Fal Azevedo assombra em Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite

24 06 2010

Vaso com flores, 1988

Fang (China/Brasil, 1931)

gravura, 48 x 58 cm

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Tenho um fraco por esculturas.  Num seminário em história da arte, há muitos anos, escrevi um artigo sobre o uso do espaço vazio, do vão, digamos assim, como parte vibrante das esculturas de Henry Moore e Giacometti: no trabalho de ambos e de maneiras diferentes, o que não está presente, o buraco (em Henry Moore) ou o espaço à volta (em Giacometti)  tem uma função tão grande, tão intensa que faz parte da escultura que vemos, que analisamos, com o mesmo peso que as formas do bronze que nos fascinam.  Este é o vazio positivo, sentido mas não visto, que conta com o ausente, tanto quanto com o que está exposto.  Pensei nesse artigo, enquanto lia o romance de Fal Azevedo, Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite, Rocco: 2008.  Nele, o que não é dito, conta.  Fala.  Nos move e comove.  A eloquência desses pequenos silêncios  pode ser vista no minúsculo parágrafo, que cito aqui por inteiro:

O gato amarelo veio fumar comigo.  Ele morde meu dedão, charmosa tentativa de me convencer de ir até a cozinha.  A coisa mais fofa nesse gato é que, quando eu choro, ele apoia a  pata no meu rosto.  Como agora.”

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O texto segue, com outro assunto, com outro momento.

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Quantas vezes ela precisou chorar para perceber esse comportamento do gato?  Por que chorava?   O conforto de um gato seria o único conforto dado à autora dessas frases?   Não sabemos, não nos é explicado.  Passamos rapidamente para o assunto seguinte.  A vida é curta.  Há muito acontecendo.  O peso do passado também assombra.  No entanto, o sofrimento implicado pelo texto fala alto.  E nos cala.  Fal Azevedo trabalha com a elipse, a omissão do sentimento retratado,  assim como Henry Moore trabalhava com um buraco no meio do corpo de uma mulher reclinada.   Tanto em um como no outro, cabe ao leitor/observador fazer a conexão, participando ativamente do encontro.   Envolvendo-se.   O resultado sedutor, mostra um texto, que carregado de tristeza, consegue ser leve, irônico e muito, muito agradável.

Figura reclinada, década de 1980

Henry Moore ( Grã-Bretanha 1898-1976)

Litografia

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Presenciamos nesse romance a chegada de Alma, personagem principal, à segunda metade de sua vida.  Aos 44 anos, já viveu muitas vidas e mortes.  Homeopaticamente conhecemos um pouco destes eventos através de lembranças doloridas, de cicatrizes mal curadas.  Tudo é passado a limpo: as dezenas de passados, as dúzias de vidas.  Alma escrupulosamente exorciza seus fantasmas e nos lembra dos nossos.  É impossível não ter empatia.  É impossível ignorarmos a nós mesmos.  O que lhe vem à mente, chega em pequenos parágrafos, camafeus de potencialidades perdidas, nódoas de sofrimento físico e emocional do passado que ajudam a caracterizar o dia a dia de um tempo mais atual, que também presenciamos.  Estes são quase entradas em um diário, que têm, como pano de fundo, o passado.  O estilo é sucinto.  Twitter sucinto.  A cada parágrafo um tempo, uma realidade.  E sempre, sempre a angústia das vidas vividas.  O medo.  A dor.  A consciência da solidão.  

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 De grande auxílio é o formato do texto: intercala o tempo mais contemporâneo com as lembranças do passado, em diferentes parágrafos.  Cada qual tem sua própria aparência gráfica, o que facilita o entendimento da trama.  Este artifício simplifica e esclarece também um quase fluxo de consciência que nos permite conhecer Alma intimamente.   Conhecemos os eventos.  Imaginamos as emoções.

Apesar da tristeza latente, das dores auto-geradas e das auto-impostas, das frustrações e  sofrimentos dessa mulher, uma artista plástica em busca de uma identidade profissional, esse romance é repleto de otimismo, de gosto pela vida e de humor.  Oferece então, ao leitor,  uma válvula de escape e um ponto de apoio nas lutas diárias pela sobrevivência física e emocional.  Sem ser piegas, sem ser auto-ajuda essa história nos força a refletir sobre a nossa própria existência e nas ramificações dos nossos atos.  

  

Fal Azevedo

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Eu poderia continuar nesse tópico por muito tempo.  De especial ironia são as cenas e os pensamentos na galeria de arte.  Tão real…  Mas quem não gostaria de ter os amigos de Alma como amigos?  E de receber emails tão precisamente relevantes quanto ela?  Tão irônicos e concisos?  E quem não gostaria de ter como vizinho um Seu Lurdiano, que como um anjo da guarda, alimenta sua amiga com comida do corpo e da alma?  Quem não gostaria de um amigo com quem se pode ficar calado por algumas horas na mais perfeita intimidade?

Mas nenhum desses amigos, nenhum desses emails, se os tivéssemos, nada,  conseguiria dar ao leitor o prazer desse texto e os parâmetros para a auto-reflexão que esse livro consegue gerar.  Aqui fica a sincera recomendação para a leitura desse pequeno mundo mágico de Alma.  Um dos melhores livros que li em 2010 e certamente um dos mais interessantes livros que li de autor brasileiro há muito, muito tempo.  Não percam.





Luiz Verri, arte brasileira, nossa homenagem à Copa do Mundo

24 06 2010

Futebol, s/d

Luiz Verri ( Brasil, 1912-1990)

Óleo sobre tela, 65 x 50 cm