Fábula: O macaco e o gato, texto de Monteiro Lobato

24 08 2013

monkey-and-catIlustração inspirada no trabalho de Marcus Gheeraerts, o velho (Bélgica, c. 1520- c. 1590)

O macaco e o gato

Monteiro Lobato

Simão, o macaco, e Bichano, o gato, moram juntos na mesma casa. E pintam o sete. Um furta coisas, remexe gavetas, esconde tesourinhas, atormenta o papagaio; outra arranha os tapetes, esfiapa as almofadas e bebe o leite das crianças.

Mas, apesar de amigos e sócios, o macaco sabe agir com tal maromba que é quem sai ganhando sempre.

Foi assim no caso das castanhas.

A cozinheira pusera a assar nas brasas umas castanhas e fora à horta colher temperos.  Vendo a cozinha vazia, os dois malandros se aproximaram. Disse o macaco:

— Amigo Bichano, você que tem uma pata jeitosa, tire as castanhas do fogo.

O gato não se fez insistir e com muita arte começou a tirar as castanhas.

— Pronto, uma…

— Agora aquela lá… Isso. Agora aquela gorducha… Isso. E mais a da esquerda, que estalou…

O gato as tirava, mas quem as comia, gulosamente, piscando o olho, era o macaco…

De repente, eis que surge a cozinheira, furiosa, de vara na mão.

— Espere aí, diabada!…

Os dois gatunos sumiram-se aos pinotes.

— Boa peça, hem? — disse o macaco lá longe.

O gato suspirou:

— Para você, que comeu as castanhas. Para mim foi péssima, pois arrisquei o pelo e fiquei em jejum, sem saber que gosto tem uma castanha assada…

O bom-bocado não é para quem o faz, é para quem o come.

Em: Fábulas, Monteiro Lobato, São Paulo, Ed. Brasiliense:1966, 20ª edição, pp 97-98.

José Bento Monteiro Lobato, (Taubaté, SP, 1882 – 1948).  Escritor, contista; dedicou-se à literatura infantil. Foi um dos fundadores da Companhia Editora Nacional. Chamava-se José Renato Monteiro Lobato e alterou o nome posteriormente para José Bento.

Obras:

A Barca de Gleyre, 1944

A Caçada da Onça, 1924

A ceia dos acusados, 1936

A Chave do Tamanho, 1942

A Correspondência entre Monteiro Lobato e Lima Barreto, 1955

A Epopéia Americana, 1940

A Menina do Narizinho Arrebitado, 1924

Alice no País do Espelho, 1933

América, 1932

Aritmética da Emília, 1935

As caçadas de Pedrinho, 1933

Aventuras de Hans Staden, 1927

Caçada da Onça, 1925

Cidades Mortas, 1919

Contos Leves, 1935

Contos Pesados, 1940

Conversa entre Amigos, 1986

D. Quixote das crianças, 1936

Emília no País da Gramática, 1934

Escândalo do Petróleo, 1936

Fábulas, 1922

Fábulas de Narizinho, 1923

Ferro, 1931

Filosofia da vida, 1937

Formação da mentalidade, 1940

Geografia de Dona Benta, 1935

História da civilização, 1946

História da filosofia, 1935

História da literatura mundial, 1941

História das Invenções, 1935

História do Mundo para crianças, 1933

Histórias de Tia Nastácia, 1937

How Henry Ford is Regarded in Brazil, 1926

Idéias de Jeca Tatu, 1919

Jeca-Tatuzinho, 1925

Lucia, ou a Menina de Narizinho Arrebitado, 1921

Memórias de Emília, 1936

Mister Slang e o Brasil, 1927

Mundo da Lua, 1923

Na Antevéspera, 1933

Narizinho Arrebitado, 1923

Negrinha, 1920

Novas Reinações de Narizinho, 1933

O Choque das Raças ou O Presidente Negro, 1926

O Garimpeiro do Rio das Garças, 1930

O livro da jangal, 1941

O Macaco que Se Fez Homem, 1923

O Marquês de Rabicó, 1922

O Minotauro, 1939

O pequeno César, 1935

O Picapau Amarelo, 1939

O pó de pirlimpimpim, 1931

O Poço do Visconde, 1937

O presidente negro, 1926

O Saci, 1918

Onda Verde, 1923

Os Doze Trabalhos de Hércules,  1944

Os grandes pensadores, 1939

Os Negros, 1924

Prefácios e Entrevistas, 1946

Problema Vital, 1918

Reforma da Natureza, 1941

Reinações de Narizinho, 1931

Serões de Dona Benta,  1937

Urupês, 1918

Viagem ao Céu, 1932

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Esta fábula de Monteiro Lobato é uma das centenas de variações feitas através dos séculos da fábulas de Esopo, escritor grego, que viveu no século VI AC.  Suas fábulas foram reunidas e atribuídas a ele, por Demétrius em 325 AC.  Desde então tornaram-se clássicos da cultura ocidental e muitos escritores como Monteiro Lobato, re-escreveram e ficaram famosos por recriarem estas histórias, o que mostra a universalidade dos textos, das emoções descritas e da moral neles exemplificada.  Entre os mais famosos escritores que recriaram as Fábulas de Esopo estão Fedro e La Fontaine.

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O Dogue — fábula de Lachambeaudie — (imitação) de Paula Brito

24 07 2013

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Capataz, 1902

Arthur Wardle (Inglaterra, 1860-1949)

óleo sobre tela, 60 x 75 cm

O Dogue

Fábula de Lachambeaudie

(Imitação)

Paula Brito

Um Dogue belo, gordo e luzidio,

Dos que mui raro são aqui no Rio,

Num arrabalde de Paris, sozinho

Ia, calado, andando o seu caminho;

Um rústico aldeão, porém, ao vê-lo

Procurando a maneira de entretê-lo,

Atira-lhe uma pedra e diz — carrega;

O cão olha para ela e nem lhe pega.

No mesmo instante ao cão uma criança

Se chega e de o amimar tendo a lembrança,

Dá-lhe uma flor, na qual o Dogue pega,

E contente de si a flor carrega.

—–

Neste fato se vê que a grosseria

Té mesmo ao cão doméstico arrepia;

Assim os homens são! — Os ensinados

Servem para ensinar os malcriados.

Em:  O Espelho: revista de literatura, modas, indústria e artes, n. 9,  30 de outubro de 1859, p.11. da edição em facsímile, Rio de Janeiro, MEC:2008, p. 121

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Paula Brito  (Brasil, 1809-1861)





Fábula: a onça e o gato

11 06 2013

Joacilei Gomes Cardoso,(Brasil, 1960)Onça deitada, ost,100 X 180cm.www.projetoararaazul.org..br

Onça deitada, s/d

Joacilei Gomes Cardoso,(Brasil, 1960)

óleo sobre tela, 100 X 180cm

www.projetoararaazul.org.br

 A onça e o gato

A Onça pediu ao Gato que lhe ensinasse a saltar. O Gato saltou, então, de todas as maneiras.  Quando terminou, a Onça disse que ia também saltar para ver se tinha aprendido. Começou então a repetir os saltos do Gato. Mas, de repente, deu um pulo sobre o mestre para devorá-lo. Este, porém, deu um salto para o lado, evitando o golpe da Onça. Queixou-se esta de que o Gato não lhe tinha ensinado esse salto.  Ao que o Gato respondeu:

— “Não sou tão tolo que, ao menos, não reservasse este pulo para me livrar das suas garras”. E com outro salto de mestre, sumiu no mato.

Em: Terra Bandeirante, 3º ano, a história, as lendas e as tradições do estado de São Paulo, Theobaldo Miranda Santos, São Paulo, Agir: 1954.





As duas filhas do rei Hassan, de Humberto de Campos

22 03 2013

Fabio Fabbi

Dançarinas, c. 1890

Fabio Fabbi (Itália, 1861-1946)

Óleo sobre tela

Clarke Auction House

As duas filhas do rei Hassan

Humberto de Campos

Quando os árabes se reuniram pela primeira vez para, fixando-se na terra, interromper a sua tradição de povo nômade, resolveram eleger, também, entre os varões mais prudentes que vagavam com eles pelos desertos, um que lhes servisse de chefe. A escolha recaiu no xeique Hassan, notável, na mocidade, pela sua sabedoria. Era um ancião de grande estatura e de barbas grisalhas que lhe cobriam o peito inteiro, e tão ágil ainda, e tão robusto, que não chamava, jamais, os moços de sua tribo quando se precisava, na sua tenda, da pele de um leão.

Hassan possuía duas filhas, que o auxiliavam conforme a necessidade e a ocasião. A uma, dera o nome de Mentira. A outra, o de Verdade. Irmãs, embora as duas não tinham entre si, a menor semelhança. A Mentira erra mais velha, mais bonita. Na sua vida errante, enfeitava-se a cada hora, não usando, jamais, em um dia, o manto, de pele de leopardo ou de cordeiro que havia posto na véspera. A verdade não era feia, mas era triste, e de fisionomia severa. E apresentava, ainda, a desvantagem de não variar de vestuário. Por isso mesmo, não gostavam de andar uma em companhia da outra. Quando a Verdade chegava, a Mentira retirava-se, rapidamente. Mas, como era mais sedutora que a irmã, esta não conseguia, jamais, tomar-lhe o lugar na estima dos homens.

Os árabes foram, sempre, um povo de poetas. A cadência da marcha do camelo, ou do passo manso do cavalo do beduíno, deu-lhes o ritmo para o canto. Onde havia uma caravana, havia poetas. Onde se levantava uma tenda, erguia-se a modulação de uma voz. E os poetas tomaram-se de paixão pela Mentira. Debalde a outra se aproximava deles. Nenhum se apercebia da sua formosura grave, porque a Mentira sempre lhes parecia mais bonita que a Verdade.

Tornando chefe do povo árabe, o primeiro cuidado do xeique Hassan constituiu em consolidar a estabilidade das tribos errantes, fundando a primeira cidade. Para maior segurança da ordem, e prestígio da sua palavra, proclamou-se rei. E nomeou os seus ministros. E escolheu os seus generais. E, com o desenvolvimento crescente da nação, fundou uma corte de onde tirava os emires, os vizires, os cadiz, os que deviam distribuir a justiça ou governar as províncias, que se estenderam pelo deserto e pelas margens do mar. E quem, no palácio do rei Hassan mandava em tudo, e dirigia tudo, era a Mentira. Como a Verdade era austera e fria, seu pai, como todos os governantes que vieram depois, não gostava de ouvi-la. A Mentira, não. A Mentira era alegre e vivaz, e, dessa maneira, todos gostavam dela. A política do reino dos árabes, como a de todos os governos do mundo que surgiram mais tarde, passou a ser obra sua, trama ideada pelo seu cérebro e tecida pelas suas mãos.

Entre os governadores mais ricos das províncias vizinhas do mar, um havia, chamado Ahmad, o qual possuía uma filha, Amina, moça de grande e estranha formosura. Informado da sua beleza e da sua fortuna, Mahmud, chefe dos guardas do rei Hassan, mandou-lhe, por uma escrava, o seu juramento de amor.  Ao mesmo tempo, enviava-lhe o mesmo juramento o príncipe Mansur, senhor do s oásis de Al-Kanfa. O príncipe era, no palácio real, amigo da Verdade. Mahmud, amigo da Mentira. E foi Mahmud quem venceu no coração da princesa Amina, porque em negócios de amor a Mentira é mais experiente que a verdade.

Por esse tempo, o reino dos árabes, dirigido pela sabedoria de Hassan, que sempre recorria à habilidade da filha mais velha, estendia-se já, por toda a península, compreendendo montanhas e vales, praias e desertos. Redigidas pelas Mentira os tratados de aliança ou de paz acabavam sempre, por anexar aos seus domínios os domínios dos seus vizinhos. E foi então, quando o grande monarca pensou na maneira de pensar aos sucessores a notícia de seus próprios feitos, e a história de formação do seu povo. A velhice extrema anunciava-lhe de modo preciso, que a morte não vinha longe. E o rei Hassan chamou dois vizires que sabiam escrever a língua árabe, e disse-lhes:

— Quero que narreis em papiro, para conhecimento dos homens do futuro, como nasceu a nação árabe, e como surgiu no deserto, a primeira cidade. Estou sem forças para vos narrar todos os fatos. Minhas duas filhas, se acham, porém, ao corrente de tudo, e vos contarão todos os sucessos que constituem a história do meu reino.

— Por qual das duas nos devemos guiar, senhor? – indagaram os dois primeiros historiadores. – Pela Mentira ou pela Verdade?

— Escolhei,  vós mesmos,  – respondeu o rei Hassan.

E morreu.

Habituada a ver-se preterida pela irmã, a Verdade resolveu conquistar o lugar, como informante dos historiadores. Para isso, vestiu o mais soberbo e vistoso manto que havia no palácio, pintou os olhos como os da Mentira, e foi para o salão em que devia ser procurada pelos vizires.  Por sua vez, a Mentira, certa de que homens tão severos procurariam, de preferência, para informações tão graves, aquela das irmãs que lhes parecesse mais discreta e modesta, escolheu os trajes mais recatados, que a irmã abandonara, e foi colocar-se ao seu lado. Os vizires chegaram, entre reverências, trocaram algumas palavras em voz baixa. E encaminhavam-se para aquela das duas irmãs que se achava mais discretamente vestida, pedindo-lhe que lhes ditasse a história do povo árabe. Essa era a Mentira.

Data desse tempo, o costume que têm os historiadores, de, ao escrever a história dos povos, se servirem da Mentira como se fosse a Verdade.

 –

Em: À sombra das tamareiras (contos orientais), Humberto de Campos, São Paulo,  W. M. Jackson Inc. : 1941, publicação original de 1934.

Humberto de Campos (Brasil, 1886-1934) poeta, jornalista, escritor e político. Membro da Academia Brasileira de Letras.





O corvo e a raposa, poema e fábula, Bocage

24 02 2013

1289703457Ilustração de John Rae.

O corvo e a raposa

Bocage

——————-(tradução de La Fontaine)

 –

É fama que estava o corvo

Sobre uma árvore pousado

E que no sôfrego bico

Tinha um queijo atravessado.

Pelo faro, àquele sítio

Veio a raposa matreira,

A qual, pouco mais ou menos,

Lhe falou desta maneira:

– Bons dias, meu lindo corvo;

És glória desta espessura;

És outra fênix, se acaso

Tens a voz como a figura.

A tais palavras, o corvo,

Com louca, estranha afouteza,

Por mostrar que é bom solista

Abre o bico e solta a presa.

Lança-lhe a mestra o gadanho

E diz: – Meu amigo, aprende

Como vive o lisonjeiro

À custa de quem o atende.

Esta lição vale um queijo;

Tem destas para teu uso.

Rosna então consigo o corvo

Envergonhado e confuso:

– Velhaca, deixou-me em branco;

Fui tolo em fiar-me dela;

Mas este logro me livra

De cair noutra esparrela.





A cobra e o gaturamo, fábula de Coelho Neto

23 02 2013

hokusai-katsushika--schlange-und-voeglein-Katsushika Hokusai - Snake and bird - Cobra e pássaro

O pássaro e a cobra, s/d

Katsushika Hokusai ( Japão, 1760-1849)

Pintura sobre papel, 25,6 х 36,3 cm

Coleção Particular

A cobra e o gaturamo

Coelho Neto

O tempo era de grande esterilidade e os animais andavam esfomeados. Uma cobra, que se arrastava, todo o dia, ao sol, pelo areal abrasado, à procura de alguma cousa com que atendesse à fome que lhe roía as entranhas,  perdida toda esperança, enroscou-se em uma pedra e ali deixou-se ficar à espera da morte. Iam-se lhe fechando os olhos de fraqueza, quando um passarinho se pôs a cantar num ramo seco, lançando tão alegres vozes, que a cobra, que era matreira, logo percebeu que tinha  de avir-se com um novato, porque passarinho velho não seria tão indiferente a rolar gorjeios em tempo tão infeliz. Assim, instruída pela experiência, imaginou uma traça astuta e, espichando o pescoço, pôs-se a gemer com altos guaiados: — “Ai! de mim, que vou morrer sem alguém que me valha. Ai! de mim…” – Ouviu-a o gaturamo e, porque era curioso, voou do galho ao chão. Pondo-se diante da cobra, interrogou-a. “Que tendes senhora cobra? Por que assim gemeis tão aflita?” – “Ai! de mim! Fui ali acima à fonte, achei água tão fresca e pus-me a beber tão sôfrega, que engoli um diamante do tamanho de uma noz.  Tenho-o atravessado na garganta e morrerei se não encontrar pessoa de caridade que mo queira tirar. Vale um reino a pedra e eu a darei por prêmio a quem me fizer o benefício de arrancar-ma da goela, onde se encravou.”  — Tufou-se em agrado pretensioso o enfatuado gaturamo e, pensando no tesouro que ali tinha ao alcance do bico, redargüiu à cobra: “Não é pelo que vale o diamante, mas pelo alto preço em que vos tenho, que me ofereço para aliviar-vos. Abri a boca!” – Não se fez a cobra rogar e, tanto que sentiu o passarinho, foi um trago. Então, saciada e rindo – como riem as cobras, — enrodilhou-se de novo e adormeceu, contente.





A flauta e o sabiá, fábula de Coelho Neto

8 01 2013

gaiola e mulher, george barbierO vôo do pássaro, George Barbier (França,1882-1932)

A flauta e o sabiá

Coelho Neto

Em rico estojo de veludo, pousado sobre uma mesa de charão, jazia uma flauta de prata. Justamente por cima da mesa, em riquíssima gaiola suspensa ao teto, morava um sabiá. Estando a sala em silêncio, e descendo um raio de sol sobre a gaiola, eis que o sabiá, contente, modula uma ária.

Logo a flauta escarninha põe-se a casquinar no estojo como a zombar do módulo cantor silvestre.

— De que te ris? indaga o pássaro.

E a flauta em resposta:

— Ora esta! pois tens coragem de lançar guinchos diante de mim?

— E tu quem és? ainda que mal pergunte.

— Quem sou? Bem se vê que és um selvagem. Sou a flauta. Meu inventor, Mársias, lutou com Apolo e venceu-o. Por isso o deus despeitado o imolou. Lê os clássicos.

— Muito prazer em conhecer… Eu sou um mísero sabiá da mata, pobre de mim! fui criado por Deus muito antes das invenções. Mas deixemos o que lá se foi. Dize-me: que fazes tu?

— Eu canto.

— O ofício rende pouco. Eu que o diga que não faço outra coisa. Deixarei, todavia, de cantar e antes nunca houvesse aberto o bico porque, talvez, sendo mudo, não houvessem escravizado se, ouvindo a tua voz, convencer-me de que és superior a mim. Canta! Que eu aprecie o teu gorjeio e farei como for de justiça.

— Que eu cante?!…

— Pois não te parece justo o meu pedido?

— Eu canto para regalo dos reis nos paços; a minha voz acompanha hinos sagrados nas igrejas. O meu canto é harmoniosa inspiração dos gênios ou a rapsódia sentimental do povo.

— Pois venha de lá esse primor. Aqui estou para ouvir-te e para proclamar-te, sem inveja, a rainha do canto.

— Isso agora não é possível.

— Não é possível! por quê?

— Não está cá o artista.

— Que artista?

— O meu senhor, de cujos lábios sai o sopro que transformo em melodia. Sem ele nada posso fazer.

— Ah! é assim?

— Pois como há de ser?

— Então, minha amiga modéstia à parte vivam os sabiás! Vivam os sabiás e todos os pássaros dos bosques, que cantam quando lhes apraz, tirando do próprio peito o alento com que fazem a melodia. Assim da tua vanglória há muitos que se ufanam. Nada valem se os não socorrem o favor de alguém; não se movem se os não amparam; não cantam se lhes não dão gorjeia porque tem voz. E sucede sempre serem os que vivem do prestígio alheio, os que mais alegam triunfos. Flautas, flautas… cantam nos paços e nas catedrais… pois venha daí um dueto comigo.

E, ironicamente, a toda voz, pôs-se a cantar o sabiá, e a flauta de prata, no estojo de veludo… moita.

Faltava-lhe o sopro.

***





A flor e a nuvem, fábula de Pierre Lachambaudie

11 06 2012

Flor seca, ilustração de Justin Francavilla.

A flor e a chuva

Lachambaudie

Reina o estio. No vale

Languida flor emurchece,

E chama, p’ra socorrê-la,

Uma nuvem, que aparece.

Tu que do Aquilão[*] nas asas

Vais pelo espaço a correr,

Vê que de calor me abraso,

Vem, não me deixes morrer.

Com essas águas que levas,

A minha dor refrigera.

— “Tenho missão mais sagrada,

Agora não posso — espera“.

Disse e foi-se!.. De abrasada

Cai e espira a flor tão bela:

Volta a nuvem e despeja

Quanta água tinha sobre ela.

Era tarde!

[*] Aquilão é o vento do norte.

Em: O Espelho, revista semanal de literatura, modas, indústria e artes, Rio de Janeiro, 1859.

NOTAS:

1 – Não sei de quem é o texto em português.  A publicação de 1859, não traz autoria.

2 – Lachambaudie (1807-1872) foi um escritor, poeta, cancioneiro francês.   Trabalhou como contador a maior parte de sua vida.  Foi um escritor de fábulas, na tradição de seu conterrâneo La Fontaine, em verso. Dentre outras publicações de poesia, distingui-se sobretudo seu livro, Fábulas de Pierre Lachambeaudie, de 1844.

Frequentemente quando posto uma fábula sem a famosa “moral” no final, alguém inevitavelmente me pergunta pela moral.  Não é um obrigatoriedade de todas as fábulas apresentarem uma moral, pré-estabelecida pelo autor.  Muitas vezes, talvez até mais do que se imagina, a moral é para ser entendida pelo leitor.  Aqui nesse caso, cabe o dito popular:

Não deixe para amanhã o que pode fazer hoje.





Fábula: A raposa e as uvas, texto de Monteiro Lobato

18 04 2012

A raposa e as uvas, ilustração JACOT.

A raposa e as uvas

Certa raposa esfaimada encontrou uma parreira carregadinha de lindos cachos maduros, coisa de fazer vir água à boca. Mas tão altos que nem pulando.

O matreiro bicho torceu o focinho.

Estão verdes — murmurou. Uvas verdes, só para cachorro.

E foi-se.

Nisto deu o vento e uma folha caiu.

A raposa ouvindo o barulhinho voltou depressa e pos-se a farejar…

Quem desdenha quer comprar.

Em: Fábulas, Monteiro Lobato, São Paulo, Ed. Brasiliense:1966, 20ª edição.

José Bento Monteiro Lobato, (Taubaté, SP, 1882 – 1948).  Escritor, contista; dedicou-se à literatura infantil. Foi um dos fundadores da Companhia Editora Nacional. Chamava-se José Renato Monteiro Lobato e alterou o nome posteriormente para José Bento.

Obras:

A Barca de Gleyre, 1944

A Caçada da Onça, 1924

A ceia dos acusados, 1936

A Chave do Tamanho, 1942

A Correspondência entre Monteiro Lobato e Lima Barreto, 1955

A Epopéia Americana, 1940

A Menina do Narizinho Arrebitado, 1924

Alice no País do Espelho, 1933

América, 1932

Aritmética da Emília, 1935

As caçadas de Pedrinho, 1933

Aventuras de Hans Staden, 1927

Caçada da Onça, 1925

Cidades Mortas, 1919

Contos Leves, 1935

Contos Pesados, 1940

Conversa entre Amigos, 1986

D. Quixote das crianças, 1936

Emília no País da Gramática, 1934

Escândalo do Petróleo, 1936

Fábulas, 1922

Fábulas de Narizinho, 1923

Ferro, 1931

Filosofia da vida, 1937

Formação da mentalidade, 1940

Geografia de Dona Benta, 1935

História da civilização, 1946

História da filosofia, 1935

História da literatura mundial, 1941

História das Invenções, 1935

História do Mundo para crianças, 1933

Histórias de Tia Nastácia, 1937

How Henry Ford is Regarded in Brazil, 1926

Idéias de Jeca Tatu, 1919

Jeca-Tatuzinho, 1925

Lucia, ou a Menina de Narizinho Arrebitado, 1921

Memórias de Emília, 1936

Mister Slang e o Brasil, 1927

Mundo da Lua, 1923

Na Antevéspera, 1933

Narizinho Arrebitado, 1923

Negrinha, 1920

Novas Reinações de Narizinho, 1933

O Choque das Raças ou O Presidente Negro, 1926

O Garimpeiro do Rio das Garças, 1930

O livro da jangal, 1941

O Macaco que Se Fez Homem, 1923

O Marquês de Rabicó, 1922

O Minotauro, 1939

O pequeno César, 1935

O Picapau Amarelo, 1939

O pó de pirlimpimpim, 1931

O Poço do Visconde, 1937

O presidente negro, 1926

O Saci, 1918

Onda Verde, 1923

Os Doze Trabalhos de Hércules,  1944

Os grandes pensadores, 1939

Os Negros, 1924

Prefácios e Entrevistas, 1946

Problema Vital, 1918

Reforma da Natureza, 1941

Reinações de Narizinho, 1931

Serões de Dona Benta,  1937

Urupês, 1918

Viagem ao Céu, 1932

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Esta fábula de Monteiro Lobato é uma das centenas de variações feitas através dos séculos da fábulas de Esopo, escritor grego, que viveu no século VI AC.  Suas fábulas foram reunidas e atribuídas a ele, por Demétrius em 325 AC.  Desde então tornaram-se clássicos da cultura ocidental e muitos escritores como Monteiro Lobato, re-escreveram e ficaram famosos por recriarem estas histórias, o que mostra a universalidade dos textos, das emoções descritas e da moral neles exemplificada.  Entre os mais famosos escritores que recriaram as Fábulas de Esopo estão Fedro e La Fontaine.

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Fábula: O lobo e o cordeiro, texto de Monteiro Lobato

5 04 2012

 

O lobo e o cordeiro

Estava o cordeiro a beber num córrego, quando apareceu um lobo esfaimado , de horrendo aspecto.

— Que desaforo é esse de turvar a água que venho beber? — disse o monstro arreganhando os dentes.  Espere, que vou castigar tamanha má-criação!…

O cordeirinho, trêmulo de medo,respondeu com inocência:

— Como posso turvar a água que o senhor vai beber se ela corre do senhor para mim?

Era verdade aquilo e o lobo atrapalhou-se com a resposta.  Mas não deu  o rabo a torcer.

— Além disso — inventou ele — sei que você andou falando mal de mim o ano passado.

— Como poderia falar mal do senhor o ano passado, se nasci este ano?

Novamente confundido pela voz da inocência, o lobo insistiu:

— Se não foi você, foi seu irmão mais velho, o que dá no mesmo.

— Como poderia ser meu irmão mais velho, se sou filho único?

O lobo furioso, vendo que com razões claras não vencia o pobrezinho, veio com uma razão de lobo faminto:

— Pois se não foi seu irmão, foi seu pai ou seu avô!

E — nhoc! — sangrou-o no pescoço.

Contra a força não há argumentos.

Em: Fábulas, Monteiro Lobato, São Paulo, Ed. Brasiliense:1966, 20ª edição.

José Bento Monteiro Lobato, (Taubaté, SP, 1882 – 1948).  Escritor, contista; dedicou-se à literatura infantil. Foi um dos fundadores da Companhia Editora Nacional. Chamava-se José Renato Monteiro Lobato e alterou o nome posteriormente para José Bento.

Obras:

A Barca de Gleyre, 1944

A Caçada da Onça, 1924

A ceia dos acusados, 1936

A Chave do Tamanho, 1942

A Correspondência entre Monteiro Lobato e Lima Barreto, 1955

A Epopéia Americana, 1940

A Menina do Narizinho Arrebitado, 1924

Alice no País do Espelho, 1933

América, 1932

Aritmética da Emília, 1935

As caçadas de Pedrinho, 1933

Aventuras de Hans Staden, 1927

Caçada da Onça, 1925

Cidades Mortas, 1919

Contos Leves, 1935

Contos Pesados, 1940

Conversa entre Amigos, 1986

D. Quixote das crianças, 1936

Emília no País da Gramática, 1934

Escândalo do Petróleo, 1936

Fábulas, 1922

Fábulas de Narizinho, 1923

Ferro, 1931

Filosofia da vida, 1937

Formação da mentalidade, 1940

Geografia de Dona Benta, 1935

História da civilização, 1946

História da filosofia, 1935

História da literatura mundial, 1941

História das Invenções, 1935

História do Mundo para crianças, 1933

Histórias de Tia Nastácia, 1937

How Henry Ford is Regarded in Brazil, 1926

Idéias de Jeca Tatu, 1919

Jeca-Tatuzinho, 1925

Lucia, ou a Menina de Narizinho Arrebitado, 1921

Memórias de Emília, 1936

Mister Slang e o Brasil, 1927

Mundo da Lua, 1923

Na Antevéspera, 1933

Narizinho Arrebitado, 1923

Negrinha, 1920

Novas Reinações de Narizinho, 1933

O Choque das Raças ou O Presidente Negro, 1926

O Garimpeiro do Rio das Garças, 1930

O livro da jangal, 1941

O Macaco que Se Fez Homem, 1923

O Marquês de Rabicó, 1922

O Minotauro, 1939

O pequeno César, 1935

O Picapau Amarelo, 1939

O pó de pirlimpimpim, 1931

O Poço do Visconde, 1937

O presidente negro, 1926

O Saci, 1918

Onda Verde, 1923

Os Doze Trabalhos de Hércules,  1944

Os grandes pensadores, 1939

Os Negros, 1924

Prefácios e Entrevistas, 1946

Problema Vital, 1918

Reforma da Natureza, 1941

Reinações de Narizinho, 1931

Serões de Dona Benta,  1937

Urupês, 1918

Viagem ao Céu, 1932

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Esta fábula de Monteiro Lobato é uma das centenas de variações feitas através dos séculos da fábulas de Esopo, escritor grego, que viveu no século VI AC.  Suas fábulas foram reunidas e atribuídas a ele, por Demétrius em 325 AC.  Desde então tornaram-se clássicos da cultura ocidental e muitos escritores como Monteiro Lobato, re-escreveram e ficaram famosos por recriarem estas histórias, o que mostra a universalidade dos textos, das emoções descritas e da moral neles exemplificada.  Entre os mais famosos escritores que recriaram as Fábulas de Esopo estão Fedro e La Fontaine.

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