“A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o visitante sentou na areia da praia e disse: “Não há mais o que ver”, saiba que não era assim. O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre.”
“O Crisóstomo disse ao Camilo: todos nascemos filhos de mil pais e de mais mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se os nossos mil pais e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos, irmãos uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós.”
Não conheço a autoria dessa imagem. Só há uma fonte na internet para ela. Reproduzida muitas vezes. Não confio. Tenho a impressão de que é feita por IA, ainda que alguns atribuam a um pintor do final do século XIX. Nem vou mencionar seu nome para evitar que um rumor se propague. Totalmente fora de seu estilo. É no entanto uma interessante superimposição ao texto que segue. Serve também para alertar a todos vocês que aqui aparecem que há horas em que temos que confiar nos nossos instintos.
“O som do relógio, que expulsara o silêncio, morria em vibrações cada vez mais ténues e distantes. Depois de apagar todas as luzes, Justina foi sentar-se numa cadeira, perto da janela que dava para a rua. Gostava de ali estar, imóvel, desocupada, as mãos abandonadas no regaço, os olhos abertos para a escuridão, à espera nem ela sabia de quê. A seus pés veio enroscar-se o gato, seu único companheiro de serões. Era um animal tranquilo, de olhos interrogadores e andar sinuoso, que parecia ter perdido a faculdade de miar. Aprendera com a dona o silêncio e, como ela, a ele se abandonava.”
Em: Claraboia, José Saramago, Cia das Letras. Original de 1953, publicação póstuma em nova edição.
Batalha de Roncesvales, em 778: morte de Roland. c. 1455-1460
Jean Fouquet (França, ? – 1481)
Iluminura das Grandes Crônicas da França
Biblioteca Nacional da França, Paris
A Canção de Roland é um poema do século XI, talvez a mais antiga canção épica, que dá início à literatura francesa, mesmo tendo sido, na sua forma original, escrita em uma língua românica. A obra inspirou muitas outras criações sobre a França e circulou por toda a Europa. Ela narra a morte heroica de Roland, no campo de batalha de Roncesvales. A batalha aconteceu no dia 15 de agosto de 778, e Roland, que era sobrinho de Carlos Magno, comandava o exército da retaguarda, formado pelos Doze Pares de França, um grupo lendário de cavaleiros associados a Carlos Magno. Na tropa liderada por Roland os cavaleiros são: Roland, Olivier, Gérin, Gérier, Bérenger, Otto, Samson, Engelier, Ivon, Ivory, Anséïs e Girart de Roussillon. Mas em outros poemas e lendas da época, esses cavaleiros poderiam ser outros. Como há muitas versões da Canção de Roland, todas em manuscritos que deram por sua vez origem a outras tantas lendas, é difícil de precisar exatamente quem fazia parte desse exército ou aqueles cuja existência são pura lenda.
Roland morreu numa batalha na região basca da França. A tropa vinha da Península Ibérica onde lutava contra os sarracenos. Dependendo da versão os autores do massacre de Roncesvales, podem ser tanto bascos quanto muçulmanos. Sabe-se que essa batalha realmente ocorreu, está historicamente comprovada e em espírito pertence ao contexto das Cruzadas e da Reconquista cristã da Península Ibérica.
A morte de Roland, 1462
Iluminura em de manuscrito
Autor desconhecido
Bruges, Flandres [Bélgica]
Uma coisa interessante é que a Canção de Roland teve grande popularidade no Brasil no século XIX. Isso graças a um livro de um médico português, Jerónimo de Moreira Carvalho, que escreveu em 1737, portanto no século XVIII, uma continuação da Canção de Roland: Segunda parte da História do Imperador Carlos Magno e dos doze pares de França. Esse romance de cavalaria se tornou leitura de grande sucesso no Brasil do século XIX. Aliás, esse é um de dois portugueses que escreveram uma continuação de história de Carlos Magno. O outro, História nova do Imperador Carlos Magno, e dos doze pares de Françade José Alberto Rodrigues, impressa em Lisboa em 1742. Essa no entanto, não foi popular no Brasil.
Biografias de intelectuais famosos, pensadores, podem facilmente se tornar narrativas que se perdem nas explicações teóricas sobre as contribuições dos retratados. Essas podem desinteressar o leitor comum, nem sempre motivado para aulas teóricas na leitura de entretenimento. Ou, na tentativa de agradar a maior público esses livros podem pecar também ao passarem por cima de teoria representativa da contribuição dos biografados no intuito do texto ser melhor digerido pelo público não especializado. Esse não é o caso de O segredo de Espinosa, de José Rodrigues dos Santos [Planeta: 2023]. Esse é um livro muito bem escrito, cobrindo a vida do filósofo Baruch Espinosa, nascido na Holanda, judeu marrano de origem portuguesa. que trata por meio de diálogos, uma boa parte dos posicionamentos de Espinoza, fazendo-os acessíveis ao leitor sem entediá-lo.
Essas ponderações são ainda mais pertinentes quando se trata de uma obra que traz ao leitor o papel da religião no dia a dia, assim como na vida do Estado. Espinosa foi um dos grandes defensores da separação entre Igreja e Estado. Levando a racionalidade de Descartes a nível não imaginado anteriormente. Considerado o filósofo que abre a era da modernidade nos estudos filosóficos, ele está hoje entre os filósofos mais influentes do mundo atual. Toda essa importância poderia tornar O segredo de Espinosa difícil de ler, difícil de interpretar, mas José Rodrigues dos Santos fez um excelente trabalho cobrindo desde a infância de Espinosa até seus últimos dias.
Além de ser fiel aos argumentos de Baruch Espinosa, José Rodrigues dos Santos presenteia o leitor com deliciosas vinhetas da vida na Holanda do século XVII, historicamente confirmadas, assim como eloquentes cenas da política local, da população em revolta. Não se recusa tampouco a delinear com precisão as questões religiosas e culturais complexas da época.
“Ao longo da Breestraat viam-se as lojas e os armazéns a exibirem os produtos mais variados; muitos provenientes de empresas neerlandesas como a Companhia das Índias Orientais e a Companhia das Índias Ocidentais, outros de empresas portuguesas como a Carreira das Índias e a Companhia Geral do Comércio do Brasil, outros ainda de navios oriundos de Veneza, de Antuérpia, de Hamburgo ou de outros pontos, incluindo saques efetuados por corsários marroquinos. As prateleiras enchiam-se assim de porcelanas de Cantão e de Nuremberg, tapetes de Esmirna, tulipas de Constantinopla, sedas de Bombaim e de Lyon, pimenta das Molucas, sal de Setúbal, linho branco de Haarlem, lã de Málaga, faiança de Delft, sumagre do Porto, açúcar do Recife, madeira de Bjørgvin, tabaco de Curaçau, marfim de Mina, azeite de Faro. Havia ali de tudo e de toda a parte, como se o bairro português de Amsterdã fosse o bazar dos bazares, o mercado do mundo.“
José Rodrigues dos Santos
Esse é um romance histórico, uma biografia cuidadosamente construída, que explora a maneira como Espinosa desenvolveu levou adiante as ideias de Descartes. A obra afirma a retidão de seu caráter, expõe a maneira como as publicações se espalhavam no século XVII, e trabalha a narrativa de tal forma que o leitor não deseja parar de ler. Foi um presente conhecer esse autor português. Irei procurar outras de suas obras. Recomendo sem qualquer restrição, foi para minha lista de favoritos.
NOTA: este blog não está associado a qualquer editora ou livraria, não recebe livros nem incentivos para a promoção de livros.
“Pessoas assim, como este Sr. José, em toda a parte as encontramos, ocupam o seu tempo ou o tempo que creem sobejar-lhes da vida a juntar selos, moedas, medalhas, jarrões, bilhetes postais, caixas de fósforos, livros, relógios, camisolas desportivas, autógrafos, pedras, bonecos de barro, latas vazias de refrescos, anjinhos, cactos, programas de óperas, isqueiros, canetas, mochos, caixinhas de música, garrafas, bonsais, pinturas, canecas, cachimbos, obeliscos de cristal, patos de porcelana, brinquedos antigos, máscaras de carnaval, provavelmente fazem-no por algo a que poderíamos chamar angústia metafísica, talvez por não conseguirem suportar a ideia do caos como regedor único do universo, por isso, com as suas fracas forças e sem ajuda divina, vão tentando pôr alguma ordem no mundo, por um pouco de tempo ainda o conseguem, mas só enquanto puderem defender a sua coleção, porque quando chega o dia de ela se dispersar, e sempre chega esse dia, ou seja por morte ou seja por fadiga do colecionador, tudo volta ao princípio, tudo torna a confundir-se.”