Saudade…Perfume triste
de uma flor que não se vê.
Culto que ainda persiste
num crente que já não crê.
(Menotti Del Picchia)
Saudade…Perfume triste
de uma flor que não se vê.
Culto que ainda persiste
num crente que já não crê.
(Menotti Del Picchia)
[Tiragem póstuma por Reynal]
Oswaldo Goeldi (Brasil, 1895-1961)
Xilogravura policromada
Menotti del Picchia
Amanhã eu vou pescar.
Há um peixe fatalizado
que a Ritinha vai guisar
na panela de alumínio
que brilha mais que o luar.
Hoje ele está no seu líquido
e opaco mundo lunar,
pequena seta de prata
furando a carne do mar.
Qual será? O bagre flácido
de cabeça triangular?
O lambari que faísca
como uma mola a vibrar?
O feio e molengo polvo,
monstruoso, tentacular?
O peixe-espada, de níquel,
a viva espada do mar?
Hoje estão vivos e lépidos
os lindos peixes do mar.
Amanhã…
Nem pensem nisso!
Amanhã eu vou pescar…
Em: Entardecer, Menotti del Picchia, São Paulo, MPM propaganda: 1978, p. 55.
Jean Baptiste Camille Corot (França, 1796-1875)
óleo sobre papelão sobre madeira, 32 x 41 cm
National Gallery, Washington, DC
Menotti del Picchia (Brasil, 1892-1988) em Juca Mulato.
Johan Patricny (Suécia, 1976)
Aquarela
Menotti del Picchia (Brasil, 1892-1988) em Juca Mulato, publicado em 1917.
Édouard Manet (França,1832-1883)
Óleo sobe tela, 92 x 72 cm
Coleção Particular, Paris
Menotti del Picchia
Quase me desconheço. Onde anda o imbele
menino alegre, de calcinha curta,
cantando, sempre aos saltos entre a murta,
entre os cafeeiros tão amigos dele?
Cresceu: ei-lo descrente… Eu sou aquele menino alegre.
A vida logo encurta as ilusões, a idade os risos furta…
E quem diria agora que eu sou ele?
Hoje me desconheço.
O outro, a criança lembro,
toda risonha, ao sol ardente
pelos campos em flor vagando a esmo…
Mas, sempre que me vem isto à lembrança,
sinto-me tão mudado e diferente
que chego a ter saudades de mim mesmo.
Em: Entardecer, Menotti del Picchia, São Paulo, MPM propaganda: 1978, p. 57.
Edward Munch (Noruega, 1863-1944)
óleo sobre tela, 81 x 100 cm
Rasmus Meyer Collection
The Bergen Art Museum
Menotti del Picchia
História simples: ela rica e bela,
eu moço e pobre… Fados bem diversos!
Ela dona de dois olhos bem perversos
e eu namorado dos dois olhos dela.
Gostava tanto vê-la na janela
com seus dois olhos na tristeza imersos…
Tinha eu vinte anos, rabiscava versos,
era moço, era alegre e tagarela.
— Porque essa moça é assim tão merencórea?
(Num soneto eu chamara-a: D. Doente…)
Ai! amava outro e de outro era querida!
Casou-se e acabou a minha história,
E desde então, ela ficou contente,
e eu fiquei triste para toda vida…
Em: Entardecer, Menotti del Picchia, São Paulo, MPM propaganda: 1978, p. 56.
Armínio Pascual (Brasil, 1920-2006)
óleo sobre tela, 30 x 40 cm
Menotti del Picchia
Jantei outro dia com Vila-Lobos. Recordamos muita coisa da luta comum. Lembramos do chinelo que lhe ornava o pé esquerdo, quando dentro de uma impecável casaca. O grande Vila regia a orquestra do Municipal, numa das famosas noitadas da Semana de Arte Moderna de 1922.
— Eles pensaram que casaca de chinelo era parte da indumentária futurista. Acharam original. O que eu tinha era uma unha encravada…
Rimos. Lembramos da então tão jovem e tão linda Yvonne Daumerie no palco vestida de libélula, asas enristadas nas espáduas, chorando, apavorada, fugindo das vaias com que uma plateia ululante e desesperada coroara nosso heroísmo afrontando-a com a impertinência de um programa polêmico e agressivo feito, então, do que se consideravam “as loucuras de Mário de Andrade, Oswald, Ronald, Graça Aranha” e dos demais revolucionários.
— Vá dançar, Yvonne.
A graciosa bailarina dançou, uma dança clássica. Foi ovacionada. A ojeriza da platéia era conosco, não com Yvonne, Guiomar Novais, nem com o próprio Vila-Lobos. O formidável criador das Bacchianas bebia seu vinho e comia com apetite. As memórias vinham em fila: casa de D. Olívia, as viagens de concertos culturais, as primeiras concentrações corais. Os companheiros mortos e vivos: Mário, Oswald, Ronald, Brecheret…
— Você sabe que não foi a Semana de Arte Moderna que me lançou. Eu já era revolucionário na música muito antes.
Vila Lobos faz questão de fixar bem que ele não é resultante do movimento. Ele começou sozinho a sua revolução musical. Vila Lobos, porém, ignora, que nós todos, os autores da “Semana”, não fomos feitos por ela. Nós é que a fizemos. Anos antes já sonhávamos com a nossa revolução. Que eram o Moisés, o Juca Mulato senão rebeldias e discordâncias do ritmo mental dominante? Moisés é de 1917. Em 1921, com Osvaldo, dirigíamos a revista Papel e Tinta, onde exaltávamos a pioneira Malfatti, o rebelde criador de Paulicéia Desvairada. A “Semana” foi apenas uma data como 7 de setembro a eclosão de um movimento de independência nacional que vinha de longe. A “Semana” foi um encontro de valores e não um ponto de partida. Foi a oficialização da rebeldia criando uma data histórica. Vila Lobos pode ficar tranquilo; a “Semana” não disputará sua originalidade pioneira, apenas a registrará com o seu comparecimento tão pitoresco na ribalta do nosso Municipal, cabeleira agitada, chinelo no pé, marcadamente modernista.
Fomos, depois, ouvir, as últimas criações do mestre. Seu apartamento é um museu fotográfico dos maiores vultos contemporâneo, todos eles depondo, em dedicatórias consagradoras, sobre o gênio do maior compositor patrício.
— Isto que é, Vila?
Homenagens. Homenagens de governos, de corporações artísticas, de sociedades de concertos. Nem sei o que o Vila poderá fazer de tanta glória. O mundo inteiro é hoje sua plateia. Lá está a saudação de Stravinsky. Lá está o abraço de Stokowski. Lá está o agradecimento de Casals.
— Você lembra quando compôs o Trenzinho do caipira?
Passa pelos olhos de Vila Lobos uma rajada de melancolia. Há quantos anos? Mocidade, divina mocidade, única coisa boa da vida! Foi em São Paulo, dentro de um trem da Paulista, numa excursão artística pelo Interior na qual o compositor genial tocava violoncelo, D. Antonieta Rudge, o piano.
Nessa hora, porém, a vitrola sonorizava uma das Bacchianas que eu não conhecia, recentemente gravada nos Estados Unidos. Era o Vila Lobos romântico – romântico mas moderníssimo – o melhor Vila Lobos. E eu entrei em êxtase. Por vários minutos fiquei, pairando no Paraíso.
Em: Entardecer, Menotti del Picchia, São Paulo, MPM propaganda: 1978, p. 107.
–
–
Natividade, 1467-69
Fra Filippo Lippi ( Florença 1406-1469)
Afresco
Catedral de Santa Maria Assunta em Spoleto, Itália
–
–
Menotti del Picchia
–
–
Já o burrinho ruma para a manjedoura. A estrela – seria, este ano, aquele enigmático cometa com nome japonês? – fulge no céu. Bate um pastor na porta da choça do compadre: “Olá Esdras! Acorda, camarada! Vamos para Belém!” As ovelhas balam. Toda a terra é um advento. Até flores estranhas rebentam nos cálices e as corolas atônitas perscrutam na noite um milagre. Os lírios do vale já devassaram o mistério e murmuram com seus lábios imaculados:
— Vai nascer Deus!
Aí está. Vai nascer Deus. “Fenômeno de rotina” – dirá um político despistando um repórter. “Nada demais, senhor jornalista. Todos os anos nasce Deus”. O repórter, apressado e superficial, registra a declaração numa caderneta e telefona os seus apontamentos para o redator de plantão. “O doutor Chuvisco disse que não há novidade: o nascimento de Deus é fenômeno de rotina”. O redator aceita essa explicação bocejando e gosta da palavra “rotina” aplicada ao mistério do Natal, porque a palavra está na moda. E ninguém dá pela transcendência do prodígio. Meu vizinho, Felisbino de Freitas Trancoso, excelente pai de família, saiu cedo para a fila das castanhas. D. Ordália Lopes, que é sentimental e fidelíssima, mesmo porque pesa perto de seis arrobas, comprou uma gravata de seda italiana e uns suspensórios de matéria plástica para presentear o marido. Tenho uma sensível admiradora que me mandou um cromo – sempre fui louco por cromos! – representando o presepe. Ali tudo é lindo: Jesus, tenro e sorridente, de cabelo cacheadinho e grandes olhos azuis abertos, como se um pimpolho que nasce, geralmente tão cheio de rugas e tão feio, pudesse ter aquele tamanho e aquela cabeleira de ouro… São José é um carpinteiro alinhado de túnica e talvez tenha saído nesse instante de uma arca. Maria Santíssima é um amor.
— No Natal do ano passado – diz-me a D. Celestina – meu marido me deu uma geladeira. Fico pensando dentro da noite mágica: “No Natal do ano passado…” Há perfumes no ar que vêm dos cedrinhos do Jardim América e, por causa das árvores do Natal, a gente liga o cheiro da resina ao oriente místico, à chegada daquela divina mãe grávida, morta de canseira na sua marcha ao lado do velho e santo marido, até a cocheira que serviu de berço à salvação do mundo. A imaginação trabalha. Percebe que nos palácios distantes, acordadas pelo fulgor da estrela, os reis poderosos preparam suas caravanas de mirra, ouro e incenso, para ver a criança estranha que uma vaca aquece com seu hálito e um burrinho manso humaniza com a bondade que irradia dos seus olhos…
— “Jornal da noite!” “Jornal da noite!” – berra um garoto sobraçando os últimos vespertinos. Compro uma folha. Não preciso ler pois a manchete metralha os meus olhos: “Dez mil árabes e cinco mil judeus em luta mortal na Palestina. Milhares de mortos e feridos…”
Os sinos de Natal bimbalham. “Glória a Deus na altura e paz na terra aos homens de boa vontade.”
Nasceu um Deus! Este ano nasceu outra vez um Deus!
E me ocorre, fulmineia a interrogação trágica: — mas por que nasce um Deus todos anos? Um arrepio me percorre o corpo. O calendário salta-me à memória pontilhada de guerras, brigas, roubos, bombas atômicas, crises econômicas, manobras políticas ditadas pela cobiça e ambição. No meio dessas memórias os sinos bimbalham. “Paz!” “Paz!” – brada Cristo, o Cristo que nascendo todos os 25 de dezembro há mil novecentos e quarenta e sete anos!
Então, percebo a razão do Natal! Dada a cruel desmemória dos homens é preciso que todos os anos nasça um Deus!
–
Em: Entardecer, Menotti del Picchia, São Paulo, MPM Propaganda: 1978