Vaso com flores, 1988
Fang (China/Brasil, 1931)
gravura, 48 x 58 cm
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Tenho um fraco por esculturas. Num seminário em história da arte, há muitos anos, escrevi um artigo sobre o uso do espaço vazio, do vão, digamos assim, como parte vibrante das esculturas de Henry Moore e Giacometti: no trabalho de ambos e de maneiras diferentes, o que não está presente, o buraco (em Henry Moore) ou o espaço à volta (em Giacometti) tem uma função tão grande, tão intensa que faz parte da escultura que vemos, que analisamos, com o mesmo peso que as formas do bronze que nos fascinam. Este é o vazio positivo, sentido mas não visto, que conta com o ausente, tanto quanto com o que está exposto. Pensei nesse artigo, enquanto lia o romance de Fal Azevedo, Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite, Rocco: 2008. Nele, o que não é dito, conta. Fala. Nos move e comove. A eloquência desses pequenos silêncios pode ser vista no minúsculo parágrafo, que cito aqui por inteiro:
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“O gato amarelo veio fumar comigo. Ele morde meu dedão, charmosa tentativa de me convencer de ir até a cozinha. A coisa mais fofa nesse gato é que, quando eu choro, ele apoia a pata no meu rosto. Como agora.”
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O texto segue, com outro assunto, com outro momento.
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Quantas vezes ela precisou chorar para perceber esse comportamento do gato? Por que chorava? O conforto de um gato seria o único conforto dado à autora dessas frases? Não sabemos, não nos é explicado. Passamos rapidamente para o assunto seguinte. A vida é curta. Há muito acontecendo. O peso do passado também assombra. No entanto, o sofrimento implicado pelo texto fala alto. E nos cala. Fal Azevedo trabalha com a elipse, a omissão do sentimento retratado, assim como Henry Moore trabalhava com um buraco no meio do corpo de uma mulher reclinada. Tanto em um como no outro, cabe ao leitor/observador fazer a conexão, participando ativamente do encontro. Envolvendo-se. O resultado sedutor, mostra um texto, que carregado de tristeza, consegue ser leve, irônico e muito, muito agradável.
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Figura reclinada, década de 1980
Henry Moore ( Grã-Bretanha 1898-1976)
Litografia
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Presenciamos nesse romance a chegada de Alma, personagem principal, à segunda metade de sua vida. Aos 44 anos, já viveu muitas vidas e mortes. Homeopaticamente conhecemos um pouco destes eventos através de lembranças doloridas, de cicatrizes mal curadas. Tudo é passado a limpo: as dezenas de passados, as dúzias de vidas. Alma escrupulosamente exorciza seus fantasmas e nos lembra dos nossos. É impossível não ter empatia. É impossível ignorarmos a nós mesmos. O que lhe vem à mente, chega em pequenos parágrafos, camafeus de potencialidades perdidas, nódoas de sofrimento físico e emocional do passado que ajudam a caracterizar o dia a dia de um tempo mais atual, que também presenciamos. Estes são quase entradas em um diário, que têm, como pano de fundo, o passado. O estilo é sucinto. Twitter sucinto. A cada parágrafo um tempo, uma realidade. E sempre, sempre a angústia das vidas vividas. O medo. A dor. A consciência da solidão.
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De grande auxílio é o formato do texto: intercala o tempo mais contemporâneo com as lembranças do passado, em diferentes parágrafos. Cada qual tem sua própria aparência gráfica, o que facilita o entendimento da trama. Este artifício simplifica e esclarece também um quase fluxo de consciência que nos permite conhecer Alma intimamente. Conhecemos os eventos. Imaginamos as emoções.
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Apesar da tristeza latente, das dores auto-geradas e das auto-impostas, das frustrações e sofrimentos dessa mulher, uma artista plástica em busca de uma identidade profissional, esse romance é repleto de otimismo, de gosto pela vida e de humor. Oferece então, ao leitor, uma válvula de escape e um ponto de apoio nas lutas diárias pela sobrevivência física e emocional. Sem ser piegas, sem ser auto-ajuda essa história nos força a refletir sobre a nossa própria existência e nas ramificações dos nossos atos.
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Fal Azevedo
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Eu poderia continuar nesse tópico por muito tempo. De especial ironia são as cenas e os pensamentos na galeria de arte. Tão real… Mas quem não gostaria de ter os amigos de Alma como amigos? E de receber emails tão precisamente relevantes quanto ela? Tão irônicos e concisos? E quem não gostaria de ter como vizinho um Seu Lurdiano, que como um anjo da guarda, alimenta sua amiga com comida do corpo e da alma? Quem não gostaria de um amigo com quem se pode ficar calado por algumas horas na mais perfeita intimidade?
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Mas nenhum desses amigos, nenhum desses emails, se os tivéssemos, nada, conseguiria dar ao leitor o prazer desse texto e os parâmetros para a auto-reflexão que esse livro consegue gerar. Aqui fica a sincera recomendação para a leitura desse pequeno mundo mágico de Alma. Um dos melhores livros que li em 2010 e certamente um dos mais interessantes livros que li de autor brasileiro há muito, muito tempo. Não percam.
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