabelo, cigarro constantemente pendurado na boca.  Era um tipo arredondado, sem arestas, sem ossos à vista.  Carregado de humanidade, alguém para se levar para casa, sentar no sofá e deixar falar.

Por essa época, literatura estava muito fora das minhas cogitações. Mas aquela estranha morte na Índia me deixou muitos dias abalada.  Não combinava com ele, tampouco parecia destinado a qualquer tipo de tragédia.  Sua integração à nossa paisagem era total.  Como pois aceitar aquela morte num mundo tão diferente?

Uma vez, ilustrou um conto meu.  A ilustração era muito melhor do que o conto.  Dera a ele uma dimensão que não tinha.  Quando vi a ilustração pensei: era assim que eu queria ter escrito.  Eu falava numa chuva translúcida.  Ele fez uma chuva translúcida.

Pelos idos de 40 fui parar, não sei como, no seu atelier.  Sentei-me num caixote.  Livros e quadros por toda parte.  Maquetes para cenários.  Ele nem desconfiava que eu era a moça, de quem, alguns anos antes, tinha ilustrado um conto.  Nada lhe disse.

Tirei da estante o Romancero Gitano, de Garcia Lorca.

— Que tipo lorquiano,  você é – disse-me.  – Por dentro e por fora.

Eu ri e concordei.  Leu-me uns versos do Romancero e depois me disse:

— Olhe, não quer posar para mim?  Faria de você um retrato lorquiano.

Olhei para os seus quadros na parede.  Não havia quase figuras.  Uma nítida atmosfera da época, a visão de beleza da época. Ninguém retratou tão bem o espírito a sensibilidade da década.

Pensei –  posarei.  E combinei aparecer no dia seguinte.  Não o vi mais.

Tão importante.  Tão humano, sua arte impregnada de vida.  Perdi o retrato, mas guardei sua imagem.  Lembro-me dele totalmente – voz, gestos, riso, modulações, terno, sapato.  Pouca gente permaneceu tanto dentro de mim.  Foi curto o instante, mas tão permanente.  Não pintou meu retrato, mas o dele pintou-se em mim.

Em: Os anos 40 de Rachel Jardim, Rio de Janeiro, José Olympio: 1973





Papa-livros, leitura para março: O Africano, de J. M. G. Le Clézio

28 02 2011

 

Meio-dia, s/d

Adrian Deckbar ( EUA, contemporânea)

Pastel,  100 x 130 cm

www.adriandeckbar.com

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Leitura para MARÇO,  discussão a partir do dia 21.

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SINOPSE

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Neste livro, o escritor françês Le Clézio (1940) tenta capturar a enigmática figura do pai através das lembranças de uma infância ao mesmo tempo cheia de deslumbramentos, libertações e dureza.   Ele nos leva para uma longa viagem à África, de 1928 até muito além do final da Segunda Grande Guerra.  A história é narrada por um homem que, pelas lembranças, refaz o caminho de seu pai durante as mais de duas décadas em que este trabalhou como médico militar nas colônias inglesas do continente africano. O livro também é uma tentativa do narrador de compreender sua infância dividida entre a Europa e a África e o difícil primeiro encontro com o pai aos oito anos de idade. A narrativa que, como outras do autor, mescla traços autobiográficos e ficcionais, une as emoções desse pai e desse filho num curto e profundo relato sobre a herança que invariavelmente nos é transmitida, como afirma o próprio autor na primeira frase do livro: “todo ser humano é resultado de pai e mãe”.

Editora Cosac & Naif

Ano: 2007

ISBN: 8575035894

Páginas – 136

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Nota: o autor recebeu o Prêmio Nobel de literatura em 2008.





Ser feliz é …

9 04 2009

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Ser feliz é …

6 04 2009

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