Almas no jardim, um conto de Marques Rebelo

23 11 2011

Almas no jardim

Marques Rebelo

Cercada por uma muralha de morros negros e tristes, silenciosa e limpa, a pequena praça fica num bairro distante, no fim de uma rua nova mas abandonada.  Tem dois mesquinhos repuxos ao gosto municipal, quatro tabuleiros ingleses de grama dum verde que o vento e o sol fustigam e queimam, e vários ficus, ostentando, tesos, figuras recortadas por tesouras de reduzida originalidade.  Tem duas pérgolas também, duas ridículas pérgulas de madeira pintada de branco, onde umas trepadeiras, que se abrem em agressivos cachos solferinos, se enroscam mais ou menos raquiticamente. Sob cada pérgula, um banco.  Não são incômodos, mas que fossem! não há bancos incômodos para os casais de namorados.

Nessa pequena praça, ouvindo a música medíocre dos repuxos , ora numa, ora noutra pérgula, diariamente, ao cair da tarde, eu me encontro com ela, com ela que é branca como uma açucena, que é mansa como uma sombra, que é doce como um favo, com ela cuja voz é uma fonte cantando e cujo olhar traz para mim o mesmo mistério do céu noturno.

Por esta hora, nesse bairro distante que o sol custa a deixar e cujo vento é qualquer coisa de extraordinariamente notável, a pequena praça é pouco frequentada. Raramente crianças vêm brincar nas retas ruazinhas de fino saibro, entre os quatro canteiros urbanos, em volta dos repuxos.  Para um casal apaixonado é uma solidão propícia, uma amável solidão.  Lá estamos todas as tardes, eu e ela, tecendo o delicado tecido das esperanças, frágil teia que não resiste ao menos sopro contrário.

— Você gosta de mim?

— Adoro!

— Se eu morresse…

— Bobo!

— Então eu não posso morrer?

— Não!

Sacudo os ombros:

— Pois morrerei.  Morrerás.  Morreremos.

Ela — que tem medo da morte! — treme:

— Não tem mais nada para dizer, não?

Tenho.  Tenho um mundo de coisas doces e ternas, ó miragens, ó sonhos, ó devaneios! E tenho um mundo de coisas graves também.  Coisas graves e sérias, mas que jamais sairão, jamais confessarei, ficarão para sempre dentro do meu peito inquieto, tubilhonantes, confusas — oh, extremamente dolorosamente confusas e opressoras! — porque tudo crestariam, pior que o vento da pequena praça, como um vento de fogo.

E ela talvez advinhe as minhas coisas graves e sérias.  Põe em mim os olhos cheios de amor:

— Amo-te com todos os mistérios da tua vida.

E é melhor assim.

Cai frequentes vezes, ela, num contemplativo mutismo, o queixo apoiado na mão e o braço apoiado no meu ombro.

— Em que está pensando? — pergunto.

— Em você.

— Ora!… Fala.

— Gosto mais de te ouvir.

Abre o amável sorriso de claros dentes, responde numa moleza:

— Adoro!…

E o amor é isto: se está triste, amo sua tristeza, se está alegre, amo a sua alegria; e há palavras que parecem sem sentido, mas que caem fundo no coração; e há silêncios que valem por todas as palavras; e ora é um sorriso que nos leva para o céu, ora é um baixar de olhos que nos traz o céu com mil estrelas.

Além de nós, uma vez por outra, um outro casal ocupa a pérgula fronteira.  Olham para nós, sorriem, compreendendo, e como nós desenrolam a eterna história dos corações.  Mas são casais intermitentes.  Constantes, constantes como o vento, somos nós.  Nós, os pardais e Liró.

Os pardais são inumeráveis — ciscam, chilreiam, voam, brigam, amam…  O guarda é um polícia municipal que deve andar pelos quarenta anos, mas a quem se pode dar muito mais.  Tem o porte muito pouco marcial (o pagamento anda sempre atrasado) e o andar de quem já não tem mais pernas.  Com o seu cinzento capacete colonial, escondendo um rosto avermelhado, gretado e melancólico, faz olho morto e complacente aos nossos beijos, aos nossos abraços demasiados.  Já que o vento não consente na primavera dos canteiros, que ao menos nos nossos corações — deve pensar ele — haja flores e outras manifestações primaveris.  Atira pedrinhas aos esquivos peixinhos vermelhos no tanque, peixinhos japoneses cuja cauda tem a transparência das medusas, fica horas e horas numa contemplação, não sei se estúpida ou poética, dos repuxos que não se cansam na sua música monótona, medíocre, inútil.  Com uma continência conivente e frouxa, cumprimenta-nos quando chegamos às quatro e quando saímos às sete, mais ou menos, hora em que a pequena praça começa a sofrer  a noturna invasão dos namorados do bairro.

Liró é o contraste do guarda.  Liró é alegre.  Liró  é brincalhão.  Liró é saltitante.  Mal apontamos, ele corre ao nosso encontro com os olhos transbordantes de simpatia.  Quando partimos, nos leva religiosamente até a esquina mais próxima.  Liró, sabemos, é realmente nosso amigo.  Tem o fraco difícil das verdadeiras e desinteressadas amizades.

Hoje não vimos Liró ( o nome foi posto por nós no primeiro dia que viemos à pequena praça).  Perguntamos ao guarda por ele.  Com voz surda, voz gasta, voz sem dentes, respondeu que não sabia.  Sumira desde a véspera., pouco depois de nos termos ido embora.

Ficamos tristes, inquietos (os pardais chilreavam insensíveis).  Se tiver sido apanhado pela carrocinha, combinamos, irei resgatá-lo no depósito público. Se tiver sido vítima de um automóvel — e ela ficou com os olhos úmidos — não voltaremos à pequena praça.  Porque Liró é a vida da pequena praça, convencemo-nos.  Toda a vida.

Em: Contos Reunidos, Marques Rebelo, Rio de Janeiro, José Olympio 1979, 2ª edição.

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Edi Dias da Cruz, pseudônimo: Marques Rebelo (RJ 1907-RJ 1973) jornalista, contista, cronista, novelista e romancista. Nasceu no Rio de Janeiro, mas mudou-se com a família para Barbacena em Minas Gerais. No início dos anos 20, ingressou na Faculdade de Medicina, que logo abandonou para se dedicar ao comércio.  Dedicou-se ao jornalismo profissional no início dos anos 20.  Escreveu seus primeiros contos por volta de 1927, quando fazia o Serviço Militar. Teve uma carreira brilhante como escritor e bastante produtiva.  Retratou como poucos a vida na cidade do Rio, no período que viveu as agitações de seu crescimento.





O jumento e o gelo, uma fábula de Leonardo da Vinci

8 11 2011

O jumento e o gelo, ilustração de Adriana Saviossi Mazza.

Mais uma fábula de Leonardo da Vinci.  Quem vem seguindo este blog  já sabe que além de grande pintor, arquiteto e cientista, o gênio da Renascença italiana também ficou conhecido por sua arte de conversar, de contar histórias.  Também escreveu e anotou fábulas e contos populares, lendas e anedotas, organizando-as em volumes diversos.   Algumas dessas lendas foram traduzidas por Bruno Nardini e publicadas no Brasil em 1972.  Transcrevo aqui a fábula O jumento e o gelo do volume de Leonardo chamado: Fábulas, Atl. 67 v.b.)  Em: Fábulas e lendas, Leonardo da Vinci, São Paulo, Círculo do Livro: 1972, p.34.

A fábula de hoje, tem uma moral conhecida nossa, sabedoria popular, vinda da tradição latina através de Portugal: Quem avisa amigo é.

O jumento e o gelo

Era uma vez um jumento que estava muito cansado e sentiu-se sem forças para ir até o estábulo.

Isso aconteceu no inverno, e fazia muito frio.  Todas as ruas estavam cobertas de gelo.

— Vou ficar aqui, disse o jumento, deitando-se no chão.

Um pequeno pardal voou para junto dele e murmurou-lhe ao ouvido:

— Jumento, você não está na rua, mas sim sobre um lago congelado.  Seja prudente!

O jumento estava cansado.  Não tomou conhecimento do aviso.  Bocejou e adormeceu.

O calor de seu corpo começou aos poucos a derreter o gelo, que, finalmente, estalou e partiu-se.

Ao ver-se dentro d’água, o jumento acordou aterrorizado.  E enquanto nadava na água gelada, arrependeu-se por não ter ouvido o conselho do pardal amigo.

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Nesse blog temos também:

A Raposa e a pega, de Leonardo da Vinci.





Leitura infantil: Lenda da noite

25 05 2011

Noite, ilustração de Anton Pieck (Holanda, 1895-1987).

Lenda da noite

                                              Theobaldo Miranda Santos

A filha da Cobra Grande casou-se e disse ao marido:

— Meu esposo, tenho muita vontado de ver a noite.

Minha mulher, só existe o dia, respondeu-lhe o marido.

— A noite existe sim!  Meu pai guarda-a no fundo das águas.  Mande seus criados buscá-la, suplicou a moça.

Os criados partiram ligeiros em busca da noite.  E transmitiram ao pai o pedido da filha.  A Cobra Grande então entregou-lhe um coco de tucumã, avisando-os:

— Muito cuidado com este coco!  Se ele for aberto, tudo escurecerá e todas as coisas se perderão.

Durante a viagem, os criados ouviram, dentro do coco, um barulhinho assim: xê-xê-xê, tem-tem-tem…  Curiosos, os criados abriram o coco e tudo escureceu.

A moça disse então ao marido: — Meu esposo, os criados soltaram a noite.  Agora tudo ficará escuro e todas as coisas se perderão.

O marido, espantado, perguntou-lhe: Que faremos!  Precisamos salvar o dia!

A filha da Cobra Grande, então, arrancou um fio de seus cabelos e disse:  Com este fio, vou separar o dia da noite.  Feche os olhos, meu esposo…  Agora pode abri-los e reparar.  A madrugada já vem chegando.  os pássaros cantam anunciando o sol.

Mas quando os criados voltaram, a filha da Cobra Grande os transformou em macacos, por sua infidelidade.  Assim nasceu a noite.  Assim surgiram os macacos.

Em: Leitura infantis:  2º livro,  para as escolas primárias, Theobaldo Miranda Santos, Rio de Janeiro, Agir: 1962





A lenda do chupim — 2º Livro de leituras infantis

11 04 2011

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A lenda do chupim

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O  chupim é um passarinho escuro também chamado de anu ou azulão.  Possui um canto suave e melodioso.  Mas tem o mau costume de por seus ovos nos ninhos dos outros pássaros.  Além disso come as sementes e destrói as plantações. 

O chupim era, porém um pássaro bonito e trabalhador.  Fazia o seu ninho com capricho e cuidava bem dos filhotes.  Mas houve uma guerra entre as aves, de que resultou queimarem o ninho do chupim.  Por milagre, o pássaro salvou-se, mas ficou todo preto, sapecado.  Lá se foram seus ovos e suas lindas penas!

Daí por diante o chupim ficou preguiçoso.  Não quis mais trabalhar.  Deixou de fazer o ninho.  E passou a por os ovos nos ninhos dos outros pássaros.  Por isso, não cria mais filhotes.  Quando o censuram por sua preguiça, diz que não faz ninhos porque tem medo de novo incêndio.  E assim vai levando a vida.  O passarinho mais explorado do chupim é o tico-tico.  Coitado!  até o chamam, por isso, de engana-tico…

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Em:  Leituras infantis, Theobaldo Miranda Santos, 2º livro, Rio de Janeiro, Agyr:1962





O macaco azul, conto de Aluisio de Azevedo

6 07 2010

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O MACACO AZUL

 
 

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                                                        Aluisio de Azevedo

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Ontem, mexendo nos meus papéis velhos, encontrei a seguinte carta:

 

Caro Senhor.

Escrevo estas palavras possuído do maior desespero. Cada vez menos esperança tenho de alcançar o meu sonho dourado. – O seu macaco azul não me sai um instante do pensamento! É horrível! Nem um verso!

Do amigo infeliz

 

                                                             PAULINO

 

Não parece um disparate este bilhete?

 

Pois não é. Ouçam o caso e verão!

 

Uma noite – isto vai há um bom par de anos – conversava eu com o Artur Barreiros no largo da Mãe do Bispo, a respeito dos últimos versos então publicados pelo conselheiro Otaviano Rosa, quando um sujeito de fraque cor de café com leite, veio a pouco e pouco, aproximando-se de nós e deixou-se ficar a pequena distância, com a mão no queixo, ouvindo atentamente o que conversávamos.

 

– O Otaviano, sentenciou o Barreiros, o Otaviano faz magníficos versos, lá isso ninguém lhe pode negar! mas, tem paciência! o Otaviano não é poeta!

 

Eu sustentava precisamente o contrário afiançando que o aplaudido Otaviano fazia maus versos, tendo aliás uma verdadeira alma de poeta, e poeta inspirado.

 

O Barreiros replicou, acumulando em abono da sua opinião uma infinidade de argumentos de que já me não lembro.

 

Eu trepliquei firme, citando os alexandrinos errados do conselheiro.

 

O Barreiros não se deu por vencido e exigiu que eu lhe apontasse alguém no Brasi4 que soubesse arquitetar alexandrinos melhor que S. Ex.ª.

 

Eu respondi com esta frase esmagadora:

 

– Quem? Tu!

 

E acrescentei, dando um piparote na aba do chapéu e segurando o meu contendor, com ambas as mãos pela gola do fraque:

 

– Queres que te fale com franqueza?… Isto de fazer versos inspirados e bem feitos; ou, por outra: isto de ser ou não ser poeta, depende única e exclusivamente de uma cousa muito simples…

 

– O que é?

 

É ter o segredo da poesia! Se o sujeito está senhor do segredo da poesia, faz, brincando, a quantidade de versos que entender, e todos bons, corretos, fáceis, harmoniosos; e, se o sujeito não tem o segredo, escusa de quebrar a cabeça pode ir cuidar de outro ofício, porque com as musas não arranjará nada que preste! Não és do meu parecer?

 

– Sim, nesse ponto estamos de pleno acordo, conveio o Barreiros. Tudo está em possuir o segredo!…

 

E, tomando uma expressão de orgulho concentrado, rematou, abaixando a cabeça e olhando-me por cima das lunetas: – Segredo que qualquer um de nós dois conhece melhor que as palmas da própria mão!…

 

– Segredo que eu me prezo de possuir, como até hoje ninguém o conseguiu, declarei convicto.

 

E com esta frase me despedi e separei-me do Artur. Ele tomou para os lados de Botafogo, onde morava, e eu desci pela rua Guarda Velha.

 

Mal dera sozinho alguns passos, o tal sujeito de fraque cor de café com leite aproximou-se de mim, tocou-me no ombro, e disse-me com suma delicadeza:

 

– Perdão, cavalheiro! Queria desculpar interrompê-lo. Sei que vai estranhar o que lhe vou dizer, mas…

 

– Estou às suas ordens. Pode falar.

 

– É que ainda há pouco quando o senhor conversava com o seu amigo, afirmou a respeito da poesia certa cousa que muito e muito me interessa… Desejo que me explique…

 

Bonito! pensei eu. É algum parente ou algum admirador do conselheiro Otaviano, que vem tomar-me uma satisfação. Bem feito! Quem me manda a mim ter a língua tão comprida?…

 

– Entremos aqui no jardim da fábrica, propôs o meu interlocutor; tomaremos um copo de cerveja enquanto o senhor far-me-á o obséquio de esclarecer o ponto em questão.

 

O tom destas palavras tranqüilizou-me em parte. Concordei e fomos assentar-nos em volta de uma mesinha de ferro, defronte de dois chopes, por baixo de um pequeno grupo de palmeiras.

 

– O senhor, principiou o sujeito, depois de tomar dois goles do seu copo, declarou ainda há pouco que possui o segredo da poesia… Não é verdade?

 

Eu olhei para ele muito sério, sem conseguir perceber onde diabo queria o homem chegar.

 

Não é verdade? insistiu com empenho. Nega que ainda há pouco declarou possuir o segredo dos poetas?

 

– Gracejo!… Foi puro gracejo de minha parte… respondi, sorrindo modestamente. Aquilo foi para mexer com o Barreiros, que – aqui para nós – na prosa é um purista, mas que a respeito de poesia, não sabe distinguir um alexandrino de um decassílabo. Tanto ele como eu nunca fizemos versos; creia!

 

– Ó senhor! por quem é não negue! fale com franqueza!

 

– Mas juro-lhe que estou confessando a verdade…

 

– Não seja egoísta!

 

E o homem chegou a sua cadeira para junto de mim e segurou-me uma das mãos.

 

– Diga! suplicou ele, diga por amor de Deus qual é o tal segredo; e conte que, desde esse momento, o senhor terá em mim o seu amigo mais reconhecido e devotado!

 

– Mas, meu caro senhor, juro-lhe que…

 

O tipo interrompeu-me, tapando-me a boca com a mão, e exclamou deveras comovido:

 

– Ah! Se o senhor soubesse; se o senhor pudesse imaginar quanto tenho até hoje sofrido por causa disto!

 

– Disto o quê? A poesia?

 

– É verdade! Desde que me entendo, procuro a todo o instante fazer versos!… Mas qual! em vão consumo nessa luta de todos os dias os meus melhores esforços e as minhas mais profundas concentrações!… É inútil! Todavia, creia, senhor, o meu maior desejo, toda a ambição de minha alma, foi sempre, como hoje ainda, compor alguns versos, poucos que fossem, fracos muito embora; mas, com um milhão de raios! que fossem versos! e que rimassem! e que estivessem metrificados! e que dissessem alguma cousa!

 

– E nunca até hoje o conseguiu?… interroguei sinceramente pasmo.

 

– Nunca! Nunca! Se o metro não sai mau, é a idéia que não presta; e se a idéia é mais ou menos aceitável, em vão procuro a rima! A rima não chega nem à mão de Deus Padre! Ah! tem sido uma campanha! uma campanha sem tréguas! Não me farto de ler os mestres; sei de cor o compêndio do Castilho; trago na algibeira o Dicionário de consoantes; e não consigo um soneto, uma estrofe, uma quadra! Foi por isso que pensei cá comigo: “Quem sabe se haverá algum mistério, algum segredo, nisto de fazer versos?… algum segredo, de cuja posse dependa em rigor a faculdade de ser poeta?…” Ah! e o que não daria eu para alcançar semelhante segredo?… Matutava nisto justamente, quando o senhor, conversando com o seu amigo, afirmou que o segredo existe com efeito, e melhor ainda, que o senhor o possui, podendo por conseguinte transmiti-lo adiante!

 

– Perdão! Perdão! O senhor está enganado, eu…

 

– Oh! não negue! Não negue por quem é! O senhor tem fechada na mão a minha felicidade! Se não quer que eu enlouqueça confie-me o segredo! Peço-lhe! Suplico-lhe! Dou-lhe em troca a minha vida, se a exige!

 

– Mas, meu Deus! o senhor está completamente iludido… Não existe semelhante cousa!… Juro-lhe que não existe!

 

– Não seja mau! Não insista em recusar um obséquio que lhe custa tão pouco e que vale tanto para mim! Bem sei que há de prezar muito o seu segredo mas dou-lhe minha palavra de honra que me conservarei digno dele até à morte! Vamos! declare! fale! diga logo o que é, ou nunca mais o largarei! nunca mais o deixarei tranqüilo! Diga ou serei eternamente a sua sombra!

 

– Ora esta! Como quer que lhe diga que não sei de semelhante segredo?!

 

– Não mo negue por tudo o que o seu coração mais ama neste mundo!

 

– O senhor tomou a nuvem por Juno! Não compreendeu o sentido de minhas palavras!

 

– O segredo! O segredo! O segredo!

 

Perdi a paciência. Ergui-me e exclamei disposto a fugir:

 

– Quer saber o que mais?! Vá para o diabo que o carregue!

 

– Espere, senhor! Espere! Ouça-me por amor de Deus!

 

– Não me aborreça. Ora bolas!

 

– Hei de persegui-lo até alcançar o segredo!

 

* * *

 

E, como de fato, o tal sujeito acompanhou-me logo com tamanha insistência, que eu, para ver-me livre dele, prometi-lhe afinal que lhe havia de revelar o mistério.

 

No dia seguinte já lá estava o demônio do homem defronte da minha casa e não me largava a porta.

 

Para o restaurante, para o trabalho, para o teatro, para toda a parte, acompanhava-me aquele implacável fraque cor de café com leite, a pedir-me o segredo por todos os modos, de viva voz, por escrito e até por mímica, de longe.

 

Eu vivia já nervoso, doente com aquela obsessão. Cheguei a pensar em queixar-me à polícia ou empreender uma viagem.

 

Ocorreu-me porém, uma idéia feliz, e mal a tive disse ao tipo que estava resolvido a confiar-lhe o segredo.

 

Ele quase perdeu os sentidos de tão contente que ficou. Marcou-me logo uma entrevista em lugar seguro; e, à hora marcada, lá estávamos os dois.

 

Então que é?… perguntou-me o monstro, esfregando as mãos.

 

– Uma cousa muito simples, segredei-lhe eu. Para qualquer pessoa fazer bons versos, seja quem for, basta-lhe o seguinte: – Não pensar no macaco azul. – Está satisfeito?

 

– Não pensar no…

 

– Macaco azul.

 

– Macaco azul? O que é macaco azul…?

 

– Pergunta a quem não lhe sabe responder ao certo. Imagine um grande símio azul ferrete, com as pernas e os braços bem compridos, os olhos pequeninos, os dentes muito brancos, e aí tem o senhor o que é o macaco azul.

 

– Mas que há de comum entre esse mono e a poesia?…

 

– Tudo, visto que, enquanto o senhor estiver com a idéia no macaco azul, não pode compor um verso!

 

– Mas eu nunca pensei em semelhante bicho!…

 

– Parece-lhe; é que às vezes a gente está com ele na cabeça e não dá por isso.

 

– Pois hoje mesmo vou fazer a experiência… Ora quero ver se desta vez…

 

– Faça e verá.

 

* * *

 

No dia seguinte, o pobre homem entrou-me pela casa como um raio. Vinha furioso.

 

– Agora, gritou ele, é que o diabo do bicho não me larga mesmo! É pegar eu na pena, e aí está o maldito a dar-me voltas no miolo!

 

– Tenha paciência! Espere alerta a ocasião em que ele não lhe venha à idéia e aproveite-a logo para escrever seus versos.

 

– Ora! Antes o senhor nunca me falasse no tal bicho! Assim, nem só continuo a não fazer versos, como ainda quebro a cabeça de ver se consigo não pensar no demônio do macaco!

 

* * *

 

E foi nestas circunstâncias que Paulino me escreveu aquela carta.

 

 

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Aluízio Tancredo Gonçalves de Azevedo, pseudônimos:  Vítor Leal, Pitibri, Gisoflê, Semicúpio dos Lampiões, Acropólio. ( MA, 1857 –  Argentina, 1913), escritor,  novelista, contista, dramaturgo, ensaísta, caricaturista, jornalista e diplomata, membro da Academia Brasileira de Letras.

Obras

A condessa Vesper, 1901  

A Flor de Lis, 1882  

A Mortalha de Alzira, 1891  

A Mulher    

A República, teatro 

Alma no Prego    

As Minas de Salomão    

Casa de Orates , teatro,

Casa de Pensão  1883

Demônios  1893  

Em Flagrante, teatro

Filomena Borges  1884  

Fluxo e Refluxo  1905  

Fritzmack  1889  

Girandola de amores  1900  

Lição para Maridos    

Livro de uma Sogra  1895  

Mattos, Malta ou Matta?  1885  

Memórias de um Condenado  1882  

Mistério da Tijuca  1882  

O Caboclo    

O Cortiço  1890  

O Coruja , novela,1890  

O Crime da Rua Fresca, 1896  

O Homem  1887  

O Inferno    

O Japão  1894  

O Mulato  1881  

O Pensador  1880  

O Touro Negro  1938  

Os Doudos  1879  

Os sonhadores    

Paula Matos  1890  

Pegadas  1897  

República, teatro   

Um Caso de Adultério, teatro  

Uma lágrima de Mulher , 1879  

Venenos que Curam, teatro 





A Marcelina, um conto de Arthur Azevedo

19 05 2010

 

Retrato de um janota, s/d

Giovanni Boldini ( Itália, 1842-1931)

Pastel sobre papel, 63 x 41 cm

The Norton Simon Art Foundation, Pasadena, Califórnia

A Marcelina

                                                         Arthur Azevedo

I

 

Naquele tempo ( não há necessidade de precisar a época) era o doutor Pires de Aguiar o melhor freguês da alfaiataria Raunier e uma das figuras obrigatórias da Rua do Ouvidor.  Como advogado diziam-no de uma competência um pouco duvidosa, o que aliás não obstava que ele ganhasse muito dinheiro, — mas como janota – força é confessá-lo – não havia rapaz tão elegante no Rio de Janeiro.

Rapaz?  Rapaz, sim:  o doutor Pires de Aguiar pertencia a essa privilegiada classe de solteirões que se conservam rapazes durante trinta anos. 

Quando lhe perguntavam a idade, respondia invariavelmente:  — Orço pelos quarenta, — e durante muito tempo não deu outra resposta.  Os seus contemporâneos de Academia atribuíam-lhe cinqüenta, e bem puxados.  As senhoras, essas não lhe davam mais que trinta e cinco.

Ele tinha um fraco pelas mulheres de teatro.  Consistia o seu grande luxo em ser publicamente o amante oficial de alguma atriz.  Não fazia questão de espírito nem de beleza; o indispensável é que ela ocupasse lugar saliente no palco, e fosse aplaudida e festejada pelo público.  Não era o amor, era a vaidade que o conduzia à nauseabunda Cythera dos bastidores.

Essas ligações depressa se desfaziam; duravam enquanto durava o brilho da estrela;  desde que esta começava a ofuscar-se, ele achava um pretexto para afastar-se dela e procurar imediatamente outra.  Como era inteligente e generoso – muito mais generosos que inteligente, — nunca ficava mal com o astro caído.

Algumas vezes o rompimento era provocado por elas – pelas de mais espírito – que facilmente se enfaravam de um indivíduo tão preocupado com a própria pessoa, e tão vaidoso das suas roupas.

Ivette Guilbert agradecendo ao público, 1894

Henri Toulouse-Lautrec (França, 1864-1901)

Óleo sobre papel fotográfico, 48 x 28 cm

Museu Toulouse Lautrec, Albi, França.

II

 

No tempo em que se passou a ação deste ligeiro conto, a nova conquista do doutor Pires de Aguiar era uma atriz portuguesa, a Clorinda, que viera de Lisboa apregoada pelas cem trombetas da réclame, e cuja estréia num dos nossos teatrinhos de opereta, o público esperava ansiosamente.

Uma hora antes de começar o espetáculo de estréia, entrou o advogado triunfantemente na caixa do teatro, levando pelo braço a sua nova amiga, elegantemente envolvida numa soberba capa de pelúcia.  Ia fazer-lhe entrega do camarim, cujo arranjo confiara liberalmente ao bom gosto e à perícia dos mais hábeis tapeceiros e estofadores.

Ela ficou  encantadíssima, e agradeceu com beijos quentes e sonoros a dedicada solicitude do amante. 

Que belo tapete felpudo!  que bonitos quadros!  que papel bem escolhido!  que delicioso divã!  que magnífico espelho de três faces, onde o seu vulto airoso se refletia três vezes por inteiro!  e que profusão de perfumarias!  e que precioso serviço de toilette!…

Nada faltava também sobre a mesinha da maquilagem, intensamente iluminada por dois bicos de gás. 

O doutor Pires de Aguiar tinha longa prática desses arranjos;  não podia esquecer-se de nenhum dos ingredientes necessários ao camarim de uma atriz que se respeita; o arsenal estava completo.

Dali a nada ouviu-se um – Dá licença?  — e o diretor de cena entrou no camarim acompanhado por uma mulher já idosa, muito pálida, de aspecto doentio, pobremente trajada.

— Dona Clorinda, aqui tem a sua costureira.

 

Mulher com espartilho, 1896

[Esboço para Elles]

Henri Toulouse-Lautrec ( França 1864-1901)

Óleo pastel sobre papel, colado em tela,  104 x 566 cm

Museu des Augustins,  Toulouse.

A estrela não conteve um gesto de despeito.  O diretor de cena compreendeu-o, e saiu imediatamente, para não entrar em explicações.

— É doente?  perguntou Clorinda à costureira.

— Não, senhora.  Tive uma doença grave, mas agora estou boa.  Saí há dois dias da Santa Casa.

Clorinda trocou um olhar com o advogado, e este disse-lhe, resfestelando-se no divã:

Ma chère, il faut se contenter de cette habilleuse; nous ne sommes pas en Europe.

Ele impingiu a frase em francês, para que na a entendesse a costureira, mas a verdade é que Clorinda também não percebeu, o que aliás não a impediu de responder: — Oui.

Despojada da mantilha e da bela capa de pelúcia Clorinda sentou-se entre os dois bicos de gás, e começou a pintar-se dizendo: — Vamos a isto!

E dirigindo-se à costureira:

— Sente-se.  Porque está de pé?

A pobre mulher sentou-se a medo, como receiosa de macular a palhinha dourada da cadeira com o seu miserável vestido de chita.

— Sabe que me disseram bonitas coisas a seu respeito?  Perguntou a atriz ao advogado, olhando-o pelo espelho.

— Deveras?

— Ao que me parece, você tem sido um gajo!

O doutor Pires de Aguiar teve um sorriso inexprimível.  Aquele gajo entrou-lhe pela vaidade a dentro como uma grã-cruz.

— Com que então a sua especialidade são as atrizes?

— Sou doido pelo teatro. 

Atriz no camarim, 1879

Edgar Degas ( França, 1834-1917)

Óleo sobre tela, 85 x 76 cm

The Norton Simon Museum, Pasadena, Califórnia.

— E há quanto tempo dura essa doidice?

— Há muito tempo.  Estou velho, bem vê.  Orço pelos quarenta.

— Ninguém lhe dará mais de trinta e cinco.

— São os seus olhos.

— Qual foi a sua primeira paixão no teatro?

— Ah, isso…

O advogado levantou o braço e estalou os dedos.

— … isso é pré-histórico; perde-se na noite dos tempos.

— Como se chamava essa colega?

— Chamava-se Marcelina.

— Que fim levou?

Ele encolheu os ombros.

— Sei lá!  provavelmente morreu.  Nunca mais ouvi falar dela.  Há mulheres que desaparecem como os passarinhos que não foram mortos a tiro nem engaiolados:  ninguém lhes vê os cadáveres.

— Gostou dela?

Foi talvez a paixão mais séria da minha vida.

— Nunca mais a procurou?

— Para que?

— Tinha talento?

— Talento?  Não.  Tinha habilidade.

E depois de uma pausa:

— Tinha habilidade e era muito boa rapariga.

— Brasileira?

— Sim.  Representava ingênuas em dramalhões de capa e espada, ali, no São Pedro de Alcântara.  Um dia – eu já a tinha deixado – um dia patearam-na ppor motivos que nada tinham que ver com a arte dramática;  ela desgostou-se;  andou mourejando pelas províncias, e afinal desapareceu.  Requiescat in pace!  

Entrou o cabeleireiro.  Enquanto Clorinda lhe confiou a cabeça, o doutor Pires de Aguiar divagou longamente sobre os méritos da Marcelina;  depois falou de outras atrizes, desfiando um interminável rosário das suas mancebias.

Clorinda, a costureira e o cabeleireiro, ouviam sem dizer palavra.

Terminado o serviço do cabeleireiro, que logo se retirou, Clorinda ergueu-se:

— Agora, meu doutor, há de me dar licença, sim?  Vou vestir-me.

— Até logo, disse o advogado.  O seu penteado ficou esplêndido!  Vou aplaudi-la.  Bonne chance!

Deu-lhe um beijo – na testa para não desmanchar a pintura,  — e saiu do camarim, cuja porta a costureira discretamente fechou.

A meia, 1894

Henri Toulouse-Lautrec ( França 1864-1901)

Óleo sobre papelão,  58 x 48 cm

Museu d’ Orsay, Paris.

III

 

Minutos depois, Clorinda estava completamente nua.

— A senhora é muito bem feita de corpo, disse-lhe num tom adultório, a costureira, enfiando-lhe pela cabeça uma camisa de seda.

— Acha?  perguntou desdenhosamente a atriz.

— Ah!  eu também já fui bem feita de corpo, mas…  não tive juízo:  fiei-me demais nos homens.  Se quer aceitar um conselho, filha, preste mais atenção à sua arte do que a todos esses … gajos, que fazem das mulheres um objeto de luxo e nada mais.  Só assim a senhora evitará o hospital e a miséria.

— Ora esta!  exclamou  Clorinda.  Quem é você mulher, para me falar assim?

— Eu sou … a Marcelina.

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 Em:  Contos fora de moda, originalmente publicado em 1894.

 

Artur Azevedo (Arthur Nabantino Gonçalves de Azevedo), jornalista, poeta, contista e teatrólogo, nasceu em São Luís, MA, em 7 de julho de 1855, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 22 de outubro de 1908. Figurou, ao lado do irmão Aluísio de Azevedo, no grupo fundador da Academia Brasileira de Letras, onde criou a Cadeira n. 29, que tem como patrono Martins Pena.

Obra:

Carapuças, poesia, 1871

Sonetos, 1876

Um dia de finados, sátira, 1877

Contos possíveis, 1889

Contos fora da moda, 1894

Contos efêmeros, 1897

Contos em verso, 1898

Rimas, poesia, 1909

Contos cariocas, 1928

Vida alheia, 1929

Histórias brejeiras, seleção e prefácio de R. Magalhães Júnior 1962

Contos, 1973





Para melhor mundo, conto de Natal de Garcia Redondo, texto integral

19 12 2009

 

Ilustração, 1920,  de Jorge Barradas (Lisboa, 1894-1971)

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Para melhor mundo

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                                                        Garcia Redondo

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Nessa manhã de Natal, luminosa e fresca, Mma. Lenoir, ainda em penteador, alegre e gárrula, enfeitava, na sala da biblioteca da sua habitação garrida, a virente araucária minúscula que devia encher de gáudio o pequeno Alberto, cobrindo-a de bibelots policromos e de doçuras apetitosas – quando uma criada entrou no aposento e lhe entregou uma carta.

Mma. Lenoir olhou o sobrescrito e, estranhando a letra, indagou:

— De onde vem isto?

— De casa do pai de V. Exª .

— De casa de meu pai!…

Muito admirada, rasgou o envelope, e passou os olhos pela carta.

Uma palidez súbita substituiu as róseas cores do rosto de Mma. Lenoir, as suas lindas mãos patrícias tremeram e um suspiro abafado escapou-lhe do peito.  Depois, atirando a carta sobre a mesa onde se erguia a araucária, levou as mãos ao rosto e começou a soluçar.

A criada, pasmada e solícita, correra para a ama, e carinhosa, sem conhecer ainda a causa desse pesar imprevisto, conduziu-a docemente para junto de uma poltrona, onde a fez sentar.

E timidamente, respeitosamente, inquiriu:

— Que foi, minha senhora?  Aconteceu alguma coisa ao Sr. Afonso?

Mma. Lenoir não respondeu;  soluçando sempre, sempre com suas mãos no rosto, ensopando em lágrimas o seu fino lenço de batiste dava silenciosamente expansão à sua dor.

A criada, perplexa, desejosa de ser-lhe útil nesse transe doloroso, perguntou ainda:

— Quer que vá buscar o menino Alberto?…  ele já deve estar acordado.

A cabeça de Mma.  Lenoir agitou-se nervosamente e da sua garganta patiu, depois de um grande esforço, esta frase rouca:

—  Não, não, traze-me água para beber.

A criada saiu, cerrando discretamente a porta da biblioteca.

 

*  *  *

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Mma. Lenoir só tinha duas afeições no mundo: seu filho Alberto e seu pai.  Filha única de um velho rico e libertino, cedo perdera a mãe e cedo vira-se entregue aos cuidados de estranhos.

Para ver-se livre de uma criança, cuja presença o constrangia, impedindo-o de dar largas ao seu temperamento fescenino, o velho Afonso Marquet começara pondo a filha em casa de uma instrutora que lhe servia de mãe e de mestra, e acabara encerrando-a em um colégio, onde ia vê-la raramente, compensando as largas ausências com amiudados presentes fascinadores.

A respeito deste regime pouco afável, a criança, que herdara o belo coração materno, tinha uma grande afeição ao pai e amava-o sinceramente.

Assim cresceu, assim se desenvolveu, esquecida e triste, sempre encerrada entre as quatro paredes do mesmo colégio, vendo o pai poucas vezes, sem conhecer as alegrias do lar e os carinhos dos amigos.  Para encher o vácuo de sua alma sentimental e meiga, ilustrava-se, lendo muito, estudando com o prazer e a ânsia de quem procura derivativos para o tédio e distrações aos pesares do isolamento e da reclusão.

Mas, um dia, amanheceu mulher feita e não era mais possível continuar no colégio.  O velho Afonso, bem a contragosto, viu-se forçado a conduzi-la ao seu lar de libertino, onde tanta vez espumara a champanha da orgia e estalara o beijo do amor livre.  Todavia, a presença em sua casa, dessa mulher, dessa linda mulher que não era como as outras, constrangia-o, obrigando-o a mudar de hábitos arraigados, cuja continuação a sua velhice cupidiana e ardente imperiosamente solicitava.

Atormentado pela forçada abstenção dos seus prazeres cômodos, o velho Afonso cogitou em casar a filha.

Era um meio fácil de ver-se livre dela, recuperando a sua ampla liberdade perdida.  E, uma noite, esse pai egoísta e frívolo notou, entre os seus parceiros de baccarat no Clube,  um rapaz viveur e esperto, bem galante, bem distinto, razoavelmente educado e como ele de origem francesa, que, a seu ver, era muito capaz de fazer a felicidade da filha, se ela quisesse ter a complacência de amá-lo um poucochinho.

E com essa idéia fixa, começou a levar o rapaz a casa, a dar-lhe jantares, a pô-lo em contato com a filha.  Sagaz e ambicioso, o galante Lenoir percebeu os intuitos do velho e, como o negócio convinha-lhe em todos os sentidos, fez-se a desejada corte e conseguiu fazer-se amar.

Poucos meses após, o casamento fazia-se, e o casal ia habitar uma linda chácara com que o velho Afonso presenteara a filha.

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A vida conjugal de Mma. Lenoir foi de duração curta e de ventura escassa.  Passada a lua de mel, durante a qual ela apenas entreviu uma nesga do céu da felicidade sonhada, o marido voltava à vida enervante e dissipadora dos clubes, abandonando-a noites inteiras, isolada e desiludida, entregue à insônia e aos sustos.

Felizmente o acaso, esse bom amigo incógnito, que às vezes surge providencialmente para dar lenitivo aos que sofrem, veio libertá-la desse companheiro instável, arrebatando-o à vida, que para ele resumia-se nas emoções que produzem os prazeres frívolos e o retângulo verde da mesa do jogo.  E assim foi, dois anos após de casada, Mma. Lenoir, com apenas dezenove anos, achou-se viúva e em vésperas de ser mãe.

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 A Carta,  1925

Eliseu Visconti ( Brasil, 1866-1944)

Óleo sobre tela,  51 x 69 cm

Coleção Particular

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Quando nasceu o pequeno Alberto, havia três meses que o Sr. Lenoir repousava no Caju, em baixo de uma grande pedra tumular.  Essa criança, que não conhecera o pai e que estava destinada a ser o consolo único da mãe, despertou uma grande comoção piedosa no avô.  Talvez o remorso de não ter consagrado uma afeição mais intensa à filha,  talvez a fadiga produzida pela vida dissoluta que passara, impelisse o velho contrito a dedicar-se com exagero apego ao neto.  Nesse rebento louro concentrava todos os seus afetos; e ele que tanto afastara de si a filha, acabou por não poder passar um dia sem ver o neto, sentando-o nos joelhos acalentando-o com excessos de ternura.  Entre os braços da mãe carinhosa e os joelhos já trêmulos do avô, essa criança avançou pela vida e atingiu os nove anos.

Mma. Lenoir, embora moça, formosa, rica e requestada, achou-se bem na sua viuvez, e preferiu conservar a independência, que ela lhe trouxera, a correr o risco de var para o seu lar tranqüilo um segundo marido igual ao que tivera.  Demais, a sua existência, toda ocupada com o filho, era-lhe agora menos insípida, agradável mesmo.

Via diariamente o pai, que, embora morasse em casa própria, tinha um talher constante à sua mesa e raro deixava de sentar-se entre a filha e o neto, para encher o pequeno de gulodices e fazer-lhe todas as vontades.

Para ter essa criança constantemente feliz e satisfeita, o velho despovoava as prateleiras das lojas de brinquedos e inventava toda sorte de loucuras.  Um pedido de Alberto era uma ordem para o avô, que, na sua indulgência senil, chegava muitas vezes a contrariar a filha para não ver murchar o sorriso vermelho nos lábios do neto.

Tal era a situação de Mma. Lenoir, quando na manhã de 25 de dezembro de 1886, na ocasião em que na sala da sua biblioteca preparava a árvore de Natal, que o velho Afonso ocultamente lhe levara na véspera para surpreender o neto no dia seguinte, recebeu inesperada e brutalmente a notícia, comunicada laconicamente por um criado, do falecimento repentino de seu pai.

E fora essa nova que a pusera em lágrimas, numa aflição angustiada e acabrunhadora.

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Cerca de uma hora ficou Mma. Lenoir no fundo do seu jardim, no interior de um belvedere rústico, a esmagar a sua dor, a conformar-se com a sua triste sorte, ocultando lágrimas e fazendo desaparecer do seu rosto todos os vestígios da tristeza.  Fora aí, entre rosas e madressilvas, que a criada lhe viera explicar como falecera o pai, fulminado por uma congestão cerebral, no momento em que se levantara do leito para ir tomar banho; e fora aí também que a mesma criada, ofegante e aflita, lhe veio comunicar, pouco depois, que o filho, impaciente, fugira do quarto e já estava na biblioteca, encantado e surpreso, a olhar a linda árvore de Natal, que o bom São Nicolau lhe trouxera, esquecendo-se, na precipitação da dádiva de pendurar pelos galhos todos os brinquedos que deixara sobre a mesa.

Dando à fisionomia um ar risonho, Mma. Lenoir atravessou o jardim, reentrou em casa e seguiu para a biblioteca.  E já próxima, abafando os passos, viu, através do vão da porta, o filho, de olhos fixos na carta que ela recebera e onde a triste nova lhe tinha sido comunicada de um modo banal, com a fórmula arcaica, lançada por um criado, dedicado mas pretensioso, sobre uma larga folha de papel comum: “Saiba V. Ex.ª que o Sr. Afonso acaba de partir deste para melhor mundo”.

Sem pensar no que fazia, instintivamente, a pobre mãe precipitou-se para a criança e antes de a abraçar, antes de a beijar, arrancou-lhe a carta das mãos, dizendo-lhe com um grande esforço, a sorrir contrafeita, para disfarçar a emoção:

—  Ah! Seu curioso, então estava lendo a carta que o São Nicolau me escreveu?

E o pequeno, piscando os olhos, num gesto brejeiro:

—  Não é a do São Nicolau, não, mamãe!  É a do Antônio, avisando que o vovô fez viagem.

E alegremente, mexendo nas tetéias espalhadas sobre a mesa, acrescentou:

—  Estou zangado com o vovô, porque não quis levar-nos com ele para o “mundo melhor”.

Um suspiro de alívio e ao mesmo tempo de dor recalcada escapou dos lábios da infeliz mãe;  depois, passeando os seus olhos negros, de novo marejados de lágrimas quentes, pelos livros da biblioteca, disse vagamente, respondendo à observação da criança:

—  Sim, não nos levou com ele, mas mandou-nos todas essas lindas tetéias e jóias que estás vendo. 

O pequeno, muito intrigado, como quem se sentia na pista de um segredo, indagou:

—  Então, o São Nicolau é vovô?

Mma.  Lenoir atrapalhada, presa aos sentimentos mais opostos, enxugou de novo os olhos e, para não dar a perceber o seu enleio, foi então beijar o filho numa explosão de ternura.

E, quando o osculava, atraía-lhe a atenção para os brinquedos, distraindo-o do assunto, que tanto a atormentava.

Mas, ele obstinado e curioso, inquiriu ainda:

—  E onde fica, mamãe, esse “mundo melhor” para onde o vovô seguiu hoje?  Nunca ouvi falar dessa terra!…

Então, a desgraçada mulher, erguendo o braço para o ar, e apontando para a nesga do céu, que se avistava da janela, deixou escapar dos lábios lívidos estas palavras confusas:

—  É lá, meu filho,lá, além, bem além daquelas nuvens brancas…

—  Então, já sei;  é no céu, onde estão Nosso Senhor e …  papai  — disse o pequeno, batendo as mãos de contente. 

E fixou demoradamente os olhos no azul, a ver se divisava por lá a vitória a rodar por entre as nuvens.

 

*  *  *  *  * 

Em: Noite de Natal: coletânea de histórias de Natal, ed. Cassiano Nunes e Mário da Silva Briito, São Paulo, Editora Saraiva: 1950

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Manuel Ferreira Garcia Redondo (RJ, RJ 1854 – SP, SP 1916) engenheiro, jornalista, professor, contista e teatrólogo.   Usou os seguintes pseudônimos: Um contemporâneo; Um plebeu, Cabrion,  Pepelet,  Gavarni, Nemo, Childe Harold.

Obras:

 Arminhos, contos, 1882

Mário, teatro, 1882

O dedo de Deus, comédia, 1883

O urso branco, comédia, 1884

Carícia,  1895

A choupana das rosas, contos, 1897

Moléstias e bichos, comédia, 1899

Salada de frutas, 1907

Viagens pelo país da ternura, 1907

Através da Europa, viagem, 1908

Novos contos, 1910

O descobrimento do Brasil, conferência 1911

Cara alegre, humor, 1912

 Na pele do outro, comédia, s.d.

Bom-humor e vida airada, s.d.





O peru de Natal, um conto de Mário de Andrade

13 12 2009

Ceia de Natal, 1904/1905

Carl Larsson ( Suécia, 1853-1919)

Aquarela

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O PERU DE NATAL
 

                                                                                             Mário de Andrade

 
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O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de conseqüências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos desmancha-prazeres.

Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu sugerira à mamãe a idéia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto.

Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a idéia de fazer uma das minhas chamadas “loucuras”. Essa fora aliás, e desde muito cedo, a minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma reprovação todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha, uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei, de uma criada de parentes: eu consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de “louco”. “É doido, coitado!” falavam. Meus pais falavam com certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando exemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencem de alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um nada.

Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes…), empanturrados de castanhas e monotonias, a gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas “loucuras”:

— Bom, no Natal, quero comer peru.

Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos convidar ninguém por causa do luto.

— Mas quem falou de convidar ninguém! essa mania… Quando é que a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo…

— Meu filho, não fale assim…

— Pois falo, pronto!

E descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem infinita, diz-que vinda de bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o momento pra desenvolver minha teoria de doido, coitado, não perdi a ocasião. Me deu de sopetão uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas duas mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato de festa: uma imundície de parentes já preparados pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas e dos doces. Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos de bem feitos, a parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos pros que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia ainda provavam num naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo era mamãe quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém sabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de festa. Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de xerez, como aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso assoprado, se não seria tentação do Dianho aproveitar receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. É certo que com meus “gostos”, já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num vinho bom, completamente francês. Mas a ternura por mamãe venceu o doido, mamãe adorava cerveja.

— É louco mesmo!…

Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de mim a… culpa de seus desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento geral:

— É louco mesmo!…

Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado: assim que me lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar minha velhinha adorada. E meus manos também, estavam no mesmo ritmo violento de amor, todos dominados pela felicidade nova que o peru vinha imprimindo na família. De modo que, ainda disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um momento aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa quase pobreza sem razão.

— Não senhora, corte inteiro! Só eu como tudo isso!

Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em mim, que até era capaz de comer pouco, só pra que os outros quatro comessem demais. E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que a quotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus… Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do peru ficou inteiramente reduzido a fatias amplas.

— Eu que sirvo!

“É louco, mesmo” pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim e principiei uma distribuição heróica, enquanto mandava meu mano servir a cerveja. Tomei conta logo de um pedaço admirável da “casca”, cheio de gordura e pus no prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou o espaço angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru:

— Se lembre de seus manos, Juca!

Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime.

— Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não!

Foi quando ela não pode mais com tanta comoção e principiou chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também, tinha dezenove anos… Diabo de família besta que via peru e chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. É que o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal, fiquei danado.

Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno do Jesusinho nascido.

Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente obstruidora.

— Só falta seu pai…

Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que me interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial, de repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste:

— É mesmo… Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente… (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos em família.

E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por nós, fora um santo que “vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai”, um santo. Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso.

Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever «felicidade gustativa», mas não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do grande amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então uma felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber.

Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que ela morra, mas pelo menos que uma vez na vida coma peru de verdade!

A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor… Depois vieram umas uvas leves e uns doces, que lá na minha terra levam o nome de “bem-casados”. Mas nem mesmo este nome perigoso se associou à lembrança de meu pai, que o peru já convertera em dignidade, em coisa certa, em culto puro de contemplação.

Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra poder sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra ela, modo de contar onde é que ia e fazê-la sofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!…

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Em: Noite de Natal: coletânea reunindo histórias de Natal, editado por Cassiano Nunes e Mário da Silva Brito.  Saraiva, SP: 1950

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Mário de Andrade, 1927

Lasar Segall, (Russia 1891, Brasil 1957)

óleo sobre tela

 

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Mário Raul de Morais Andrade (SP, 1893-1945) poeta, romancista, crítico de arte, musicólogo, professor universitário e ensaísta, considerado unanimidade nacional e reconhecido por críticos como o mais importante intelectual brasileiro do século XX. Liderou o movimento modernista no Brasil e teve grande impacto na renovação literária e artística do país, participando ativamente da Semana de Arte Moderna de 22, além de se envolver (de 1934 a 37) com a cultura nacional trabalhando como diretor do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo.

Obras:

Há uma Gota de Sangue em Cada Poema, 1917

Paulicéia Desvairada, 1922

A Escrava que Não É Isaura, 1925

Losango Cáqui, 1926

Primeiro Andar, 1926

A Clã do Jabuti, 1927

Amar, Verbo Intransitivo, 1927

Ensaios Sobra a Música Brasileira, 1928

Macunaíma, 1928

Compêndio Da História Da Música, 1929 (Reescrito como Pequena História da Música Brasileira, 1942)

Modinhas Imperiais, 1930

Remate de Males, 1930

Música, Doce Música, 1933

Belasarte, 1934

O Aleijadinho de Álvares De Azevedo, 1935

Lasar Segall, 1935

Música do Brasil, 1941

Poesias, 1941

O Movimento Modernista, 1942

O Baile das Quatro Artes, 1943

Os Filhos da Candinha, 1943

Aspectos da Literatura Brasileira 1943

O Empalhador de Passarinhos, 1944

Lira Paulistana, 1945

O Carro da Miséria, 1947

Contos Novos, 1947

O Banquete, 1978

Dicionário Musical Brasileiro, 1989

Será o Benedito!, 1992





Vorte quem tem fé — um conto de J. B. de Mello e Souza

6 12 2009

 

Igreja de São Bento, Vale do Tamanduateí, SP, s/d

José Wasth Rodrigues (Brasil, 1891-1957)

Aquarela, 32 x 47 cm.

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Vorte quem tem fé

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                                               À memória de Horácio Senne

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                                                         ” A fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova daquelas que não se vêem.”   —-      S. PAULO, Epístola aos Hebreus, 11

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          Nada se pode articular contra a sinceridade com que a gente do Vale do Paraíba pratica seus deveres religiosos.  Pelo menos, era assim no meu tempo de menino: os preceitos da Igreja, nós os cumpríamos com uma pontualidade inalterável, e mais ainda:  com profunda unção espiritual.

          Por alguns anos (antes de nos transferirmos para a Chacrinha, às margens do Paraíba), residimos perto da Matriz, e tivemos como vizinho o velho vigário Gaudêncio Antônio de Campos.

          Tal circunstância, acrescida pelos desvelos de minha mãe, concorreu para a dedicação e o interesse com que eu e meus manos nos dedicávamos a tudo o que dissesse respeito ao culto.

          Por ocasião das grandes e solenes procissões, nós figurávamos em lugares de realce, trajando roupas vermelhas, e tendo nas mãos pesados círios.  Nas rezas do mês de Maria, igualmente, éramos incluídos na guarda de honra do altar.  Como mais velho, eu, compenetradíssimo, fiscalizava meus irmãos, pois o maior prazer do Nelson era brincar com a chama de sua vela, e reacender as que se apagassem, para o que saía pingando cera em todo o mundo; e o do Júlio, bater nos cachorros que entrassem no templo, os quais saiam ganindo lamentosamente, o que a meu ver perturbava a atenção piedosa dos fiéis.

          O vigário Gaudêncio, homem boníssimo, utilizava, sempre que possível, nosso concurso nas festinhas da paróquia.  É claro que não designo por essa forma as grandes solenidades, religiosas e populares, que se efetuavam outrora, como ainda hoje, nos dias 23 a 25 de junho, e que compreendem as homenagens ao Santo Precursor, padroeiro da cidade e as festas anuais consagradas ao Divino Espírito Santo.  Nesses dias havia alvorada, missas cantadas (pregando o Evangelho ilustres oradores sacros), imponentes procissões, retretas ao jardim público, mesas de doces franqueadas ao povo, como nas hecatésias atenienses, leilões, fogos de artifício o que tudo figurava nos programas impressos em enormes folhas de papel de cor, e absorvia as atenções de toda a gente, durante aquele movimentado tríduo.

          Dessas solenidades, porém, a que mais me impressionava era a proclamação dos festeiros para o ano seguinte.   Os festeiros eram três:  o “Imperador”, o “Capitão do Mastro” e o “Alferes da Bandeira.”  O primeiro, superintendia toda a festa; o segundo tinha a seu cargo a ereção do mastro, alto poste de madeira, cantado em frente a Matriz, poste que devia ser anualmente substituído.  Na extremidade do tal mastro ficaria o quadro, isto é, a bandeira, em que São João Batista se via com o inseparável cordeirinho aos pés.  Ao “Alferes da Bandeira” cabia a feitura desse quadro.

          Salvo casos especialíssimos (de promessas, ou de donativos altamente valiosos), os festeiros eram escolhidos mediante sorteio, entre paroquianos de notória idoneidade, que se apresentassem candidatos àquelas honrosas funções.

Quando se proclamava o “Imperador”, estando a velha igreja repleta, sentia-se certo frisson na assistência: a música tocava, os sinos vibravam, e o foguetório enchia o ar com seus estrondos.  É claro que tais homenagens lisonjeavam a vaidade dos pretendentes.

          Lembra-me ainda o dia em que o vigário Gaudêncio se mostrava preocupado com qualquer problema de solução difícil.

          — Estou numa dúvida desagradável, seu João de Deus – dizia ele a meu pai.  – Imagine que eu já havia assumido compromisso com o Rebouças de Carvalho, o Dr. França e o Chico Carlos, para imperador, capitão do mastro e alferes da bandeira.  Agora soube que o Zé Carlos e o Monteiro também fazem questão fechada de ser festeiros.  Não quero faltar a minha palavra, mas também não desejo magoar a esses bons amigos…  Que acha você que convém fazer?

          Meu pai formulou uma solução conciliatória, mas o padre fez ver que nada conseguiria, dada a intransigência dos candidatos. 

          O Nelson, que comigo assistia ao grave debate, animou-se a propor outra sugestão. 

          —  Pois vamos ver o que é, menino, disse o sacerdote, já sorrindo por conta da extravagância que esperava.

          —  Em vez de três festeiros, o senhor arranja cinco.

          —  Cinco?  Mas, como?  Se são só três os cargos!

          —  Isso não tem importância!  O senhor arranja mais dois: o major da fogueira, e o tenente do pau de sebo!

           É claro que a idéia do Nelson nem sequer foi objeto de deliberação o que o decepcionou bastante.  Atribuímos a recusa do padre ao fato de não ser possível promover o Capitão José Carlos a “major”, nem rebaixar o Capitão Moreira a “tenente”.

          Convém recordar que naquele tempo todos os fazendeiros do interior adquiriam patentes de oficiais da extinta “Guarda Nacional”, e, como esses títulos nunca mudavam, aderiam ou anexavam-se indelevelmente aos nomes dos respectivos portadores.

          —  O padre Gaudêncio é muito atrasado, observou Nelson, despeitado.  E é teimoso na sua opinião.  Nunca muda nada!  Todos os anos há de se fazer a mesma coisa que se fazia há cinqüenta anos atrás!

          Em casa a turma fez caçoada.  Sugeriram-se mais dois postos, altamente honrosos:  o de coronel da retreta e o de general da procissão.

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          Mais do que as festas juninas, porém, o fato que ora vou referir comprova o espírito religioso do povo queluzense.  Quando ele ocorreu, já o padre Gaudêncio, valetudinário, havia deixado o árduo ministério.  Pastoreava a paróquia o padre Paulo Machado.

          Prolongada estiagem estava causando graves danos à lavoura, em todo o município.  Tres longos meses haviam transcorridos, sem que do alto caísse um pingo d’água.  Os lavradores queixavam-se e com razão.  Rios e ribeirões das fazendas distantes do Paraíba minguavam a olhos vistos.  O gado perecia. 

          Quando ocorrem tais períodos de secas, o céu torna-se pardacento, todo por igual, e os dias passam sem que nos venha o refrigério de uma brisa, o que produz em toda gente, nos animais, e até nas plantas uma tristeza esquisita, um desalento sem remédio.

          O povo de Queluz suportava a ausência de chuvas enquanto podia.  Se  a natureza perseverasse em sua ação inclemente, não havia discutir: recorria-se a São Roque.

Procissão, 2007

Vera Sabino (Brasil, PR.  Contemporânea)

Acrílica sobre eucatex

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          São Roque tem o seu culto em modesta capelinha em torno da qual se formou um pequeno povoado, simples arraial, que do município de Areias foi recentemente transferido para o de Queluz.   Cerca de três quilômetros separam o povoado de qualquer das duas cidades.  Numa e noutra tem o santo apreciável número de devotos.

          Para trazer São Roque a Queluz tornava-se necessário a autorização do vigário.  Obtida a licença, organizavam-se os crentes em procissão e lá iam, galgando a estrada que contorna a Fortaleza, e repetindo orações que se iniciavam e se encerravam pela prece “Ad petendam pluviam”.

          De volta, ao reentrar a procissão na cidade, o povo vinha receber a imagem do milagroso santo, e, com demonstrações do maior respeito acompanhava-a até o alto da Matriz.

          Repicavam os sinos e soltavam-se foguetes, condimento indispensável em tais cerimônias.

          —  Ora, não é tanto assim, objetou o sacerdote, cautelosamente.  E prosseguiu:  Talvez convenha aguardar uns dias mais…   Penso que só em caso extremo devemos apelar para São Roque, e removê-lo de sua capela para a Matriz…

          —  Mas…  V. Revma.  não se opõe?

          —  A que a imagem venha, não!…  Apenas acho que ainda é cedo…  Consultem os zeladores; depois…  veremos o que se há de fazer.

          Os solicitantes retiraram-se descontentes com o resultado da tentativa.

          À tardinha, ao despertar de sua sesta habitual, o vigário teve uma surpresa que o deixou contrariadíssimo.

          Soube que à sua revelia, os mesmos devotos e outros vários tinham estado na igreja, e dali  retiraram tudo o que era necessário ao cortejo.  Descendo, processionalmente, a ladeira, e atravessando a ponte do Paraíba, o grupo se engrossou com grande número de aderentes.  Quando o sacerdote teve plena ciência do caso, já a procissão subia a Fortaleza, fora da zona urbana, entoando o cântico “Ad petendam pluviam”.

          Mas o Padre Paulo não se deixava convencer facilmente.  Considerou que aquilo significava  um desrespeito a sua autoridade.

          A vinda de São Roque importava na realização de uma festinha, dias depois do aguaceiro, na data fixada para o regresso do santo.  Ora, ele vigário, julgara prematura a vinda da imagem, pensando já nas conseqüências.  Resolveu agir com presteza no sentido de procrastinar a execução daquele ato.

          Saiu imediatamente, arranjou, às pressas, um veículo do tipo que outrora se chamava “aranha”, e foi no encalço da procissão.

          Em poucos minutos alcançou-a.

          Os romeiros interromperam a marcha, ao vê-lo.

          —  Então, que é isso, meus amigos?  Vocês vão, assim, buscar São Roque?

          —  Vamos, seu Vigário – explicou o líder do movimento – como Vossa Reverendíssima disse que não se opunha, e todos os zeladores concordaram, nós não quisemos incomodar Vossa Reverendíssima, que estava descansando, e…

          —  Mas aqui ninguém acredita em São Roque!  — exclamou o vigário, em tom paternal de censura.

          —  Perdão, seu Vigário, mas nós todos confiamos no santo…

          —  Ninguém acredita, insistiu energético, o sacerdote.  E a prova é esta: ninguém trouxe guarda-chuva!  Se vocês, realmente, têm fé em São Roque, voltem, para buscar os guarda-chuvas!

          Ouvindo essa recomendação, um dos crentes tomou a iniciativa de transmitir a todos os demais o aviso, exclamando em voz bem alta, no linguajar de roceiro:

          —  Vorte quem tem fé!  Vorte tudo, pra morde buscá os guarda-chuva!

          Não houve remédio, senão atender.  Todo o bando voltou, com raras exceções.  Tornou atrás, igualmente, o vigário, convencido de que pelo menos naquela tarde não seria possível a marcha que ele interceptara.

          Mas enganou-se.  Os devotos de São Roque, em matéria de pertinácia, nada deixavam a desejar, relativamente ao padre que os guiara.  A procissão atrasou-se em três quartos de hora; mas reconstituiu-se, e prosseguiu.

          A julgar pela quantidade de paraguas, a fé em São Roque era, mesmo, profunda.

          Ao cair da noite, regressavam os devotos a Queluz.  A imagem vinha com eles, é claro.

          A essa hora, nuvens sombrias já se iam acumulando para os lados da Figueira. 

          E quando a procissão entrou na cidade, chovia a cântaros.  Os guarda-chuvas prestaram excelente serviço a seus possuidores.

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          No dia seguinte, o Padre Paulo encontrou, na boca da ponte, dois paroquianos que haviam participado da procissão, e foi ter com eles.

          —  E não é que a chuva veiu ônte mêmo, seu Vigário.

          —  Ora, como não havia de vir!  Que São Roque é milagroso, todos nós sabemos.  Agora – o que eu notei é que todos mostraram ter  Fe no santo, menos vocês dois!

          —  Pruquê, seu Vigário?

          —  Porque só vocês não voltaram para buscar o guarda-chuva!

          —  Ah!  seu padre!  Nós tem muita fé em São Roque, mas nós não tem guarda-chuva!

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Em: Histórias do rio Paraíba: episódios e tradições regionais, de J.B. de Mello e Souza, São Paulo, Saraiva:1951, 2 volumes,  pp  80-88, volume I 

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João Batista de Mello e Souza (SP 1888 — RJ 1969) — Pseudônimo:  J. Meluza —  Contista, romancista, poeta, memoralista, autor didático e de Literatura Infantil, teatrólogo, historiador, tradutor, folclorista, diplomado em Direito (1910), funcionário público, professor universitário, jornalista, membro da Academia Carioca de Letras. Prêmio Joaquim Nabuco -ABL (1949).

Obras:

Sacuntala de Calidasa e outras histórias de heroísmo e amor, contos indianos,

Lendas Medievais, contos

A sombra do bambual, teatro, 1955

Histórias do Rio Paraíba, 2 vol, contos e memórias, 1951

Histórias famosas do Velho Mundo, contos,

Majupira, romance histórico, 1949

Sete lendas de amor e outras poesias, 1959

Estudantes do meu tempo, contos e memórias, 1958

História da América, história, 1957

História do Brasil, história, 1959

História Geral, história, 1956

O homem sem pátria, 1963





Adaptações sem limites, um conto

26 06 2009

ciência Tudo pela ciência, ilustração de Walt Disney.

 

 

ADAPTAÇÕES SEM LIMITES

 

de  Ladyce West

 

Na minha adolescência, eu sempre me encabulava de ser vista no carro de meu pai.  Só convidava minhas amigas para uma carona, se me visse forçada.  Tinha receio do que poderia revelar a meu respeito ou a respeito de meu pai.  

 Nosso carro era um híbrido pode-se dizer de um tanque da Segunda Guerra Mundial com um carro passeio.  Combinação possível graças ao gênio inventivo de meu pai, um cientista.  Esse ornitorrinco do mundo dos carros poderia ter sido encontrado numa história em quadrinhos de ficção científica.  Meu pai foi um típico homem dedicado à ciência, cujo abundante e rebelde cabelo grisalho espelhava suas ruminações.   Sua notória falta de atenção era conseqüência de uma mente em ebulição,  resolvendo problemas diversos, enquanto seu carro, o nosso carro, era a prova concreta dos princípios rudimentares dos testes científicos: nada funcionava de acordo com o procedimento padrão.

 Originalmente o carro tinha sido um Standard Vanguard, cinza, uma criação britânica, importada para o Brasil, e anunciada como sólido carro para a família.  Sua primeira cirurgia aconteceu quando mudaram o guidão do lado direito para o lado esquerdo do motor.  Não me lembro se papai foi responsável por esta operação ou não, porque este carro substituiu o antigo Austin, quando eu ainda não tinha cinco anos.  Mas desde que me entendo por gente, papai trabalhou para a melhoria dos padrões do Standard Vanguard

 O processo acontecia na nossa garagem. Mesmo assim podíamos encontrar peças de carro pela casa inteira, principalmente onde minha mãe não as queria.  Para falar com franqueza, na nossa casa, o domínio de meu pai era restrito ao quarto da empregada, próximo à cozinha, cuja função havia se tornado obsoleta, já que nossa cozinheira não dormia em casa.  O quarto tinha a vantagem de ter água corrente do banheiro vizinho, o que para papai era essencial, porque ali também era o seu laboratório.  Meu pai era um químico industrial que transformou sua crise de meia-idade numa pós-graduação em física.  Para ele, o laboratório era um modo de pensar, uma maneira de viver.

 O quarto, estúdio-biblioteca-laboratório, refletia sua personalidade, sua mente inquisitiva.  Com paredes cobertas do teto ao chão por livros aparentava uma desordem de natureza orgânica.   No centro, mobiliário de metal onde cadinhos e tubos de ensaio competiam por espaço com outros objetos na bancada de azulejos.  Tudo ali resumia preocupações antigas e atuais de papai: tanques de aquários vazios, coleções de borboletas espetadas, microscópio, equipamento fotográfico, espécies de sementes que poderiam ser usadas para alimentar gado, cobras e aranhas em álcool e dúzias de reagentes químicos em garrafas de vidro com rótulos de caveiras nos bojos. 

Pensando bem, é impressionante que nosso único acidente tivesse sido um pequeno incêndio causado por meu irmão Júlio, que, aos quatro anos, brincava com fósforos, no seu quarto, longe da área de perigo.  Porque a quantidade de material explosivo, em potencial, que se estocava na nossa casa poderia fazê-la ser isolada pela segurança pública com cartazes: AREA RESTRITA, caso seu conteúdo viesse a ser descoberto pelas autoridades.   Ainda que nós crianças pudéssemos entrar e sair do “laboratório”  ao bel prazer, nenhum vizinho, conhecido ou amigo colocou os pés no quarto do papai.  Nunca!

 Para desespero de minha mãe, papai era um tipo mais sociável do que a maioria dos cientistas.  Isso significa que suas ferramentas e livros poderiam ser encontrados na mesa da sala de jantar – seu lugar favorito de leitura; ou em frente da televisão – seu lugar favorito para uma soneca.  Sem perder qualquer oportunidade para nos ensinar alguma coisa, ele adorava ficar rodeado pela família enquanto trabalhava.  Mamãe queria ver a casa livre de seus apetrechos e reclamava com freqüência.  Mas acabava aceitando um pouquinho de bagunça na casa toda.  Mas havia uma regra: nenhuma “parte de carro” dentro de casa.  Se encontrasse alguma, um grande rebuliço brotava pela casa.  Isto ela não aceitava.  “Todas essas peças cheias de graxa, estragando a minha mobília, arranhando as tábuas do piso! Cláudio tire tudo isso daqui!” Lá pelas tantas, papai pegava uma chave inglesa, uma chave de fenda, pistão, filtro, válvulas, farol e levava de fininho para o Lab.

 Mas logo ignorava as regras.  Por propósito ou negligência, partes do carro nos cômodos internos da casa eram lugar comum. Nem ele, nem minha mãe abriam mão de seus direitos e o confronto entre os dois era a norma.  Papai sempre começava trabalhando numa coisa pequenina – um ou dois fios, uma chavinha de fenda, que vinha escondida no bolso.  Estes objetos vinham quietos, macambúzios e se instalavam timidamente sobre jornais velhos num canto da mesa de jantar.  No final da tarde, ou à noitinha, eram algumas chaves de fenda, um ferro de soldar elétrico, algumas pinças que haviam encontrado o caminho da sala e achado repouso num canto do tapete oriental debaixo da mesa, quando não achavam acolhida ao lado da sopeira antiga na cristaleira.  E, como sempre, ao lado de papai, havia um de nós fazendo o dever de casa ou brincando com pedacinhos de fios, desencapando-os.  Todos os nossos bonecos, lá em casa, eram ruivos: tinham belíssimas cabeleiras de fios de cobre.

 Papai sempre queria estar onde tudo acontecia.  E ele podia.  Tinha um grande poder de concentração, uma característica herdada por todos os três filhos.  Uma característica que era também outro ponto para mais discussões na nossa casa, porque mamãe, cansada de nos chamar para o jantar ou para por a mesa, tinha que vir até nós, às vezes até sacudir nossos braços, ou retirar de nossas mãos os livros ou brinquedos com que nos divertíamos, para nos “acordar” para o mundo.  Papai, é claro, era o pior de nós todos.  Não era raro ele se sentar à mesa do jantar quando nós já estávamos na sobremesa.  Mamãe o chamava.  Mas depois de algum tempo se calava e dizia: “precisamos esperar, agora, que os sons do jantar cheguem até o inconsciente de seu pai e o lembrem que o jantar está servido”.  A surdez momentânea de papai se tornava pior quando ele estava absorvido com o carro, quer na garagem, quer no Lab.

 No Lab havia uma parafernália enorme relacionada a carros: caixas e caixas de parafusos de tamanhos diferentes, radiadores, caixa de transmissão, carburadores, correias de ventilador, baterias e todo tipo de canos e peças de metal e ferramentas.  Mas o passatempo diário de papai – a melhoria do carro da família — afetava a família muito além da localização das peças e ferramentas por toda a casa.  Afetava nossos horários, nossa imagem, nosso orgulho e até mesmo a percepção que tínhamos de nós mesmos.  O carro era o grande ditador da nossa vida, o cardeal por trás do rei, a eminência parda do nosso lar.  

 Foi a persistência de papai que nos levou a ter um carro com duas baterias escondidas atrás do banco traseiro; um painel indicando através de luzes diferentes o estado de diversas partes do motor e assentos removíveis transformando a caminhonete num  verdadeiro pequeno caminhão.  Enumerando as melhorias desta maneira elas até parecem muito boas.  Mas era a maneira como os fios eram dependurados pelo carro, vindos do guidão e painel fronteiriço, passando por trás das portas, caindo como sanefas das  janelas que era um problema!  É claro que as portas do carro já não tinham acabamento.  Tudo era visível: o mecanismo de abrir e fechar os vidros, os fios vindos de trás, da frente, de lugares que não podíamos imaginar.  Tudo isto levava uns vinte minutos para ser ligado.  Eram muitas adaptações diferentes que precisavam esquentar antes de colocar o carro em andamento.  Havia é claro um termômetro no motor para manter a temperatura ideal e garantir o melhor funcionamento da engenhoca.  Tudo isso contribuía para que ficássemos todos encabulados com o nosso carro.

 O critério usado por papai para melhorias automobilísticas era puramente pragmático.  Seu carro era um experimento e estava sempre em processo. Tudo era registrado para futuras adaptações.  Quanto maior o controle, melhores as soluções.  A conseqüência era simples: o interior do nosso carro tinha adaptações diversas de outras máquinas, de partes de outros carros, de outros fabricantes.  Sob as mãos mágicas de papai esta pilha de ferro velho se transformava em tacômetros, botões de ligar e desligar luzes de aviso, reguladores da temperatura da água, medidores de pressão de óleo, medidores de pressão dos freios e de seu desgaste.  Tudo permitia leituras específicas sobre o carro. Papai anotava dados em grossos cadernos de capa dura, às vezes até mesmo durante os trinta segundos de parada num sinal vermelho.  O carro tinha guidão da Mercedes, e partes do motor da Volkswagen, carburadores de quatro velas e botão para ligar e desligar as baterias que preveniam o roubo do carro.  Grande defensor de medidas de segurança, papai instalou cintos de couro para nós crianças no banco de trás.  Para ele, estes precursores dos modernos cintos de segurança não tinham a aparência horrenda que lhes atribuíamos.  Para papai, a diferença entre um carro comum e o nosso era que o nosso era melhor!

 Sem tomar conhecimento das reclamações estéticas feitas por mim e mamãe sobre o interior do carro, papai incentivou uma guerra dos sexos na família, encontrando apoio nos meus dois irmãos mais novos: David e Júlio.  Ambos eram freqüentemente mecânicos-auxiliares na garagem lá de casa.

 David se interessava por qualquer coisa que precisasse de força.  Ele gostava de músculos.  Desde que nascera media suas forças com as de papai e depois insatisfeito com os resultados ele passeava pela casa comparando bíceps comigo, mamãe e Júlio.  Às vezes até a vovó se deixava medir nos músculos dos braços.  Ele sempre sonhava que era Tarzan.  Suas tarefas na garagem envolviam equipamento pesado.

 Júlio por outro lado se preparava para seguir nos passos de meu pai.  Metódico e dado a pesquisas, gastava horas no Lab afinando pontas de parafusos para adaptá-los a este ou aquele uso, ou trabalhando com algo que envolvesse eletricidade.  A ele cabiam as tarefas detalhistas, o trabalho cuidadoso.   Melhor que ninguém na família, Júlio podia colocar ordem em qualquer caos. Sua maneira sistemática de resolver problemas e sua aptidão para organização eram sempre bem-vindas quando a tarefa envolvia fios para serem desembaraçados, ou desfazer nós.  Se paciência fosse um requisito da situação, Júlio era chamado.

 Eu nunca ajudava papai; tomava o partido de minha mãe.  Mas eu ficava furiosa quando papai dizia que “preocupações estéticas eram típicas do sexo frágil”.  Nem eu nem mamãe éramos contra o desenvolvimento da ciência.  Só não queríamos participar dos experimentos.  Éramos passivas e resistentes.  Aprendemos a não ouvir qualquer dito, provérbio ou frase sobre feminilidade, ainda que uma divisão dos sexos tivesse se formado na nossa casa.   De um lado, papai se recusando a ser normal.  Do outro lado, mamãe com crescente ódio pelo carro, chamando taxis, pegando carona com minhas tias e me levando junto.  O carro era vergonhoso para nós duas.  Tudo o que eu queria na minha adolescência era mostrar a mim mesma e às minhas amigas que fazia parte de uma família bem normal.

 Meus irmãos, mais jovens e ainda adolescentes imaturos encontraram nas atividades de papai uma fonte de grande orgulho e felicidade.  Eles também gostavam do pequeno clube que faziam, separados de nós, e na verdade, muito cedo, quando ainda eram bem criancinhas, eles já “dirigiam o carro” para dentro e fora da garagem.  Aprenderam também a estacioná-lo com perfeição.  E quando mamãe e eu dizíamos alguma coisa derrogatória a respeito do carro ou deles estarem cegos por causa de seus amores pela máquina, ouvíamos o refrão repetido: “Típica  preocupação de mulher”.   

 Por muito tempo nosso carro ficou quase intacto no lado de fora, mas era uma cena de guerra por dentro, até que papai teve “o grande acidente” quando o carro capotou três vezes até parar.  Como era o único carro na estrada naquela hora, ninguém mais se feriu.  Papai, “salvo por milagre”, de acordo com mamãe e “protegido pelas minhas invenções” de acordo com ele, começou logo a melhorar a carroceria contra futuros acidentes.  O carro de calhambeque passou a joça. 

 Mamãe perdeu a aposta que fez conosco, crianças, sobre a revisão anual do estado.  Ela tinha certeza de que o carro não passaria na inspeção.  Ela falava.  E eu achava que via medo refletido nos olhos de papai.  Isso acontecia todos os anos e era a fonte de muitas conversas aos segredinhos entre minha mãe e suas irmãs.  Ouvíamos a constante observação de que os “inspetores eram cegos”.  O que mamãe esquecia era que meu pai se dava ao trabalho de maquiar o carro nas semanas anteriores ao ritual anual.   Com ajuda de meus irmãos, papai, numa única vez ao ano, se mostrava preocupado com a aparência do carro e o carro saía da garagem, no dia da inspeção, tinindo de beleza, como se uma fada tivesse trabalhado a noite toda, como se os inspetores fossem mulheres.  Fios desapareciam, seguradores de portas e alavancas de abrir e fechar os vidros reapareciam.  O acabamento nas portas e no teto do carro surgia do nada e estava sempre limpinho, porque afinal não havia sido usado por um ano inteiro!  E o carro, passou na inspeção ano após ano.  Mas logo depois de voltar para casa começava a pegar aquele ar de abandono que lhe era peculiar o ano todo. 

 Tivemos este carro por toda minha adolescência.  Menti para amigos muitas vezes para evitar sua companhia em nosso carro.  Com a desculpa de que o carro era muito pesado  para uma mulher frágil, aprendi a dirigir numa escola de motorista do bairro e nunca dirigi o Vanguard.

 David, no entanto, aprendeu a dirigir no carro da família.  Chegou a levar a namorada algumas vezes para uma volta pela cidade.  Mas logo, logo, notou que Lúcia, ou Diana, ou até mesmo Márcia, não apreciavam muito aquela moldura para seus passeios românticos.  Quer dizer, suas namoradas não estavam interessadas no motor. Só no  carro, e por causa da aparência, não conseguiam apreciar o passeio.  Nessa hora eu e mamãe ganhamos um importante aliado, do sexo certo. David se juntou a nós nos pedidos para trocarmos de carro.  Papai agora contava só com Júlio, que com treze anos, começava a se preocupar com as garotas.  Depois de um segundo acidente de carro, papai foi finalmente convencido a desistir do velho auto.

 Quando foi vendido, pouco restava de suas peças originais.  Foi vendido, sem qualquer dos inventos de papai, para um ferro-velho.  Os mecanismos extras foram guardados nas prateleiras mais altas do Lab. II.  Uma casinhola construída no fundo do quintal.   A família tinha um carro novo.  Novo em folha.  Vermelho.  Lindo.  Brigávamos para dirigi-lo.   Permutas criativas eram feitas.  A troca de responsabilidades na casa tornou-se moeda corrente, espertamente usada, para dissuadir alguém de usar o carro em qualquer noite.  Eventualmente, papai comprou outro carro, este de segunda mão, para nós, filhos dividirmos quando não pudéssemos usar o novo carro.  Nós adoramos a solução.  Até que nos preocupamos quando papai teve a idéia de colocar uma segunda bateria no carro.  E o fez.  Mas, por algum motivo, seu amor aos motores, à mecânica parecia ter desaparecido.  Não pensava em adicionar nada mais.  Uma vez, quando lhe perguntaram a respeito, papai simplesmente respondeu que o Vanguard era diferente.  “Aquele é que era um carro de verdade.  Esses carros novos, essas novas carrocerias não foram construídas para durar.  Não valia a pena o esforço”.  Mentalmente agradeci aos novos padrões de fragilidade dos carros modernos.

 

Em: Contos do Livro Errante, edição e organização de Cristiane Rose Duarte e  Márcia Regina Schwertner,  Brasil,  2009, diversos autores, 104 páginas.  [Ficha catalográfica por Letícia Alves Vieira].