Pateta lendo, ilustração Walt Disney.
—
—
No sábado passado, dia 1º de maio, o jornal O Globo publicou no caderno Prosa e Verso um pequeno artigo de Guilherme Freitas, intitulado O livro muda para continuar sendo o mesmo, em que o autor apresenta para o público o novo lançamento da Editora Record, Não contem com o fim dos livros, do jornalista francês Jean Philippe. Este é um livro que reúne diálogos entre o escritor italiano Umberto Eco e o escritor francês Jean-Claude Carrière. Entre outros assuntos mencionados no livro, Guilherme Freitas ressalta a posição de Jean-Claude Carrière quando este comenta sobre a memória coletiva:
“Fascinado pelos critérios subjetivos que regem a transmissão dos saberes ao longo da História, Carrière diz que o acesso maciço a informações possibilitado pela internet muda nossa relação com o conhecimento.
— O que vemos agora é uma nova forma de erudição. Não se trata mais apenas de uma questão de saber, mas de ser capaz de discernir aquilo que devemos reter nessa grande massa de informação na qual vivemos. Isso desperta inúmeras questões. Cada indivíduo constrói seus próprios filtros? Ou existem fatores sociais e coletivos que influem nisso? É um tema fascinante.”
Esse é um assunto que me é particularmente caro, principalmente depois que voltei a estabelecer residência no Brasil. Peço permissão para passar um pouquinho da minha história pessoal.
—
—
Tio Patinhas foi à biblioteca, ilustração Walt Disney.
—
—
Nos primeiros meses que tive contato com uma universidade americana, uma das coisas que mais me surpreendeu, muito antes da internet existir, foi a facilidade de acesso à informação que cada aluno tinha em solo americano. Não só alunos, mas todos. Tanto as universidades particulares (conheci de perto a Universidade Johns Hopkins) quanto as do governo (estudei na Universidade de Maryland, governo estadual), — e mais tarde pude verificar o mesmo em outras universidades que entraram para o meu dia a dia, tais como Universidade Duke (privada), North Carolina State University e University of North Carolina at Chapel Hill (as duas do governo estadual) tinham excelentes bibliotecas abertas ao público em geral, quer universitários ou não. Qualquer pessoa podia consultar seus acervos. Era só uma questão de estar interessado o suficiente para fazê-lo. Essa democratização do conhecimento na época estava bastante distante da realidade brasileira, assim como ainda está. Mas foi um aspecto importantíssimo para que eu viesse a entender a sociedade americana de uma maneira diferente do mero visitante, diferente da pessoa que vai fazer um pequeno curso de especialização. Porque só esse convívio diário com “os templos do saber” em cidades e estados diferentes conseguem dar a idéia de quão abrangente o acesso ao conhecimento pode ser.
Parece então muito natural que o maior ímpeto para a democratização do conhecimento, para a democratização de textos, do saber – digamos assim – tenha vindo através de ferramentas eletrônicas – internet, Google, livros digitais e muito mais – criadas por indivíduos estabelecidos nos Estado Unidos, americanos ou não.
Numa das primeiras visitas minhas ao Brasil depois de estar estudando nos EUA, marquei um encontro com antigos professores e colegas de turma das duas faculdades que cursei — uma no Rio de Janeiro e outra em Niterói. Fiquei desapontada, na época, com o preconceito que demonstraram ao me dizerem que o ensino nos EUA não poderia se comparar ao europeu. Na época não quis rebater. Achei que talvez se tratasse de um pouco de ciúmes, de um pouco de desconhecimento. Mas, confesso, não voltei a procurá-los. Hoje, entendo melhor, porque vejo claramente que ainda temos muitas raízes no preconceito que estipula que “conhecimento é para uns poucos iluminados”. Este preconceito fertilizado e cuidado é perpetuado por uma sociedade que se divide em classes sociais rígidas e em que uma delas se encontra os “intelectuais”—estes que por suas próprias cornetas alardeiam a importância de seus conhecimentos, de suas habilidades de discernimento.
—
—
Ilustração francesa, autor desconhecido.
—
—
A memória cultural, a memória coletiva de um povo, só pode identificá-lo, quando o acesso ao conhecimento vai além da propriedade de uns poucos para ser generalizado. Alguns dirão que o processo democrático não deveria influenciar o que “realmente vale a pena reter” porque as massas não saberão entender o que lhes será de maior valia. Mas nunca foi assim. Como Carrière mesmo reflete no diálogo acima, a retenção do saber sempre passou por critérios completamente subjetivos. Se olharmos a história da transmissão de pensamentos e idéias, das barreiras impostas por traduções ou falta delas do grego ou do árabe sabemos que mais frequentemente do que gostamos de imaginar, o conhecimento de alguma nova equação, de algum conhecimento científico, dependeu lá atrás, há muitos e muitos séculos, da habilidade de algum monge de traduzir um texto do grego, do orgulho de algum rei ou califa de construir uma biblioteca repleta de preciosos manuscritos de outros povos, por vezes povos conquistados, para abrilhantar o seu reino ou o seu ego. E muito do que foi passado de geração em geração, principalmente nas culturas orais – como é o caso da nossa — dependeu, mais do que se admite da memória singular de uma avó, de uma tia, de um antepassado que cantava o seu conhecimento.
Graças à internet e à democratização de tudo que se conhece e do que se pensa ou pensou, não viveremos mais sob a ditadura do conceito de que o acesso a qualquer informação é só para os iniciados. Graças à internet e ao fácil acesso a informação conseguiremos mudar a cara do Brasil, saber quem realmente somos e decidir sobre aquilo que devemos reter nessa grande massa de informação na qual vivemos.












