Walter MacEwen ( EUA, 1860-1943)
óleo sobre tela, 87 x 61 cm
“A memória é uma paisagem contemplada de um comboio em movimento.”
José Eduardo Agualusa
Em: O vendedor de passados, Rio de Janeiro, Gryphus: 2004, p. 153.
Walter MacEwen ( EUA, 1860-1943)
óleo sobre tela, 87 x 61 cm
José Eduardo Agualusa
Em: O vendedor de passados, Rio de Janeiro, Gryphus: 2004, p. 153.
Luca Bastos [Luiz Arnaldo de Gusmão Bastos, RJ, 22-5-1945 — SP, 8-3-2015]
Em uma família temos gerações definidas independente de idade: avós, tios, primos, filhos e sobrinhos, e netos. Não importa a diferença de idades entre eles. São grupos, camadas, que se sobrepõem umas às outras, que se tornam mais perceptíveis nas grandes reuniões familiares dos natais, dos casamentos, das festas de formatura, aniversários, bodas, quando a família inteira se encontra. Nesse momento os grupos se descobrem e acham um cantinho para a roda das conversas. Só aí temos maior noção de quem é mais velho e de quem é o pirralho. Na minha família, os encontros eram frequentes. Parte da família morava no mesmo bairro e não era raro sairmos primos e tios para um passeio juntos no Jardim Botânico ou para um sorvete de frutas no Morais, em Ipanema, em noites de verão. Os laços se estreitavam e nem percebíamos.
Nos Estados Unidos é comum as famílias fazerem um esforço especial para se encontrarem pelo menos uma vez por ano. Pode ser no feriado de Ação de Graças, [Thanksgiving] mas há outras soluções. Na vida americana pessoas se mudam com frequência. Isso provoca um distanciamento físico grande. No passado, anterior às comunicações digitais, era mais difícil manter a comunicação. Na família de meu marido havia uma tradição: todos os irmãos do pai dele se encontravam numa cidade praiana (a mesma todos os anos) no estado de Delaware, onde a família em gerações passadas tinha tido uma casa de veraneio. Encontravam-se para um reencontro familiar. Cada núcleo dos oito irmãos alugava uma casa e os encontros diários por uma semana entre irmãos e primos se faziam à beira-mar. Era sempre a mesma semana e a mesma cidade, todos os anos. Os familiares contavam com isso e faziam planos durante o ano. Dessa forma meu marido se criou conhecendo os primos quaisquer que fossem as idades ou estados em que moravam.
Crescer no Rio de Janeiro foi diferente, meu contato com tios e primos e tios de meus primos e primos de meus primos, foi muito maior. Até a geração de meus pais todos que nasciam aqui, por aqui ficavam, casavam, tinham filhos e comemoravam juntos as datas de grande ou pequena importância. Além dos aniversários, fim de ano, das férias, não faltava ocasião para nos reunirmos, pois também nos encontrávamos para os jogos da Copa do Mundo, para o Carnaval e assim por diante. Tínhamos a certeza da amizade duradoura não importando as características sociais e políticas que nos diferenciavam, os bons e maus alunos, os levados, os santinhos. Sim, havia brigas, discussões enérgicas, depois que crescemos, principalmente a respeito de política, mas havia pazes também, porque afinal o próximo aniversário do tio tal chegava logo, ou um primo se formava, ou nos víamos quando uma prima ia ao palco para uma dança na escola primária.
Os tempos mudaram para a minha geração. Eu mesma saí Rio de Janeiro para São Paulo, para depois sair do Brasil, meus dois irmãos também saíram do Rio. Um morou em Curitiba e depois São Paulo, o outro também acabou indo morar em São Paulo. Mais tarde retornaram ambos ao Rio de Janeiro. Tive um primo, Luiz Arnaldo, mais conhecido como Luca, que foi para São Paulo e ficou. Por lá criou raízes e a filha. Por isso mesmo nos encontramos menos vezes. Nos natais, principalmente. Mas a cada Natal passado juntos, na tradição familiar da festa celebrada na casa de nossa tia Maria-Emília e depois na casa de seu filho, Murilo, o conforto de conversar com ele reaparecia com ecos da infância, da adolescência, das incontáveis vezes que conversamos no passado. Havia aquele bem-estar da familiaridade que só se consegue através de muitos anos e de muito papear. Sempre o admirei. Mesmo sabendo que nossas visões políticas eram muito diferentes. Luca era uma das pessoas mais criativas que conheci, saindo-se tão bem na informática quanto na poesia, um engenheiro que amava Fernando Pessoa. E ele escrevia também. Mostrou recentemente seu grande senso de humor em uma série de contos em uma competição na internet da qual também participei. Suas narrativas ficcionais lhe garantiram grande popularidade no núcleo bem jovem de futuros escritores. Era um homem de grande senso de humor, apaixonado pelo mar, por veleiros, romântico num sentido mais largo da palavra, atleta, aventureiro e muito carinhoso. Reinventou-se muitas vezes, a cada virada trazendo para o presente as diversas experiências passadas. Acabou como um palestrante, e era muito bom nisso porque ajudava sua plateia a se questionar: “Ser rico para quê? Cuidado com objetivos medíocres” ; “A vida é muito curta para aturar chatos” ou “Não trabalhe no que não gosta. Pra que? Ir atrás de dinheiro para fazer o que gosta no futuro? E se não houver futuro?” Deixava sempre algo para que pensássemos no que fazíamos. Ontem, para ele, já não haverá futuro entre nós. Deixa saudades porque tocou a todos nós com sua experiência e carinho. Faleceu jovem demais, ainda tinha muito para dar.
E assim volto a pensar nas gerações da família. Quando crescemos dentro de cada grupo sabemos que há uma ordem: alguns mais velhos, outros mais jovens do que nós. Deste lado da família estou bem no centro da geração dos primos. Mas isso, como aprendi, não conta. Isso não quer dizer nada. Não se morre na ordem de chegada. ELA, a morte, nos surpreende, mesmo quando se anuncia no horizonte, em seu cavalo branco e foice ceifadora em mãos. Estarrecidos, nos olhamos com amargura. A sensação de abandono se instala. A vida nos parece injusta. E é.
Sol da manhã, 1952
Edward Hopper (EUA, 1882-1967)
Óleo sobre tela
Columbus Museum of Art, Oh, EUA
Ladyce West
A memória te data,
Te mata,
Retrata
No passado
Sempre presente.
A memória,
Pingente fluido
Da mente.
Enevoada,
Idealizada.
Mente.
©Ladyce West, Rio de Janeiro, 2014
Os especialistas [Connoisseurs], 1890
Louis Moeller (EUA, 1855-1930)
óleo sobre tela, 46 x 62 cm
Há anos me recomendaram a leitura de Utz, um livrinho pequeno de 135 páginas, publicado pela Cia das Letras em 1990, de autoria do inglês Bruce Chatwin (1940-1989). Recentemente, tive a oportunidade de lê-lo. É a história de um colecionador de porcelanas Meissen, vivendo em Praga, ainda na época da Cortina de Ferro, que protege a todo custo as delicadas estatuetas das mãos do governo comunista que vê no luxo desnecessário desse passatempo um sinal da decadência da vida no ocidente e da aristocracia checa. Apesar de interessante a trama me pareceu datada, retratando muito de leve as restrições do governo da República Checa [naquela época Checoslováquia]. A história, portanto, se restringe ao retrato do personagem Utz, um apaixonado colecionador de porcelanas e de cantoras de ópera. É um conto. Não chega a ser um romance.
Mas aqueles que dizem que na leitura estamos sempre nos retratando, admito que à medida que eu avançava no texto, memórias de um tempo antes dos meu dez anos, me rondaram e com elas uma apreciação de como as maneiras e as preocupações mudaram nas últimas décadas do século XX. O personagem Utz, homem refinado, que aprecia as belíssimas porcelanas Meissen, que passa temporadas na estação de águas em Vichy, na França, e que tenta sozinho manter o brilho da aristocracia checa, lembrou-me um tipo de homem que, se não desapareceu por completo, hoje eu não encontro nos meus círculos.
Meu avô era um homem de muitos amigos e conhecidos. Advogado, professor, intelectual, escritor e cronista para um diário carioca, cultivou muitas amizades que o visitavam regularmente. Dentre eles havia um que se chamava Prof. Eugênio. Sua figura, que me lembro dos meus oito anos, era a de um homem imponente, alto — mais alto que vovô, o que, diga-se, não era grande vantagem — sempre bem apresentado em ternos de três peças. Afetava uma bengala. E quando consultava o relógio de bolso, puxando a longa corrente de ouro, entre as tragadas de charutos finos e perfumados, mostrava belas abotoaduras mais caprichadas do que os simples quadrados de ouro fosco e brilhante usadas por vovô. Prof. Eugênio era muito sério e não sucumbia facilmente ao charme da netinha que, encantada com o vovô, insistia em perambular pelo jardim-de-inverno, local preferido para as visitas dos amigos. Foi a figura do Prof. Eugênio que se reacendeu, no corredor das memórias infantis, preenchendo a imagem de Utz, o principal personagem desse romance.
Príncipe e princesa, 1930 ilustração de um conto de fadas de Margaret Evans Price.
Provavelmente minha memória, muito vívida, de algumas dessas visitas pode estar enraizada no fato de que as conversas entre eles, quando minha avó não estava junto, eram em francês. Vovô havia vivido por algum tempo na Suíça, a trabalho, falava francês fluentemente. Na verdade é possível que tenha sido escalado para a Suíça, porque falasse francês, já que em seu diário, que está em minhas mãos, usa o francês desde cedo, para as passagens menos públicas, digamos, um pouco mais apimentadas. Por toda essa vivência e a pluralidade das tarefas que preenchiam o seu tempo, vovô tinha grande variedade de amigos, que o visitavam à noite, após o jantar, num hábito de entretenimento que já desapareceu. Passei muitos dias na casa de meus avós. Não só era a neta mais velha da família, como eles também eram meus padrinhos. Com eles aproveitei muito, viajei pelas cidades serranas no estado, pelas cidades das águas de Minas Gerais, visitei São Paulo, duas vezes. Assim estava sempre incluída na rotina de suas vidas, pelo menos era assim que me sentia.
No entanto, a razão principal de me lembrar do Prof. Eugênio era que além dessa figura toda, desse ar diferente dos homens que eu conhecia, da língua francesa ser murmurada como código secreto, além disso tudo, Prof. Eugênio era um príncipe. Sim, príncipe. Era brasileiro, mas depois da Segunda Guerra Mundial, no final dos anos cinquenta ele havia comprado o título de príncipe de uma família nobre europeia que precisava de alguns bons trocados. É claro que, para a criança que já lia os contos de fadas de Grimm, Prof. Eugênio não lembrava nem de longe os príncipes que eu trazia na imaginação. E, me lembro da minha surpresa ao descobrir, não sei como ou quando, que ele possuía esse título. Prof. Eugênio e Utz são ambos feitos da mesma estopa. São figuras totalmente anacrônicas que me deixam mesmerizada; o mundo em que viviam já havia se dissipado há muito tempo e mesmo assim eles insistiam em manter pelo menos algumas de suas fantasias. Talvez suas fantasias fossem tudo o que lhes restava.
Casa de chá em Xangai, c. 1909
Mortimer L. Menpes (Austrália, 1855-1938)
Guache e óleo sobre placa, 32 x 40 cm
Já faz dias desde que terminei a leitura de Quando éramos órfãos e reluto em resenhá-lo: o livro é mais complexo do que a princípio lhe dei crédito. Quanto mais tento focar em alguma ideias, mais descubro sobre o que é importante; sinal de que é um livro rico em questionamentos. Voltei ao texto duas outras vezes e hoje sei que é um romance muito melhor do que minha primeira impressão.
A prosa aqui é deliberada. O texto é seco e sutil, qualidades que sempre me atraíram em seus romances. Ishiguro é preciso, escolhe a palavra exata e nenhuma outra. Por isso mesmo não se pode ignorar as pequenas deixas que semeia na narrativa. Toda atenção é pouca. Como João e Maria, vamos seguindo as migalhas deixadas na narrativa e se alguma é ignorada, perdida, comida com desatenção, podemos nos perder. Além disso, Ishiguro trabalha as elipses com mestria. E nesta obra chega a mesmerizar com sua habilidade de justificá-las. Para isso usa os desvios da memória de um narrador impreciso.
Memórias são pensamentos subjetivos e inexplicáveis, que se adaptam com frequência às necessidades de quem as recolhe. Não é incomum observarmos duas pessoas que tendo tido uma mesma experiência, lembrem-se de eventos de maneiras diferentes. É justamente por isso que o narrador dessa história, Christopher Banks, que se descreve como um grande detetive em Londres, tendo vivido na Inglaterra por mais de duas décadas retorna a Xangai, onde havia passado sua primeira infância, antes do desaparecimento de seus pais aos oito anos de idade, oferece um enorme leque de possibilidades para a difusão das dúvidas no leitor.
A evolução do mistério que envolve o desaparecimento dos pais do menino surpreende o leitor e o próprio Christopher Banks. Mas as ruas de Xangai são tão labirínticas quanto as aléias e becos sem saída das memórias de infância. Caminhos escuros percorridos por riquixás improváveis, o bairro dos estrangeiros à beira do campo de batalha durante a guerra sino-japonesa, o tráfico do ópio, tudo leva a mais dúvidas do que a fatos e assim como Christopher saímos dessa Xangai sem a certeza das poucas memórias que nos pertencem.
Kazuo Ishiguro
Não tive, no entanto, grande empatia pelo personagem principal que se mantém distante. Suas emoções estão guardadas e ele nos surpreende até mesmo quando se envolve amorosamente. Talvez por sentir que não pertence a lugar algum Christopher Banks mantém um verdadeiro vácuo emocional à sua volta. E nós leitores estamos excluídos por essa mesma distância, apesar de conscientes de seus pensamentos. Há um desconforto emocional.
No final este é um livro que marca, apesar da falta de empatia com o personagem principal. Mas é estupendo pela fabulosa habilidade de Kazuo Ishiguro ao liderar a narrativa através dos descaminhos da memória.
Pai querido, o imagino
com sua mão calejada,
lá no Infinito, um menino,
reflorindo a minha estrada! …
(Adelir Machado)
Minha mãe, aos 73 anos.
Do muito que ela me ensinou, ficou também o exercício diário da leitura.
Minha mãe foi quem incendiou meu hábito da leitura. Desde o momento em que corri para ela, encantada, dizendo que conseguia ver, como em um sonho, as coisas que lia no livro, minha mãe tomou as rédeas do meu desenvolvimento como leitora. Lembro-me muito bem, ela estava cozendo, alguma coisa pequena, à mão. Parou tudo para me dizer que era assim mesmo, que eu estava mostrando que estava lendo muito bem e que há algum tempo ela esperava que eu lhe trouxesse essa notícia. Eu tinha acabado de fazer seis anos.
A influência de minha mãe foi crucial para que eu me tornasse uma leitora. Sua direção foi firme, sem que eu sentisse, e durou até o final dos meus primeiros anos na adolescência. Foi ela quem me apresentou à leitura de “gente grande”, quando aos dez anos me deu O tronco do ipê, seguido depois de A Moreninha, A pata da gazela, Helena, A mão e a luva. Livros lidos e relidos através da adolescência e mantidos até hoje entre os “muito queridos”. Assim foi a minha estréia na imaginação romântica da menina-moça, cercada dos clássicos brasileiros. Mas, sabiamente mamãe nunca me proibiu ler nada – houve uma exceção, única. Dos dez aos quatorze anos li quase todos os clássicos no século XIX no Brasil, os românticos; assim como li dezenas de volumes da Biblioteca das Moças; dezenas de mistérios de Agatha Christie, Ellery Queen, Charlie Chan, Arsène Lupin, Maigret, além dos grandes livros de aventuras de Alexandre Dumas e Julio Verne. Ela lia e eu lia. Ela lia primeiro. Era importante para mim ver minha mãe lendo esses livros e depois recebê-los de suas mãos, dizendo “muito bom, você vai gostar”. Mamãe gostava do que ela chamava romances de capa-e-espada. Dumas, principalmente. Mas lemos as aventuras do Zorro, numa tiragem de livro de bolso baratinha.
Esses anos, que hoje se chamam pré-adolescência, foram caracterizados por terem a leitura como principal meio de entretenimento. Víamos televisão, mas ela não foi nunca a primeira fonte de prazer. E as férias eram passadas na praia de manhã cedo e na poltrona, sentada de lado, com o rosto de encontro ao estofamento, as pernas encolhidas e os livros empilhados ao lado. Vez por outra íamos ao cinema, não muito. A leitura era o bastante.
Desses hábitos de leitura o único que não vingou foi a leitura em espanhol. Por volta dos meus dez, onze anos, mamãe me apresentou ao livro Platero y yo. Reclamei que era em espanhol, mas ela me disse que eu lesse, que acabaria entendendo, e qualquer dúvida que tivesse que a consultasse. Minha mãe era professora, formada em línguas neo-latinas e lia com facilidade tanto em espanhol quanto em francês. Esse foi a primeira de muitas pequenas histórias e poemas que li em espanhol. Mas o gosto por essa leitura nunca me seduziu. Anos mais tarde, com os meus dezesseis anos, já fluente em francês, graças à Aliança Francesa, não tive problema em ler em francês, mas nunca me senti confortável com a leitura em espanhol, até hoje.
Se continuo a ler muito devo à minha mãe esse maravilhoso entretenimento. A leitura foi um dos maiores elos de união entre nós duas; personalidades tão diferentes, com gostos tão semelhantes.
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Ilustração captada na internet sem autoria especificada.–
Há pouco tempo criei um mal-estar na família, por sugerir a um jovem membro que considerasse, pensasse, e talvez limitasse a postagem de uma ou outra foto que haviam sido postadas na internet, no Facebook mais precisamentre. Os pais não entenderam a observação como crítica construtiva, levaram para o lado pessoal… Lembraram-me que eu não sabia como as coisas funcionavam no mundo moderno, e assim foi… Abandonei a ideia de contribuir para a preservação do futuro da família, deixei de lado qualquer advertência. As fotos, na verdade, não tinham nada demais, mas eu sabia, por experiência de vida e de usuária da internet, há mais tempo do que a maioria das pessoas, que devemos ter muito cuidado, muito cuidado, com aquilo que postamos. As pessoas mudam, os costumes mudam e nem sempre o que poderia ser interpretado num dado momento como engraçado, pode ser visto mais tarde como tal. Foi uma pena…
Hoje, no entanto, o primeiro parágrafo da coluna A nova era digital da Cora Ronai no jornal O Globo, recomendando a leitura de “A nova era digital: como será o futuro das pessoas, das nações e dos negócios”, de Eric Schmidt e Jared Cohen (Intrínseca, 320 páginas, tradução de Ana Beatriz Rodrigues e Rogerio Durst) serve justamente de advertência a pais e outros usuários. Ela lembra que a internet não esquece. E que tudo que lá se posta fica guardado para sempre, e que uma simples busca na web pode revelar muito do que se sabe a seu respeito, desde suas preferências até as loucuras da adolescência. Dos palavrões às declarações de amor… das fotos comportadas às que mostram um comportamento questionável. Postou? Ficou para sempre. Só postou fotos suas, tiradas com o celular? Quem disse que não o considerarão narcisista, preocupada só consigo mesmo, com a sua aparência? De brincadeira tirou uma foto beirando o erótico? Que pensarão seus futuros empregadores sobre você? Estará tudo lá. Para sempre… ad eternum... Então fiquem aqui com a advertência de quem é considerada EXPERT na internet, leiam o primeiro parágrafo da Cora Ronai e cliquem no link para ler o artigo inteiro. Sinto-me justificada.
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“Um dia — que já devia ter sido ontem — todos os pais e mães terão uma conversa muito séria com os filhos a respeito da vida online. Essa conversa é ainda mais importante do que aquela clássica conversa sobre sexo da qual todos querem fugir, e deve começar cada vez mais cedo: a internet não esquece nada, e pode ser que, lá na frente, o destino profissional de uma pessoa possa ser prejudicado por uma bobagem que ela postou na adolescência. Pela primeira vez desde que o mundo é mundo, a vida das pessoas começa a ser registrada antes mesmo que elas venham o mundo, com as ultrassonografias postadas por pais orgulhosos nas redes sociais; o registro continua, implacável, pelos anos escolares, pela universidade, pelo trabalho. Uma busca das mais simples pode revelar hábitos alimentares, culturais e de consumo, amores e ódios. Nos tempos pré-internet, os humanos gozavam o benefício do esquecimento. Fomos geneticamente programados para isso, numa prova de que a natureza é sábia até socialmente: uma pessoa de 30 anos guarda muito pouco de quem era aos 15. Basta ver os cortes de cabelo e as roupas que tínhamos coragem de usar…”
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Banho infantil, 1893
Mary Cassatt (EUA, 1844-1926)
Óleo sobre tela, 100 x 66 cm
The Art Institute of Chicago, EUA
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Há datas que são indeléveis para cada um de nós. O aniversário de minha mãe é uma delas, para mim. Hoje ela faria 88 anos. E é só agora, 6 anos após sua morte que começo a vê-la no espelho que me reflete pela manhã. Sempre fomos muito diferentes, minha mãe e eu. Física e emocionalmente. Dois dias antes de seu falecimento, e após viver comigo e com meu marido pelos últimos cinco anos em que lutava contra doença incurável, minha mãe, num gesto de boa vontade, nos chamou para dizer: “sim, eu poderia ter vivido com vocês.” Como se até então não o tivesse feito. Era uma admissão final de que havíamos encontrado uma área comum, uma faixa em que nossos comportamentos, por mais divergentes que fossem, haviam se mesclado e atingido uma zona de conforto. Eu me surpreendi. Para mim nunca houve qualquer resistência em ter minha mãe comigo, muito pelo contrário, sempre gostei de sua companhia. Era uma mulher inteligente, informada, sensível. Só não aprovava grande parte do meu comportamento. E porque saí de casa muito cedo, para ela, eu provavelmente parecia mais estranha do que realmente era. Mesmo que tivesse vindo visitá-la nos últimos 20 anos antes do meu retorno oficial ao Brasil, por um mês, uma ou duas vezes por ano. Ter morado no exterior e adquirido hábitos mais estrangeiros do que brasileiros certamente contribuiu para que ela sentisse um estranhamento que não era recíproco.
Enquanto ela era muito linda, com cabelos naturalmente negro-azulados, olhos verdes com uma estrela amarelo-dourada dentro deles e a pele branco-leite, um tipo comum na Europa do norte, principalmente na Irlanda; eu nasci de cabelos vermelhos cor de cenoura que, depois de caírem, viraram louros e mais tarde louro-escuro bem cor de chumbo; olhos azuis, pele muito clara, mais para o dourado. Enquanto nela, as cores lilás e tons frios de azul e rosa caíam bem; em mim essas mesmas cores tornavam a pele amarelada; só os tons de terra, o verde-musgo, os beges, coral e marrons coloriam favoravelmente. E, no entanto, hoje ao acordar e me olhar no espelho, com freqüência vejo minha mãe refletida, a olhar-me de volta. Temos algo em comum, a idade anda nos fazendo semelhantes. O cabelo de repente é igual ao corte que ela usava? Ou será que é a maneira como as rugas aparecem em volta dos olhos? Temos a mesma boca, isso é verdade, larga, pronta para o riso, nós duas ríamos com facilidade. É de família. Mamãe era mignon, ombros pequenos, mãos alongadas como as de sua mãe, unhas ovaladas. Eu tenho as mãos de papai, largas e quadradas, ombros largos; e não demonstro fragilidade. E, no entanto, sou eu a “manteiga derretida”, cujas lágrimas são incontroláveis quando me machucam emocionalmente. À moda inglesa, — que ela não era – mamãe conseguia manter o famoso “stiff upper lip” que me escapa. Nas dores físicas fomos semelhantes, duras e sem choros. Não sou ciumenta; não escondo o jogo; detesto manipulação emocional. Não me incomodo com o que os outros pensam de mim; não faço grandes sacrifícios pela vaidade; não tenho medo de médico, de dentista e nunca vou a eles acompanhada.
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Nós duas, Praia do Flamengo, Rio de JaneiroMamãe contava uma história que leu quando era criança na Revista Tico-tico. Era sobre um menino pobre que vivia no andar térreo de um edifício e que tinha por vizinho de cima um menino rico. Da janela o menino pobre via os papéis de bala coloridos que o menino rico jogava fora e para não se sentir mal, o menino pobre imaginava os papéis de bala serem borboletas, que voavam coloridas pelo jardim. Essa historieta infantil descreve as diferenças entre mãe e filha. Mamãe era uma sonhadora. Seus pés finos e pequeninos a mantinham levemente presa ao chão; eu por outro lado provavelmente teria colecionado os papéis coloridos do menino do andar de cima. Tenho os pés quadrados, largos, romanos, que fazem meus sonhos serem bastante atados à realidade que me cerca. Sou aventureira, flor selvagem, rústica; mamãe era flor de estufa, delicada e caprichosa.
Mas então o que herdei dela para que a veja a me olhar do outro lado do espelho? Dela, herdei a sensibilidade para as artes visuais; a curiosidade, a necessidade de estar em dia com as notícias; herdei também a facilidade para línguas, a necessidade de viver em um ambiente belo e confortável; a impaciência, o humor quase apalhaçado e a dificuldade de lidar com bebês. Nós duas sempre preferimos as crianças quando elas já sabem falar. E, no entanto, há horas em que sinto que um gesto meu é um eco dela; que uma observação que faço, ela teria feito; que o modo como ando na rua reflete o andar dela. É, por mais diferentes que tenhamos sido, a semente não cai nunca muito longe da árvore. Feliz aniversário minha mãe.
© Ladyce West, Rio de Janeiro, 2013.
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“Isso vem a propósito de minhas lembranças de bondes-de-burro. Neles andei, talvez numa de nossas viagens ao Rio ou, mais certamente, depois de nossa vinda definitiva de Juiz de Fora. Quando? não posso dizer com exatidão, pois minhas recordações desse Aristides Lobo da infância surgem empilhadas e a fotografia positiva que delas obtenho resulta da revelação de vários negativos superpostos, cuja transparência permite que as imagens de uns se misturem com as luzes dos outros. O essencial é que me lembro dos bondes de burro com seus poucos bancos, com o condutor e o cobrador, os dois sem farda, de terno velho, colarinho duro, chapéu de lebre, ou chile, ou bilontra – e a bigodeira solta ao vento carioca. O primeiro governava os burros a chicotadas mais simbólicas do que propriamente para valer e principalmente, com a série de ruídos que tirava dos beiços, da língua, das bochechas, das goelas, e que eram muxoxos e chupões, assovios e estalos, brados monossilábicos e gritos churriados – a que as adestradas alimárias respondiam com o passo, a marcha, o trote, a andadura e a parada. De distância em distância as parelhas cansadas eram trocadas por outras mais frescas, nas mudas dispostas ao longo dos itinerários. Uma destas perpetuou-se no nome que se estendeu a um bairro todo – o da Muda da Tijuca. Lembro-me bem da que ficava à esquina da Marquês de Sapucaí e Salvador de Sá, onde foi depois uma estação de elétricos – estação não no sentido de paragem, mas do local onde se recolhiam os bondes. Quem vinha de Aristides Lobo, era ali que trocava os burros. Eles eram soltos ao mesmo tempo que as correntes que os prendiam à trave que era desengatada conjuntamente, do veículo. Quando eles se sentiam livres, empinavam as cabeças, zurravam e corriam, sem necessidade de serem conduzidos, para dentro da muda, para suas águas e seu capim. Iam rebolando as ancas, repiqueteando os cascos ferrados, num tilintar de cadeias arrastadas. Compunham uma representação de movimento e som que vim a recuperar quando o cinema começou a explorar as dançarinas de rumba com suas bundas de potranca, suas caudas farfalhantes, seu agudo bater de saltos e suas secas castanholas. Sempre que as via, reinundava minha alma do encanto infantil com que assistia à troca das bestas naquela esquina. E sempre que passo nesse cruzamento de ruas, reassumo meus cinco, meus seis anos e ouço o trincolejar de grilhões raspando no lajedo. Os bondinhos de tração animal seriam substituídos pelos elétricos, na Zona Norte, aí por volta de 1909.”
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Em: Baú de Ossos, Pedro Nava, Rio de Janeiro, Sabiá: 1972, PP. 372-3