Minha profissão: Mathias José dos Santos Neto, professor de história

23 05 2011

Mathias José dos Santos Neto

 

Esta é a nona entrevista da série: Minha Profissão.  Veja na coluna ao lado, a série de links para cada uma das entrevistas anteriores.

 

Perfil

Sou um jovem professor de História tentando, através do magistério, contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e humana, apesar dos obstáculos e das dificuldades que se apresentam nessa caminhada.

Que tipo de trabalho você faz?

Sou professor de História do município de Duque de Caxias (com alunos do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental) e pelo Estado, lotado em Nova Iguaçu (com alunos do Ensino Médio).

Você trabalha no campo de sua formação profissional ou trabalha numa área diferente daquela para qual estudou?

Tenho Bacharelado e Licenciatura em História pela UFRJ e trabalho como professor há 7 anos.

Para o trabalho que você faz agora, o que poderia ter sido diferente no seu curso de formação?

Acredito que eu poderia ter tido um pouco mais de ênfase na área de Psicologia da Educação e suas consequências práticas em sala de aula. Mas, no Magistério, o maior aprendizado é sempre em sala de aula, na relação com o aluno.

 Mathias com algumas alunas.

O que você faz para continuar a se atualizar?

Busco me manter informado com leituras específicas da área de Educação, buscando conhecer a refletir sobre as novas tendências educacionais e pedagógicas. Também cursei uma Especialização em História da África pela UERJ, e cursei pós-graduação “latu sensu” em História do Brasil pós-1930 pela UFF. Acredito que o professor, ainda que com todas as dificuldades, tem obrigação de sempre tentar manter-se atualizado na sua área.

Você precisa usar alguma língua estrangeira frequentemente?

Somente em algumas leituras mais específicas (artigos estrangeiros, etc.), principalmente em inglês.

Que conselho daria a um adolescente que precisa decidir que carreira escolher?

Que escolha com o coração e a razão. Busque a profissão que mais tenha ligação com sua maneira de pensar. Analise as condições da profissão no mercado, não só no campo financeiro, mas que ofereça desafios e ao mesmo tempo, satisfação de poder realizar algo em que acredita e se identifica.

Você tem um lugar na internet que gostaria de mostrar para os nossos leitores? Um blog, twitter?

Ainda não. Mas penso sim em criar um blog onde se discutam temas como Educação, Política, História, Cidadania, etc. Por enquanto, falta tempo.

Mathias com colegas de trabalho.





Só um computador por aluno, não resolve.

9 02 2011
Cliente em restaurante de Patópolis, ilustração Disney.

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Ano passado tive a mão direita enfaixada e na tipóia por 20 dias.  A todo lugar que ia, precisava de ajuda.  Por causa disso vi-me em conversas variadas com quem quer que me auxiliasse  no banco,  nos correios, no restaurante, supermercado, taxi, elevador, portão, ônibus.  O povo carioca é muito gentil e engrena um papo num minuto, sem quaisquer restrições de sexo, idade, cor, classe social.  Todos sofrem irmãmente com você e se não tiveram uma experiência igual a sua, alguém da família teve.  A solidariedade é grande e a comiseração imediata.  Foram 3 semanas de bate-papos, em que aprendi muito sobre  jovens trabalhadores, calorosos e gentis, de boa índole,  mas com pouca instrução, que passam os dias fazendo entregas de supermercados e farmácias,  limpando mesas de restaurantes, trabalhando nos caixas das quitandas.  Jovens entregues ao setor de serviços na categoria que exige o menor conhecimento técnico.   A maioria vinha de famílias modestas e não passava dos  25 anos.  Fiquei impressionada com a ingenuidade e o desconhecimento cultural deles como um grupo, uma geração, digamos.

Nas conversas vi uma geração inteira, esquecida e despreparada. Exemplos abundam.   A mocinha garconete do restaurante a quilo; o rapaz que abriu um refrigerante em lata, o entregador da farmácia.  A cada um deles expliquei sobre o desgaste dos meus tendões por uso do computador.   Invariavelmente a conversa versava sobre computadores.  Todos diziam gostar muito de computadores.  Gostam do Orkut, do MSN, que usam para zoar os amigos, trocar piadas, fotos, juras de amor e de jogos, pricipalmente “aquele de dirigir um carro”, definitivamente o mais popular.

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Valdirene, uma das jovens trabalhando no caixa de um supermercado foi a única que me confessou querer sair daquele emprego.  Os outros não tinham idéia do que fazer mais tarde, daí a uns 5 anos, por exemplo.   Valdirene queria  fazer o  curso de auxiliar de enfermagem para poder trabalhar como acompanhante de pessoas idosas.  “Não precisa diploma”, ela se apressou a me dizer, “mas com um, a gente pode pedir um pouco mais…”   Ela também — A-DO-RA! —  computadores, vota no BBB, conversa com amigos no MSN, baixa músicas e troca  fotografias com as colegas, que tira com o telefone celeular.  Gosta das  fofocas da televisão.  Valdirene aos 23 anos já tem um filho na escola e nenhum marido.   

Histórias como essas, todos nós conhecemos.  São milhares no Rio de Janeiro e  alguns milhões no país.  Impressiona a falta de perspectiva de trabalho e de um futuro com uma vida plena.  E infelizmente com a taxa de natalidade alta, é uma realidade que se multiplica.  Como será a vida do filho de Valdirene?    Com a  crise na Tunísia e o artigo de Thomas Friedman que li  no New York Times: China, Twitter and 20-year olds vs. The Pyramids, publicado no sábado, o assunto voltou a me preocupar.  Essa combinação de sub-emprego e de desconhecimento me lembra da necessidade de termos escolas- relevantes.  Ou seja,  uma escola que prepare o jovem para uma profissão que lhe dê interesse na vida, um interesse intelectual mínimo.  Além é claro de um sustento.   Caixa de super-mercado, entregador de compras não são profissões, são castas.   

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Zé Carioca ri dos empregos oferecidos no jornal.  Ilustração Disney.

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Thomas Friedman tem nos avisado há tempos das diferenças do mundo de hoje para o do século passado.   Seu livro O Mundo é Plano: uma breve história do século XXI já deveria há muito tempo ter  alarmado  e alertado a todos nós para os problemas que as falhas do nosso sistema de educação, aqui no Brasil,  trariam se não tomássemos decisões radicais,  imediatamente.   Mas alguns anos se passaram, quem leu o livro se assustou, comentou, mas nada fez.  E tudo acabou diluído,  como se a realidade ali descrita só afetasse aos outros, que o Brasil, terra abençoada, estava seguro.  Não é o caso.  Agora, Friedman nos lembra, nessa excelente coluna de sábado, que é justamente a frustração de jovens aos 20 anos, desempregados ou sem futuro, que está fazendo governo após governo do Norte da África,  do Egito ao Oriente Médio tremer.  E cair.  Não há e não haverá mais, no futuro próximo, lugar para ditadores que determinem o que as pessoas possam ou não saber.  Não há mais lugar para o plantio e o cultivo da ignorância.   E há de haver uma maneira de se pensar empregos decentes.

Uma combinação de fatores intrigantes e combinados levam às revoluções que presenciamos: a maneira de nos comunicarmos está cada vez mais rápida e mais fácil; a falta de perspectiva de uma vida com emprego para os formados e os não formados; o custo dos alimentos e outros produtos essenciais que tendem a subir a medida que a China  e a Índia crescem e precisam de mais e mais grãos, açúcar, minério de ferro, petróleo e todos os outros ingredientes necessários ao bem estar de 1.324.655.000 de chineses e  na  Índia 1.147.995.898, pessoas. 

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Dona Marocas dá uma prova no primeiro dia de aula de Chico Bento, ilustração Maurício de Sousa.

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Nesse meio tempo, no Brasil, debatemos o que fazer sobre a educação.  Com exemplos vergonhosos na admnistração do MEC, — o caso do ENEM é só a cereja do bolo —  que demonstram não só o contínuo descaso com o cidadão mas a ineptitude das  admnistrações que vêm e que vão, vemos que tudo não passa de blá, blá, blá.  Se pensarmos no que um ano — só 2010 — de noticário nos indica, a realidade é cruel demais para palavras: diplomas comprados a escolas inexistentes, falta de manutenção nas escolas, que têm goteiras nos dias de chuva e temperaturas de 40ºC dentro da sala de aula;  computadores fechados à chave  nas escolas por falta de quem saiba usá-los;  escolas sem bibliotecas, sem laboratórios,  sem água, sem giz, sem papel-higiênico;   drogas e  armas; violência de alunos contra profesores e vice-versa;  greves e mais greves de professores, de alunos.   Não dá para se imaginar, nem por devaneio, que haja interesse de qualquer governo em melhorar a educação no país.

Mas parece que achamos uma solução universal para os nossos problemas.  A nossa solução para as futuras gerações é um computador para cada aluno como planeja o governo federal.  Maravilhoso!  Não sou contra a democratização da computação.  Muito pelo contrário.  Mas se não conseguirmos ensinar a pensar, o aluno não ganhará nada além de mais uma “maquininha de relacionamentos” que facilita a troca de recados amorosos ou  picantes, “a espiadinha” num programa de televisão,  na vida do vizinho, os encontros da torcida de futebol.    O computador, todos nós sabemos, não resolverá nada, se os alunos  não souberem fazer as perguntas necessárias, se não souberem consultar a imensa quantidade de informações a que podem ter acesso. 

Meu problema com a solução do computador por aluno é a falsa sensação de que se está resolvendo o caos da educação.  Conheço professores que não conseguem ainda assimilar bem o uso do computador para seu próprio benefício.   O que acontecerá quando esses professores tiverem que incluir em suas aulas os computadores do governo?  Além disso, quem fará a manutenção desses computadores? 

O computador é uma excelente FERRAMENTA de ensino, mas sozinho com o aluno, o que irá trazer para o dia a dia é a fofoca da classe, as fotos dos colegas na piscina, o resultado do futebol.  Não tenho nada contra seu uso como entretenimento.  Entretenimento faz parte da vida.  Mas será que os nossos computadores virão com uma programação para que se aprenda a pensar?  Espero que sim.  Pois do contrário, estaremos não só nos enganando como enganando mais uma vez  uma geração inteira de jovens que continuarão sem futuro, sub-empregados, sem motivação, gerando cada vez mais crianças para um futuro semelhante ou pior.





As quatro operações: DIVISÃO, poesia infantil de Bastos Tigre

9 10 2010

Divisão

—                                   Bastos Tigre

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Operação que tem arte

É por certo a Divisão

Ela é que parte e reparte

Com justiça e retidão.

Dividendo, divisor,

Quociente e resto também.

Mas se a conta exata for,

Direi que resto não tem.

Se o divisor for maior

Do que o dividendo, então,

(A regra sei eu de cor)

O quociente é fração.

Se Deus e os homens amais

Dividi,  fazendo o bem:

Dá o que tendes demais

Aqueles que nada têm.

Em: Antologia Poética, vol. I, Rio de Janeiro, Ed. Francisco Alves: 1982





As quatro operações : MULTIPLICAÇÃO, poesia infantil de Bastos Tigre

9 10 2010

Multiplicação

            Bastos Tigre

Sou a Multiplicação.

Faço do “mais”, muito mais.

Numa espécie de adição

Tendo parcelas iguais.

Os dois fatores escrevo

E multiplicando os dois

Tenho os produtos e devo

A soma achar-lhes depois.

Se o dinheiro eu multiplico,

Muito bem isso me faz;

Mas não adianta ser rico

Faltando a saúde e a paz.

Em: Antologia Poética, vol. I, Rio de Janeiro, Ed. Francisco Alves: 1982





As quatro operações : SUBTRAÇÃO, poesia infantil de Bastos Tigre

9 10 2010

Subtração

            Bastos Tigre

Eu sou a Subtração.

É diminuir o meu fim.

 Saibam que essa operação

Não tem segredos para mim.

Dez menos sete são três;

Seis menos dois, quatro são.

E, de quatro tirar seis.

Pode ser?  Não pode, não!

Mas infeliz de quem ousa

Cometer o crime feio

De subtrair uma cousa

Que pertence ao bolso alheio.

Em: Antologia Poética, vol. I, Rio de Janeiro, Ed. Francisco Alves: 1982





As quatro operações : ADIÇÃO, poesia infantil de Bastos Tigre

9 10 2010

 

Adição

            Bastos Tigre

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Eu sou a Adição.  Reúno

As parcelas e, afinal,

Como sou um bom aluno,

Depressa encontro o total.

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Quatro mais cinco são nove;

Mais treze são vinte e dois

E se quiserem que eu prove,

A prova farei depois.

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A mestra nunca se esquece

Desta regra nos lembrar:

Só coisas da mesma espécie

É que podemos somar.

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Somando pêra e mamão,

Uva, banana e laranja,

Em lugar de uma adição

Uma salada se arranja.

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Em: Antologia Poética, vol. I, Rio de Janeiro, Ed. Francisco Alves: 1982





Amo o Brasil, poesia de Bastos Tigre para a semana da pátria

31 08 2010

Mickey e Pateta vão ao Brasil, Ilustração Walt Disney.

 

Amo o Brasil

                                     Bastos Tigre

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Amo este céu constelado

Céu do Brasil — manto azul —

Sobre ele, em ouro bordado,

Vê-se o Cruzeiro do Sul.

Amo estas matas virentes

Verdes, de eterno verdor

Onde há frutos recendentes,

De delicioso sabor.

Amo esta água cristalina

Dos rios, viva, a correr,

Fazendo mato e campina

Serra e vale florescer.

As belas árvores amo,

Povoadas de passarinhos,

Onde a vida em cada ramo

Palpita em flores e ninhos.

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Água e mata, céu e terra

Flores do campo gentis,

Amo tudo quanto encerra

Meu grande e belo País.

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Amo as amáveis cantigas

Que ouvi, criancinha, a cantar,

 Em doces vozes amigas,

No berço me acalentar.

Amo a nossa gente boa

Feita só de coração,

Que, por vingança, perdoa

E esquece por compaixão.

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Amo os nomes bem-fadados,

Dos que lutaram por nós;

Dos nossos antepassados,

Avós dos nossos avós.

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Poetas, sábios e guerreiros

Que a história em seus livros traz,

Nobres heróis brasilleiros

Grandes na guerra e na paz.

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Em tudo que amo e bendigo

A minha pátria se vê.

Amo, porque amo!  Não digo

Nem que me perguntem por quê.

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Amo os meus pais.  Necessito

Dizer por que amo os meus pais?

Assim proclamo, assim grito:

Amo o Brasil!  Nada mais.

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Sinto-o em mim, no mais profundo

Da minh’alma juvenil.

Adoro a Deus; e no mundo

Amo, adoro o meu Brasil.

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Em: Antologia Poética, Rio de Janeiro, Ed. Francisco Alves: 1982

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Firmo, o vaqueiro, conto de Natal de Coelho Neto, texto integral

21 12 2009

A vida no campo, vaquejada, 1960

Ernest Zeuner ( Alemanha, 1898 — Brasil, 1967)

Têmpera sobre papel,  25,5 cm  x 36,5 cm

Museu Ado Malagoli, Porto Alegre, RS

Firmo, o vaqueiro

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Coelho Neto

Sentados na soleira da palhoça, em face do verde campo, à hora vesperal em que os rebanhos recolhem, o velho Firmo e eu fumávamos, relembrando passagens alegres da vida de outrora.

Firmo era meu companheiro quando eu ia passar as férias na roça.  O que ele sabia de histórias, e como as contava fazendo a voz enternecida e meiga para imitar as princesas que imploravam ou arremetendo com vozeirão terrível para que eu tivesse a impressão exata do bradar horrível dos gigantes antropófagos.  E não só história dos livros, outras sabia que eu jamais em letras vira: a que descrevia a vara branca seduzindo o remador do Itapicuru e o conto do sucupira, com que no bom tempo faziam cessar a minha impertinência.  Algumas eram inventadas por ele, diziam;  outras o velho Firmo, vaqueano e andejo, aprendera por esses sertões de Deus por onde caminhara.

Andava pelos oitenta anos, mas quem o visse a cavalo, no campo, não lhe daria tanta idade.  O diabo era o reumatismo que não lhe deixava as pernas.  No seu tempo ninguém levava o melhor ao Firmo do Curral Novo.  Raparigas, que uma vez o viam montado no garboso fábrica, o laço em volta da cinta, a aguilhada firme sobre a coxa coberta de couro cru, perdiam-se de amor por ele.

Era um caboclo atirado, musculoso e rijo: grandes olhos negros brilhavam no seu rosto queimado pelos verões e os cachos do seu cabelo rolavam-lhe pelos ombros largos.

Velho, embora, “ninguém lhe chegava ao pé sem muito jeito”, como ele próprio dizia sorrindo som os seus dentes limados, agudos como pontas de frechas.  Apesar de alquebrado e enfermo andava com arrogância e notava-se-lhe na voz, áspera e forte, o hábito de comando.

Em tempos de festa, quando vinham para a mesma eira moças do lugar e moças de mais longe, Firmo saltava na roda, sapateando, rasgando na viola a tirana dos campeiros, e quem ousava pegar no verso do caboclo?!  As tabaroas morenas sorriam com os olhos fascinados e unidas desfaziam-se das flores para que o cantador as fosse pisando no sapateado… por isso o Firmo andava sempre de ponta com os companheiros e, mais uma vez, o descante acabou varrido à faca; mas quem ficasse do lado do caboclo podia estar descansado – nunca fugiu de arreliam fosse com um, fosse com dez ou mais.

Mãezinha, a velha mucama de casa, quando o via passar no caminho, curvado pitando o seu cachimbo de taquara, dizia maliciosa:

—  Isso, ahn!  isso, foi o diabo!

Firmo “vivia encostado no tempo de dantes”, a saudade era o seu conforto.  “Hoje em dia qu’é que a gente vê? má língua e moleza só”, dizia e citava os valentes de antanho e mostrava as velhas gabando-lhes a beleza que a idade fanara: “Serapião, homem que nem o diabo!… Ana Rosa, essa curumba… foi mulata de dengue, era um motim aqui em cima por causa dela.  Filomena, com essa cara de peixe moqueado, teve o seu luxo e foi gente…  Eu também pisei duro, ora!”

Firmo vivia das recordações.  Passava os dias caminhando de um para o outro lado, visitando as palhoças, ou à beira do rio para ver e ouvir as lavadeiras, quando não se metia a fazer bodoques para as crianças.

À tarde sentava-se em um pilão quebrado, à porta da casa, e deixava-se estar inerte, os olhos ao longe: “Estava vivendo…” dizia quando eu lhe perguntava que fazia ali sozinho.  Estávamos, às vezes, sentados juntos, ele a contar-me histórias, quando nos chegava, nítido e agudo, o grito do campeiro.  Firmo calava-se, um estremecimento agitava-o, os olhos dilatados recobravam o brilho antigo e punha-se de pé, devassando a paisagem triste, à luz crepuscular.

De repente aprecia a nuvem de poeira anunciando o gado que chegava…  uma mancha vermelha, uma mancha negra, outra e logo o magote, os bois juntos, emaranhando os chifres: um mugia, outros imitavam-no levantando os focinhos ou ferravam-se às marradas, sendo, às vezes, necessária a intervenção do vaqueiro que apartava os dois à ponta de vara.  E a marcha aproximava-se morosa.

Firmo ficava enlevado acompanhando os movimentos da manada, inclinando-se para um lado, para o outro, aspirando sôfrego.  De repente batia as palmas e juntava, logo em seguida, as mãos na boca à guisa de porta-voz, bradando:

—  Eh! eh! eh! cou!  ruma!  ruma!  Eh! cou…

E ficava longo tempo excitado, a olhar.  Não perdia uma só das peripécias e, se um touro espirrava, correndo aos galões pela campina, o velho entrava a bramar do outeiro, tão alto, tão alto, que as raparigas, que andavam na eira recolhendo a roupa ou socando o arroz, paravam assustadas erguendo os olhos para o lado da palhoça do vaqueiro velho.  Mas ninguém o acomodava antes de ser laçado o boi fujão e quando o vaqueiro aparecia, arrastando o animal laçado,  Firmo suspirava baixinho:

—  Ah!  Nossa Senhora!  meu tempo!

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Camponês com cavalo, 1948

José Marques Campão (Brasil, 1892-1949)

óleo sobre tela, 54 x 65 cm

Coleção Particular

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Foi pelo Natal que o vi pela última vez.  Começavam os preparativos da festa, quando cheguei ao sitio.  Nas casas dos escravos, às vezes, à noite, ensaiavam as crianças.  Na eira os rapazolas preparavam jiraus; colhia-se o arroz novo para os presepes e de todos  os lados, mal o sol fugia, começavam as toadas das cantigas ao Deus Menino e as falas dos infantes que figuravam no Mistério.

Firmo estava doente, mal podia mover-se: passava os dias na rede.  Subi a vê-lo, uma noite justamente na véspera do grande dia. Encontrei-o deitado, fumando, os olhos semi-cerrados.

—  Eh! vaqueiro velho…  Então que é isso?!

—  Estou derrubado, patrãozinho.

—  Mas que diabo tem você?

— Moléstia má, patrãozinho; parece que desta feita vou mesmo.

—  Ora qual…

—  Eu é que sei como me sinto, patrãozinho.  Se até o pito me faz nojo…

—  Pois eu preparei uma surpresa que te vai fazer mais bem do que todas as mezinhas de mãe Tude.   Quem está aí fora?  adivinha…

—  Ah! Patrãozinho, alguma alma boa…  Quem há-de ser?!

—  Raimundinho.

O velho sacudiu-se novamente na rede e, voltando-se para a porta com um sorriso, perguntou:

—  E onde está esse negro que não entra?

—   Boa noite à gente da casa!  Disse da porta o cafuzo.

— Entra, negro!

O cafuzo, um codoense da fama, atravessou o limiar da porta:

— Então, tio Firmo, a febre pode mais, hein?!

—  Sim porque eu não vi quando ela entrou… quando não!  Então, negro, que é que vamos fazendo?…

— Vim fazer minha festa.  Dizem que vão queimar fogaréus em Curral Novo

—  Como vai Noca?

—  Boa.

—  E Ana?  está na cidade, mais o pai?

—  Hen, hen, afirmou o cafuzo.

—  Negro, você não vai daqui hoje.  Ah!  Patrãozinho, vosmecê vai ver o que é um diabo.  Negro, ajunta a madeira ali atrás da arca…

—  Está encordoada?

—  O danado!  Onde você viu viola sem corda?   e afinada, ajunta.

—  O codoense agachou-se, apanhou a viola do vaqueiro e logo correu os dedos ágeis pelas cordas.

—  Passa p’ra luz, cafuzo.

—  Lá vou…

Sentou-se no centro da mesa, cruzou as pernas e, tombando a cabeça, gemeu a toada sertaneja.

—  Anda com Deus.

— Lá vai;  pigarreou e desferiu:

“ No coração de quem ama

Nasce uma flor que envenena”

— Eh!  gritou o Firmo entusiasmado, concluindo a quadra:

“Morena, essa flor que mata

Chama-se paixão, morena…”

— Pega, negro… não deixa o verso no chão!

De fora, contínuo e doce, vinha o coro longínquo das crianças em louvor de Jesus e, de vez em vez, reboava o mugido de um touro.

Quando o cafuzo descansou a viola, Firmo disse da rede com esforço, arrastando a voz fraca:

— Canta, canta mais, cafuzo…  Quem não tem Nosso Pai ouve a cantiga.  Canta.

Era tarde quando desci o outeiro.  Raimundinho lá ficou cantando.

No dia seguinte, à hora em que saía o gado, estava eu debruçado à varanda quando vi o cafuzo que preparava o animal viageiro:

—  Raimundinho, como vai ele?…

De longe apontou a palhoça:

—  Sim.

O braço caiu-lhe, olhou-me algum tempo comovido; depois saltando para o animal, levou o polegar à boca fazendo estalar a unha nos dentes:  “ Às quatro da manhã…  Atirei um verso e disse, para bulir com ele:  Pega, velho!  Não respondeu.  Tio Firmo, mesmo velho e doente, não era homem para deixar um verso no chão…  Fui ver, coitado!  Estava morto”.  E deu esporas para que não lhe visse as lágrimas.

Subi ao outeiro…  Pobre Firmo!  Lá estava no fundo da rede, cercado de gente.  Guardara o sorriso, morrera feliz, ouvindo os cantos do seu tempo e bem perto de casa o mugido dos rebanhos.  E bem que o choraram nessa noite os grandes bois, e diziam, entretanto, que eles estavam louvando o Senhor Menino; chorando o companheiro é que eles estavam, os grandes bois que pressentem todas as desgraças e que vêem a Morte passar, à noite, com a foice de rastro, através das campinas!  Bem que choraram nessa noite os bois: decerto viram a morte entrar na cabana de Firmo.

*  *  *  *  *

Henrique Maximiano Coelho Neto (Caxias, 21 de fevereiro de 1864 — Rio de Janeiro, 28 de novembro de 1934) escritor, político, professor, romancista, contista, crítico, teatrólogo, memorialista e poeta.  Usou entre outros os  seguintes pseudônimos:  Anselmo Ribas, Caliban, Ariel, Amador Santelmo, Blanco Canabarro, Charles Rouget, Democ, N. Puck, Tartarin, Fur-Fur, Manés.  Foi provavelmente o prosador brasileiro mais lido nas primeiras décadas do século XX, tendo sofrido furiosos ataques do Modernismo posterior à Semana de Arte Moderna de 1922, o que provavelmente colaborou no injusto esquecimento que o mercado editorial e os leitores brasileiros tem-lhe reservado. Para o cinema, escreveu o que seria o primeiro filme brasileiro em série, Os mistérios do Rio de Janeiro, do qual só foi terminado e lançado o primeiro episódio.

Obras:

Romance Bárbaro (1914)

O Mistério (1920)

Fogo fátuo, romance, (1929)

Álbum de Caliban, contos, (1897)

Contos da vida e da morte, contos, (1927)

Mano, Livro da Saudade, romance, (1924)

A cidade maravilhosa, contos, (1928)

O polvo, romance (1924)

A descoberta da Índia, narrativa histórica, (1898)

O Fruto, contos, (1895)

O rei fantasma, romance, (1895)

O Rajá de Pendjab (1898)

Rapsódias, contos, (1891)

Sertão (1897)

A Bico de Penna

Água de Juventa, contos,

Romanceiro (1898)

Theatro, vol. I – Os Raios X (1897), O Relicário (1899), O Diabo no corpo(1899)

Theatro, vol. II – As Estações, Ao Luar, Ironia, A Mulher, Fim de Raça (1900)

Theatro, vol. IV – Quebranto (1908), comédia em 3 actos, e o sainete Nuvem

Theatro, vol. V – O dinheiro, Bonança (1909), e o Intruso

Fabulário

O Arara, (1905)

Jardim das Oliveiras, (1908)

Esfinge, romance, 1908

Inverno em Flor, romance, (1897)

Apólogos, contos para crianças

Miragem, romance, (1895)

Mysterios do Natal, contos para crianças

O Morto, Memórias de um Fuzilado, romance, (1898)

Rei Negro (1914)

Capital Federal, Impressões de um Sertanejo, romance, (1893)

A Conquista, romance, (1899)

Tormenta, romance, (1901)

Tréva

Banzo, contos, (1913)

Turbilhão (1904)

O meu dia

As Sete Dores de Nossa Senhora

Balladilhas, contos, (1894)

Pastoral

Vida Mundana, contos, (1919)

Patinho torto (1917)

Às quintas

Scenas e perfis

Feira livre

Immortalidade, lenda, romance, (1926)

O Paraíso (1898)

Bazar

Fogo Fátuo (1930)

fogo de vista (1923)

Theatro lyrico

os pombos

Teatrinho (1905), coletânea de textos dramáticos para crianças, parceria com Olavo Bilac

Teatro infantil, data ignorada, nova coletânea com o mesmo tema





Canto de Natal — poema de Manuel Bandeira

7 12 2009

Nascimento de Jesus

Arte folclórica dos Estados Unidos, anônimo

 

Canto de Natal

 

                                                                          Manuel Bandeira

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O nosso menino

Nasceu em Belém

Nasceu tão-somente

Para querer bem.

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Nasceu sobre as palhas

O nosso menino.

Mas a mãe sabia

Que ele era divino.

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Vem para sofrer

A morte na cruz,

O nosso menino.

Seu nome é Jesus.

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Por nós ele aceita

O humano destino:

Louvemos a glória

De Jesus menino.

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Em: Bandeira, antologia poética, Rio de Janeiro, José Olympio:1978, 10ª edição.

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Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho (Recife, 19 de abril de 1886 — Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1968)  poeta, crítico literário e de arte, professor de literatura e tradutor brasileiro.

Obras:

3 Conferências sobre Cultura Hispano-americana,  1959  

50 poemas escolhidos pelo autor , 1955  

A Autoria das Cartas Chilenas, 1940  

A Cinza das Horas, 1917  

A Cópula, 1986  

A Leste do Éden, 1958  

A Morte, 1965  

A Versificação em Língua Portuguesa    

Alumbramentos, 1960  

Andorinha, Andorinha  1965  

Antologia de Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos  1946  

Antologia dos Poetas Brasileiros da Fase Parnasiana  1938  

Antologia dos Poetas Brasileiros da Fase Romântica  1937  

Antologia dos Poetas Brasileiros: fase moderna  1967  

Antologia dos Poetas Brasileiros: Fase Simbolista  1937  

Antologia Poética  1961  

Apresentação da Poesia Brasileira  1944  

Auto Sacramental do Divino Narciso, de Sóror Juana Inés de la Cruz    

Carnaval  1919  

Cartas de Mário de Andrade a Manuel Bandeira  1958  

Colóquio Unilateralmente Sentimental  1968  

Crônicas da Província do Brasil  1937  

De Poetas e de Poesia  1954  

Discurso de Posse de Manuel Bandeira na Academia Brasileira de Letras  1941  

Em Busca do Verso Puro, de Pedro Henríquez Ureña  1946  

Estrela da Manhã  1936  

Estrela da Tarde  1960  

Estrela da Vida Inteira  1966  

Flauta de Papel  1957  

Francisco Mignone  1956  

Glória de Antero  1943  

Gonçalves Dias  1952  

Guia de Ouro Preto  1938  

Itinerário de Pasárgada  1954  

Itinerários  1974  

Libertinagem  1930  

Literatura Hispano-americana  1949  

Macbeth, de Shakespeare  1958  

Mafuá do Malungo  1948  

Maria Stuart, de Schiller  1955  

Mário de Andrade: animador da cultura musical brasileira  1954  

Meus Poemas Preferidos  1967  

Noções de História das Literaturas  1940  

Noturno do Morro do Encanto  1955  

O Melhor Soneto de Manuel Bandeira  1955  

Obras Poéticas  1956  

Obras Poéticas de Gonçalves Dias  1944  

Obras-primas da Lírica Brasileira  1943  

Opus 10  1952  

Oração de Paraninfo  1946  

Os Reis Vagabundos  1966  

Panorama das Literaturas das Américas  1958  

Pasárgada  1960  

Poemas Traduzidos  1945  

Poemas-gráficos: 3 ensaios tipográficos no centenário do poeta  1986  

Poesia do Brasil  1963  

Poesia e prosa  1958  

Poesia e Vida de Gonçalves Dias  1962  

Poesias  1924  

Poesias completas  1940  

Poesias Escolhidas  1937  

Poesias, de Alphonsus de Guimaraens  1938  

Portinari  1939  

Recepção do sr. Peregrino Júnior  1947  

Recordações de Manuel Bandeira nos Arquivos Implacáveis de João Condé  1990  

Rimas, de José Albano  1948  

Rio de Janeiro em Prosa & Verso  1965  

Rubaiyat, de Omar Khayyan  1965  

Sonetos Completos e Poemas Escolhidos, de Antero de Quental  1942  

Um Poema de Manuel Bandeira  1956





O presépio — poema de Natal de Joaquim Serra

5 12 2009

O presépio

                                                  Joaquim Serra

——

Na palhoça iluminada,

Que fica junto da ermida,

Des que a missa foi cantada

Se congrega a multidão;

Toldo de mirta florida,

Flores de mágico aroma

Ornam o presépio, que toma

Na sala grande extensão.

—-

Quão lindo está!  Não lhe falta

Nem o astro milagroso

Que de repente brilhou;

Nem o galo, que o repouso

Deixara por noite alta

E que inspirado cantou!

——-

Tudo o que a lenda memora

E consagra a tradição,

Vê-se ali, grosseiro embora,

Despido de perfeição.

——

Céu de estrelinhas douradas,

Estrelas de papelão;

Brancas nuvens fabricadas

Da plumagem do algodão!

Anjos soltos pelos ares,

Peixes saindo dos mares,

Feras chegando do além.

Marcha tudo, e vêm na frente

Os Reis Magos do Oriente

Em demanda de Belém.

——-

É esta a lapa; o Menino

Nas palhas está deitado,

Com um sorriso de alegria

Todo doçura e amor!

——

Contempla o quadro divino

São José ajoelhado,

E a Santíssima Maria

De Jericó meiga flor!

——

Trajando risonhas cores

Com muitos laços de fitas,

Rapazes, moças bonitas

Formam grupos de pastores.

———-

Que curiosos bailados,

Com maracás e pandeiros!

E o ruído dos cajados

Desses risonhos romeiros!

——–

Essa quadrilha dançante,

Cantando versos festivos,

Aos pés do celeste infante

Vai depor seus donativos:

———

Frutas, doces, sazonadas,

Ramilhetes de açucenas,

Cera, peles delicadas,

Pombinhos de brancas penas.

—–

São as joias que os pastores

Dão ao Deus onipotente!

E o povo aplaude os cantores

E o espetáculo inocente.

———

Eis o presepe singelo

Da devoção popular;

Oratório alegre e belo

Sagrado risonho altar!

——

——

Em: Poesia Brasileira para a Infância, de Cassiano Nunes e Mário da Silva Brito,  São Paulo, Saraiva: 1969.

—–

——

Joaquim Serra

——

—–

Joaquim Maria Serra Sobrinho ( MA 1838 — RJ 1888) jornalista, professor, político e teatrólogo.  Pseudônimos: Amigo Ausente, Ignotus, Max Sedlitz, Pietro de Castellamare, Tragaldabas.  Foi um intelectual muito ativo na segunda metade do século XIX.  Abolicionista, trabalhou lado a lado com Joaquim Nabuco, Quintino Bocaiuva e José do Patrocínio para o fim da escrevidão. 

Obras:

A capangada, sem data, séc. XIX

A pomba sem fel, sem data, séc. XIX

As Cousas da moda, sem data, séc. XIX

Epicedio à morte de Manuel Odorico Mendes, sem data, séc. XIX

O jogo das libras, sem data, séc. XIX

O remorso vivo, sem data, séc. XIX

Quem tem boca vai a Roma

Rei morto, rei posto

Biografia do ator brasileiro Germano Francisco de Oliveira, 1862

A coalisão, 1862

Julieta e Cecília, contos, 1863

Mosaico, poesia traduzida, 1865

O salto de Leucade, 1866

A casca da caneleira, romance de autoria coletiva, cabendo a J.S. a coordenação, 1866

Um coração de mulher, poema-romance, 1867

Versos de Pietro de Castellamare, 1868

Semanário maranhense, 1867

Quadros, poesias, 1873

Almanaque Humorístico Ilustrado, 1876

Diário oficial do império do Brasil, 1878

O abolicionista, 1880

Sessenta anos de jornalismo, a imprensa no Maranhão, 1820-80, por Ignotus, 1883

O coroado, 1887

Poesias e poemas, 1888

Os melros brancos, 1890