O brasileiro: Eça de Queirós, duas definições

29 07 2025

Recebe o afeto que se encerra, Ordem e Progresso

J. Carlos (Brasil, 1884-1950)

aquarela e nanquim sobre papel, 40 x 33 cm

 

 

“Porque, enfim, o que é o Brasileiro? É simplesmente a expansão do Português.”

 

Eça de Queirós

 

“O Brasileiro é o Português – dilatado pelo calor.”

 

Eça de Queirós

 

Ambas as definições do ‘brasileiro’ vêm da publicação, Uma campanha alegre, um apanhado de crônicas publicadas em dois tomos nos anos de 1890-1891.





Flash!

20 03 2025

Eça de Queiroz





Refeições literárias…

17 04 2023

DETALHE**

Os sentidos: toque, audição e paladar, c. 1620*

Jan Brueghel  (Flandres, 1568-1625)

óleo sobre tela, tamanho do original 176 x 264 cm

Museu do Prado

* acima temos um detalhe.  O original pertence a um par de quadros enormes, representando os cinco sentidos.

** Veja abaixo esta tela completa

 

Em abril de 2014 postei uma pergunta aos leitores: você se lembra de alguma refeição literária memorável?  O questionamento veio de um artigo que eu havia acabado de ler na revista Smithsonian daquele mês, onde a exposição fotográfica de Dinah Fried, Fictitious Dishes [Pratos fictícios] retratavam refeições descritas em conhecidas obras literárias. Naquele dia, próximo à Páscoa, me lembrei de uma refeição descrita por José de Alencar, no livro Senhora, um de meus livros favoritos quando jovem adolescente, que li e reli diversas vezes.  Nesta última semana tive a oportunidade de reler outro livro favorito da minha adolescência, A cidade e as Serras, de Eça de Queiroz, votado como livro do mês pelo grupo Encontros na Praça.  É claro  que tinha que passar para vocês a deliciosa primeira refeição no interior de Portugal  de Jacinto, recém-chegado de Paris.   Aqui vai para vocês esta refeição memorável, que é a porta de entrada para toda a segunda metade do livro, a vida de Jacinto, o citadino ao interior de seu país natal.

 

Na mesa, encostada ao muro denegrido, sulcado pelo fumo das candeias, sobre uma toalha de estopa, duas velas de sebo em castiçais de lata alumiavam grossos pratos de louça amarela, ladeados por colheres de estanho e por garfos de ferro. Os copos, de um vidro espesso, conservavam a sombra roxa do vinho que neles passara em fartos anos de fartas vindimas. A malga de barro, atestada de azeitonas pretas, contentaria Diógenes. Espetado na côdea de um imenso pão reluzia um imenso facalhão. E na cadeira senhorial reservada ao meu Príncipe, derradeira alfaia dos velhos Jacintos, de hirto espaldar de couro, com madeira roída de caruncho, a clina fugia em melenas pelos rasgões do assento puído. Uma formidável moça, de enormes peitos que lhe tremiam dentro das ramagens do lenço cruzado, ainda suada e esbraseada do calor da lareira, entrou esmagando o soalho, com uma terrina a fumegar. E o Melchior, que seguia erguendo a infusa do vinho, esperava que Suas Incelências lhe perdoassem porque faltara tempo para o caldinho apurar… Jacinto ocupou a sede ancestral — e durante momentos (de esgazeada ansiedade para o caseiro excelente) esfregou energicamente, com a ponta da toalha, o garfo negro, a fusca colher de estanho. 

Depois, desconfiado, provou o caldo, que era de galinha e recendia. Provou — e levantou para mim, seu camarada de misérias, uns olhos que brilharam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu, com espanto: — “Está bom!” Estava precioso: tinha fígado e tinha moela; o seu perfume enternecia; três vezes, fervorosamente, ataquei aquele caldo. — Também lá volto! — exclamava Jacinto com uma convicção imensa. — É que estou com uma fome… Santo Deus! Há anos que não sinto esta fome. Foi ele que rapou avaramente a sopeira. E já espreitava a porta, esperando a portadora dos pitéus, a rija moça de peitos trementes, que enfim surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado — e pousou sobre a mesa uma travessa a trasbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominava favas!… Tentou todavia uma garfada tímida — e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara, luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala. Depois um brado: — Ótimo!… Ah, destas favas, sim! Ó que fava! Que delícia! E por esta santa gula louvava a serra, a arte perfeita das mulheres palreiras que em baixo remexiam as panelas, o Melchior que presidia ao bródio…

— Deste arroz com fava nem em Paris, Melchior amigo! O homem ótimo sorria, inteiramente desanuviado: — Pois é cá a comidinha dos moços da quinta! E cada pratada, que até Suas Incelências se riam… Mas agora, aqui, o Sr. D. Jacinto, também vai engordar e enrijar! O bom caseiro sinceramente cria que, perdido nesses remotos Parises, o Senhor de Tormes, longe da fartura de Tormes, padecia fome e minguava… e o meu Príncipe, na verdade, parecia saciar uma velhíssima fome e uma longa saudade da abundância, rompendo assim, a cada travessa, em louvores mais copiosos. Diante do louro frango assado no espeto e da salada que ele apetecera na horta, agora temperada com um azeite da serra digno dos lábios de Platão, terminou por bradar: — “É divino!” Mas nada o entusiasmava como o vinho de Tormes, caindo de alto, da bojuda infusa verde — um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo. Mirando, à vela de sebo, o copo grosso que ele orlava de leve espuma rósea, o meu Príncipe, com um resplendor de otimismo na face, citou Virgílio: — Quo te carmina dicam, Rethica? Quem dignamente te cantará, vinho amável destas serras? Eu, que não gosto que me avantajem em saber clássico, espanejei logo também o meu Virgílio, louvando as doçuras da vida rural: — Hanc olim veteres vitam coluere Sabini… Assim viveram os velhos Sabinos. Assim Rómulo e Remo… Assim cresceu a valente Etrúria. Assim Roma se tornou a maravilha do mundo! E imóvel, com a mão agarrada à infusa, o Melchior arregalava para nós os olhos em infinito assombro e religiosa reverência.

Ah! Jantámos deliciosamente sob os auspícios do Melchior — que ainda depois, próvido e tutelar, nos forneceu o tabaco. E, como ante nós se alongava uma noite de monte, voltamos para as janelas desvidraçadas, na sala imensa, a contemplar o suntuoso céu de verão.Filosofamos então, com a pachorra e facúndia.”

 

Em: A cidade e as Serras, Eça de Queiroz.  Em domínio público.  Esta versão Amazon, Kindle.

 

Aqui a tela completa do início da postagens:

 

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/8/87/File-Bruegel_d._%C3%84.%2C_Jan_-The_Senses_of_Hearing%2C_Touch_and_Taste_-_1618.jpg





Curiosidade Literária

24 10 2022

Best Seller

Karn Dupree (EUA, contemporânea)

gravura

Eça de Queiroz passou a vida obcecado em se manter magro, muito magro. Tinha horror à gordura corporal.  Mas gostava e apreciava belas e suntuosas refeições.  De fato, a descrição de vastos repastos está presente em grande número de suas obras.  Acreditava que é pela comida que se descobre as características  de um povo.  Comia e bebia muito bem, mas, ao término de refeição substancial, saía para andar por horas e horas e cobrindo quilômetros para contrabalançar o que tinha ingerido.  Morreu jovem, aos cinquenta e cinco anos de câncer do estômago.





Viajar, texto de Eça de Queirós

1 02 2021

A estação de trem, 1862

William Powell Frith (GB, 1819 – 1909)

óleo sobre tela

Royal Holloway College, University of London

 

Viajar, texto de Eça de Queirós

 

Ia viajar!… Viajei. Trinta e quatro vezes, à, pressa, bufando, com todo o sangue na face, desfiz e refiz a mala. Onze vezes passei o dia, num vagão, envolto em poeirada e fumo, sufocado, a arquejar, a escorrer de suor, saltando em cada estação para sorver desesperadamente limonadas mornas que me escangalhavam a entranha. Catorze vezes subi derreadamente, atrás de um criado, a escadaria desconhecida de um hotel; e espalhei o olhar incerto por um quarto desconhecido; e estranhei uma cama desconhecida, donde me erguia, estremunhado, para pedir em línguas desconhecidas um café com leite que me sabia a fava, um banho de tina que me cheirava a lodo. Oito vezes travei bulhas abomináveis na rua com cocheiros que me espoliavam. Perdi uma chapeleira, quinze lenços, três ceroulas, e duas botas, uma branca, outra envernizada, ambas do pé direito. Em mais de trinta mesas redondas esperei tristonhamente que me chegasse o boeuf-à-la-mode, já frio, com molho coalhado – e que o copeiro me trouxesse a garrafa de Bordéus que eu provava e repelia com desditosa carantonha. Percorri, na fresca penumbra dos granitos e dos mármores, com pé respeitoso e abafado, vinte e nove catedrais. Trilhei molemente, com uma dor surda na nuca, em catorze museus, cento e quarenta salas revestidas até aos tetos de Cristos, heróis, santos, ninfas, princesas, batalhas, arquiteturas, verduras, nudezas, sombrias manchas de betume, tristezas das formas imóveis! E o dia mais doce foi quando em Veneza, onde chovia desabaladamente, encontrei um velho inglês de penca flamejante que habitara o Porto… Gastei seis mil francos Tinha viajado.

 

[Exemplo de Sucessão de fatos]

Em: Flor do Lácio, [antologia]  Cleófano Lopes de Oliveira, São Paulo, Saraiva: 1964; 7ª edição. (Explicação de textos e Guia de Composição Literária para uso dos cursos normais e secundário) p. 151.





“Jacinto”, texto de Eça de Queirós

16 07 2018

 

 

8547f88f72ecad7dc93a8994f80218bcFotografia de jovem desconhecido, século XIX.

 

Jacinto

 

Eça de Queirós ou Eça de Queiroz

 

Este delicioso Jacinto fizera então vinte e três anos, e era um soberbo moço em quem reaparecera a força dos velhos Jacintos rurais. Só pelo nariz, afilado, com narinas quase transparentes, duma mobilidade inquieta, como se andasse fariscando perfumes, pertencia às delicadezas do século XIX. O cabelo ainda se conservava, ao modo das eras rudes, crespo e quase lanígero; e o bigode, como o dum Celta. ca[ia em fios sedosos, que ele necessitava aparar e frisar. Todo o seu fato, as espessas gravatas de cetim escuro que uma pérola prendia, as luvas de anta branca, o verniz das botas, vinham de Londres em caixotes de cedro; e usava sempre ao peito uma flor, não natural, mas composta destramente pela sua ramalheteira com pétalas de flores dessemelhantes, cravo, azaléa, orquídea ou tulipa. fundidas numa mesma haste entre uma leve folhagem de funcho.”

 

[Exemplo de Retratos Descritivos]

Em: Flor do Lácio, [antologia]  Cleófano Lopes de Oliveira, São Paulo, Saraiva: 1964; 7ª edição. (Explicação de textos e Guia de Composição Literária para uso dos cursos normais e secundário) p. 74.





O arroz doce, texto de Eça de Queiroz

27 05 2015

 

 

Joseph Clark (British artist, 1834-1926) A Christmas Dole 1800sBonus de Natal

Joseph Clarke (Grã-Bretanha, 1834-1926)

óleo sobre tela, 90 x 120 cm

 

O arroz-doce

 

“Depois chegou a hora das luzes e do jantar. Eu encomendara pelo Grilo ao nosso magistral cozinheiro uma larga travessa de arroz-doce, com as iniciais de Jacinto e a data ditosa em canela, à moda amável da nossa meiga terra. E o meu Príncipe à mesa, percorrendo a lâmina de marfim onde no 202 se escreviam os pratos a lápis vermelho, louvou com fervor a ideia patriarcal:

-Arroz-doce! Está escrito com dois ss, mas não tem dúvida… Excelente lembrança! Há que tempos não como arroz-doce! Desde a morte da avó.

Mas quando o arroz-doce apareceu triunfalmente, que vexame! Era um prato monumental, de grande arte! O arroz, maciço, moldado em forma de pirâmide do Egito, emergia duma calda de cereja, e desaparecia sob os frutos secos que o revestiam até ao cimo onde se equilibrava uma coroa de Conde feita de chocolate e gomos de tangerina gelada! E as iniciais, a data, tão lindas e graves na canela ingênua, vinham traçadas nas bordas da travessa com violetas pralinadas! Repelimos, num mudo horror, o prato acanalhado. E Jacinto, erguendo o copo de Champanhe, murmurou como num funeral pagão:

Ad Manes, aos nossos mortos!”

 

Eça de Queiroz, A cidade e as serras

[Exemplo de Narrativa Descritiva]

 

Em: Flor do Lácio, [antologia]  Cleófano Lopes de Oliveira, São Paulo, Saraiva: 1964; 7ª edição. (Explicação de textos e Guia de Composição Literária para uso dos cursos normais e secundário) p. 194.

 

NOTA: Ad manes é a abreviação da expressão em latim Ad manes abiit, que significa: Aos mortos, aos que morreram.





Eça de Queiroz sobre um livro de contos

14 05 2015

 

 

Giuseppe Perissinotto (1881-1965) Sra lendoSenhora lendo, s.d.

Giuseppe Perissinotto (Itália,1881- Brasil,1965)

óleo sobre tela

 

 

“Um livro de contos é um livro ligeiro de emoções curtas: deve portanto ser leve, portátil, fácil de se levar na algibeira para debaixo de uma árvore, e confortável para se ter à cabeceira da cama. Não pode ter o formato dum relatório, que, sendo destinado em definitivo a embrulhar objetos, deve ter de antemão o tamanho cômodo do papel de embrulho; nem pode ter o volume dum calhamaço de erudição histórica, impresso com o fim de ornamentar uma biblioteca”

 

Eça de Queiroz





Minutos de sabedoria — Eça de Queiroz

26 08 2014

 

 

david emile joseph de NoterCozinheira na cozinha,  1861

David Emile Joseph de Noter (Bélgica, 1818-1892)

óleo sobre tela, 77 x 64 cm

Coleção Particular

 

 

“O homem põe tanto do seu caráter e da sua individualidade nas invenções da cozinha, como nas da arte.”

 

biografia-e-obras-de-eca-de-queirosEça de Queiroz