Presença de espírito de um árabe, texto de Latino Coelho

19 06 2014

 

 

1860_corot_le_peintre_dumax_01O pintor Dumax em trajes árabes, 1860

Camille Corot (França, 1796-1875)

óleo sobre tela, 33 x 22 cm

Coleção Particular

 

Presença de espírito de um árabe

Latino Coelho

 

El Hadjaje, governador de uma província de África, saíra um dia com seus grandes oficiais a caçar, e como seguisse tenazmente uma rês, afastou-se dos que o acompanhavam a ponto, que não sabia depois como voltasse.
Quando estava a meditar no que devia fazer viu um árabe velho, em um próximo campo, a mirá-lo muito atento.
— Donde és tu? disse o governador.
— Daquela cabana que vês além.
— Não és dos de Beni-Adjel?
— Tu o disseste: este campo pertence-lhe.
— Ora, conta-me cá bom velho, que se diz por aí dos agentes do governo?
— Diz-se que são homens sem honra, sem fé, e sem vergonha, que roubam, perseguem e oprimem os habitantes.
— E tu formas deles a mesma opinião?
— A mesma exatamente.
— E que me dizes de El Hadjaje?
— Digo que é o pior de todos. Deus o faça tão negro como um carvão, e amaldiçoe o Califa que lhe confiou o mundo.
— Sabes com quem estás falando?
— Em verdade, não sei.
— Pois eu sou El Hadjaje.
— Folgo em conhecer-te, disse o ancião sem perturbar-se. E tu sabes quem eu sou?
— Não, respondeu o governador maravilhado.
— Chamam-se Zeid-ben-Aamer, e sou o louco de Beni-Adjel. Todos os dias, um pouco antes do sol posto, perco a razão. São quatro horas talvez; não me pode tardar muito o acesso.
O governador não procedeu contra o pobre do homem, e depois de lhe perguntar pelo caminho que devia seguir, deu-lhe algum dinheiro, e abalou.

***

Em: O Panorama: semanário literário e instrutivo, volume IX, primeiro da terceira série, publicado em 5 de setembro de 1846 a 15 de dezembro de 1852. Lisboa: 1852, p. 312.

 





O caboclo, o padre e o estudante conto folclórico do Brasil, Luiz da Câmara Cascudo

10 04 2013

priest-extends

 

Padre, 1977

Fernando Botero (Colômbia, 1932)

Óleo sobre tela

O caboclo, o padre e o estudante

Um estudante e um padre viajavam pelo sertão, tendo como bagageiro um caboclo. Deram-lhe numa casa um pequeno queijo de cabra. Não sabendo como dividí-lo, mesmo porque chegaria um pequenino pedaço para cada um, o padre resolveu que todos dormissem e o queijo seria daquele que tivesse, durante a noite, o sonho mais bonito, pensando engabelar todos com os seus recursos oratórios. Todos aceitaram e foram dormir. À noite, o caboclo acordou, foi ao queijo e comeu-o.

Pela manhã, os três sentaram à mesa para tomar café e cada qual teve de contar o seu sonho. O frade disse ter sonhado com a escada de Jacob e descreveu-a brilhantemente. Por ela, ele subia triunfalmente para o céu. O estudante, então, narrou que sonhara já dentro do céu à espera do padre que subia. O caboclo sorriu e falou:

– Eu sonhei que vi seu padre subindo a escada e seu doutor lá dentro do céu, rodeado de amigos. Eu ficava na terra e gritava:

Seu doutor, seu padre, o queijo! Vosmincês esqueceram o queijo.

Então, vosmincês respondiam de longe, do céu:

– Come o queijo, caboclo! Come o queijo, caboclo! Nós estamos no céu, não queremos queijo.

O sonho foi tão forte que eu pensei que era de verdade, levantei-me, enquanto vosmincês dormiam, e comi o queijo…

Em: Contos Tradicionais do Brasil (folclore) de Luís da Câmara Cascudo, Rio de Janeiro, Ediouro:1967





As duas filhas do rei Hassan, de Humberto de Campos

22 03 2013

Fabio Fabbi

Dançarinas, c. 1890

Fabio Fabbi (Itália, 1861-1946)

Óleo sobre tela

Clarke Auction House

As duas filhas do rei Hassan

Humberto de Campos

Quando os árabes se reuniram pela primeira vez para, fixando-se na terra, interromper a sua tradição de povo nômade, resolveram eleger, também, entre os varões mais prudentes que vagavam com eles pelos desertos, um que lhes servisse de chefe. A escolha recaiu no xeique Hassan, notável, na mocidade, pela sua sabedoria. Era um ancião de grande estatura e de barbas grisalhas que lhe cobriam o peito inteiro, e tão ágil ainda, e tão robusto, que não chamava, jamais, os moços de sua tribo quando se precisava, na sua tenda, da pele de um leão.

Hassan possuía duas filhas, que o auxiliavam conforme a necessidade e a ocasião. A uma, dera o nome de Mentira. A outra, o de Verdade. Irmãs, embora as duas não tinham entre si, a menor semelhança. A Mentira erra mais velha, mais bonita. Na sua vida errante, enfeitava-se a cada hora, não usando, jamais, em um dia, o manto, de pele de leopardo ou de cordeiro que havia posto na véspera. A verdade não era feia, mas era triste, e de fisionomia severa. E apresentava, ainda, a desvantagem de não variar de vestuário. Por isso mesmo, não gostavam de andar uma em companhia da outra. Quando a Verdade chegava, a Mentira retirava-se, rapidamente. Mas, como era mais sedutora que a irmã, esta não conseguia, jamais, tomar-lhe o lugar na estima dos homens.

Os árabes foram, sempre, um povo de poetas. A cadência da marcha do camelo, ou do passo manso do cavalo do beduíno, deu-lhes o ritmo para o canto. Onde havia uma caravana, havia poetas. Onde se levantava uma tenda, erguia-se a modulação de uma voz. E os poetas tomaram-se de paixão pela Mentira. Debalde a outra se aproximava deles. Nenhum se apercebia da sua formosura grave, porque a Mentira sempre lhes parecia mais bonita que a Verdade.

Tornando chefe do povo árabe, o primeiro cuidado do xeique Hassan constituiu em consolidar a estabilidade das tribos errantes, fundando a primeira cidade. Para maior segurança da ordem, e prestígio da sua palavra, proclamou-se rei. E nomeou os seus ministros. E escolheu os seus generais. E, com o desenvolvimento crescente da nação, fundou uma corte de onde tirava os emires, os vizires, os cadiz, os que deviam distribuir a justiça ou governar as províncias, que se estenderam pelo deserto e pelas margens do mar. E quem, no palácio do rei Hassan mandava em tudo, e dirigia tudo, era a Mentira. Como a Verdade era austera e fria, seu pai, como todos os governantes que vieram depois, não gostava de ouvi-la. A Mentira, não. A Mentira era alegre e vivaz, e, dessa maneira, todos gostavam dela. A política do reino dos árabes, como a de todos os governos do mundo que surgiram mais tarde, passou a ser obra sua, trama ideada pelo seu cérebro e tecida pelas suas mãos.

Entre os governadores mais ricos das províncias vizinhas do mar, um havia, chamado Ahmad, o qual possuía uma filha, Amina, moça de grande e estranha formosura. Informado da sua beleza e da sua fortuna, Mahmud, chefe dos guardas do rei Hassan, mandou-lhe, por uma escrava, o seu juramento de amor.  Ao mesmo tempo, enviava-lhe o mesmo juramento o príncipe Mansur, senhor do s oásis de Al-Kanfa. O príncipe era, no palácio real, amigo da Verdade. Mahmud, amigo da Mentira. E foi Mahmud quem venceu no coração da princesa Amina, porque em negócios de amor a Mentira é mais experiente que a verdade.

Por esse tempo, o reino dos árabes, dirigido pela sabedoria de Hassan, que sempre recorria à habilidade da filha mais velha, estendia-se já, por toda a península, compreendendo montanhas e vales, praias e desertos. Redigidas pelas Mentira os tratados de aliança ou de paz acabavam sempre, por anexar aos seus domínios os domínios dos seus vizinhos. E foi então, quando o grande monarca pensou na maneira de pensar aos sucessores a notícia de seus próprios feitos, e a história de formação do seu povo. A velhice extrema anunciava-lhe de modo preciso, que a morte não vinha longe. E o rei Hassan chamou dois vizires que sabiam escrever a língua árabe, e disse-lhes:

— Quero que narreis em papiro, para conhecimento dos homens do futuro, como nasceu a nação árabe, e como surgiu no deserto, a primeira cidade. Estou sem forças para vos narrar todos os fatos. Minhas duas filhas, se acham, porém, ao corrente de tudo, e vos contarão todos os sucessos que constituem a história do meu reino.

— Por qual das duas nos devemos guiar, senhor? – indagaram os dois primeiros historiadores. – Pela Mentira ou pela Verdade?

— Escolhei,  vós mesmos,  – respondeu o rei Hassan.

E morreu.

Habituada a ver-se preterida pela irmã, a Verdade resolveu conquistar o lugar, como informante dos historiadores. Para isso, vestiu o mais soberbo e vistoso manto que havia no palácio, pintou os olhos como os da Mentira, e foi para o salão em que devia ser procurada pelos vizires.  Por sua vez, a Mentira, certa de que homens tão severos procurariam, de preferência, para informações tão graves, aquela das irmãs que lhes parecesse mais discreta e modesta, escolheu os trajes mais recatados, que a irmã abandonara, e foi colocar-se ao seu lado. Os vizires chegaram, entre reverências, trocaram algumas palavras em voz baixa. E encaminhavam-se para aquela das duas irmãs que se achava mais discretamente vestida, pedindo-lhe que lhes ditasse a história do povo árabe. Essa era a Mentira.

Data desse tempo, o costume que têm os historiadores, de, ao escrever a história dos povos, se servirem da Mentira como se fosse a Verdade.

 –

Em: À sombra das tamareiras (contos orientais), Humberto de Campos, São Paulo,  W. M. Jackson Inc. : 1941, publicação original de 1934.

Humberto de Campos (Brasil, 1886-1934) poeta, jornalista, escritor e político. Membro da Academia Brasileira de Letras.





Os pessegueiros, de Guerra Junqueiro

14 03 2013

a-boy-with-peachesAleksander Gierymski (1850 – 1901, Polish)

Menino com pêssegos, 1892

Julian Falat (Polônia, 1853 – 1929)

aquarela sobre papel, 46 x 36 cm

Obra perdida durante a segunda guerra mundial, 1939-1945

The Lost Museum

Os pessegueiros

Guerra Junqueiro

Um lavrador tinha quatro filhos, trouxe-lhes um dia cinco pêssegos magníficos. Os pequenos, que nunca tinham visto semelhantes frutos, extasiaram-se diante das suas cores e da fina penugem que os cobria. À noite, o pai perguntou-lhes:

— Então, comeram os pêssegos?

— Eu comi, disse o mais velho. Que bom que era! Guardei o caroço, e hei de plantá-lo para mais tarde nascer uma árvore.

— Fizeste bem, respondeu o pai, é bom ser econômico e pensar no futuro.

— Eu, disse o mais novo, o meu pêssego comi-o logo, e a mamã ainda me deu metade do que lhe toco a ela. Era doce como mel.

— Ah! Acudiu o pai, foste um pouco guloso, mas na tua idade não admira; espero que quando fores maior te hás de corrigir.

— Pois eu cá, disse o terceiro, apanhei o caroço que meu irmão deitou fora, quebrei-o e comi o que estava dentro, que era como uma noz. Vendi o meu pêssego e com o dinheiro hei de comprar coisas quando for à cidade.

O pai meneou a cabeça.

— Foi uma idéia engenhosa, mas preferia menos caçulo. E tu, Eduardo, provaste o teu pêssego?

— Eu, meu pai, respondeu o pequeno, levei-o ao filho do nosso vizinho, ao Jorge, que está, coitadinho, com febre. Ele não queria, mas deixei-lhe em cima da cama, e vim-me embora.

— Ora bem,  pergunto o pai, qual de vós é que empregou melhor o pêssego que eu lhe dei?

E os três pequenos disseram à uma:

— Foi o mano Eduardo.

Este, no entanto, não dizia palavra, e a mãe abraçou-o com os olhos arrasados de lágrimas.

Em: Contos para a Infância, edição do Porto, de 1953, sem editora.





A cobra e o gaturamo, fábula de Coelho Neto

23 02 2013

hokusai-katsushika--schlange-und-voeglein-Katsushika Hokusai - Snake and bird - Cobra e pássaro

O pássaro e a cobra, s/d

Katsushika Hokusai ( Japão, 1760-1849)

Pintura sobre papel, 25,6 х 36,3 cm

Coleção Particular

A cobra e o gaturamo

Coelho Neto

O tempo era de grande esterilidade e os animais andavam esfomeados. Uma cobra, que se arrastava, todo o dia, ao sol, pelo areal abrasado, à procura de alguma cousa com que atendesse à fome que lhe roía as entranhas,  perdida toda esperança, enroscou-se em uma pedra e ali deixou-se ficar à espera da morte. Iam-se lhe fechando os olhos de fraqueza, quando um passarinho se pôs a cantar num ramo seco, lançando tão alegres vozes, que a cobra, que era matreira, logo percebeu que tinha  de avir-se com um novato, porque passarinho velho não seria tão indiferente a rolar gorjeios em tempo tão infeliz. Assim, instruída pela experiência, imaginou uma traça astuta e, espichando o pescoço, pôs-se a gemer com altos guaiados: — “Ai! de mim, que vou morrer sem alguém que me valha. Ai! de mim…” – Ouviu-a o gaturamo e, porque era curioso, voou do galho ao chão. Pondo-se diante da cobra, interrogou-a. “Que tendes senhora cobra? Por que assim gemeis tão aflita?” – “Ai! de mim! Fui ali acima à fonte, achei água tão fresca e pus-me a beber tão sôfrega, que engoli um diamante do tamanho de uma noz.  Tenho-o atravessado na garganta e morrerei se não encontrar pessoa de caridade que mo queira tirar. Vale um reino a pedra e eu a darei por prêmio a quem me fizer o benefício de arrancar-ma da goela, onde se encravou.”  — Tufou-se em agrado pretensioso o enfatuado gaturamo e, pensando no tesouro que ali tinha ao alcance do bico, redargüiu à cobra: “Não é pelo que vale o diamante, mas pelo alto preço em que vos tenho, que me ofereço para aliviar-vos. Abri a boca!” – Não se fez a cobra rogar e, tanto que sentiu o passarinho, foi um trago. Então, saciada e rindo – como riem as cobras, — enrodilhou-se de novo e adormeceu, contente.





O amor materno, texto de Garcia Redondo

5 02 2013

mãe e filho, 1922, John Rae

Mãe e filho no jardim, ilustração de John Rae, 1922.

O Amor Materno

Garcia Redondo

No fundo da chácara, numa touceira de arbustos, um menino encontrou um ninho, onde três avezinhas mal emplumadas dormiam. Contente do seu achado e no desejo inconsciente de se apoderar dele, o menino meteu o braço por entre a trama dos galhos e das folhas e aproximou a mão cobiçosa dos pobres inocentes, que logo ergueram para ele o biquinho e o sussurro duma asa que lhe roçou pelo rosto.  Depois sentiu que essa asa lhe batia nos olhos e que um bico audaz lhe espicaçava o rosto. Tímido, receoso dessa inesperada agressão, retirou o braço e olhou. Era um tico-tico, a mãe da avezinhas no ninho, que defendia a prole, e continuou a atacar o menino, enquanto ele permaneceu junto à touceira de arbustos. Saindo dali, muito admirado da audácia e da coragem  dessa ave minúscula, o menino contou o caso à mãe. E a mãe lhe disse:

— Não há que estranhar, meu filho: essa avezinha faz pelos filhos o que eu faria por ti.

 

[Exemplo de narrativa demonstrativa]

Em: Flor do Lácio, Cleófano Lopes de Oliveira, São Paulo, Saraiva:1964, página 202.





A flauta e o sabiá, fábula de Coelho Neto

8 01 2013

gaiola e mulher, george barbierO vôo do pássaro, George Barbier (França,1882-1932)

A flauta e o sabiá

Coelho Neto

Em rico estojo de veludo, pousado sobre uma mesa de charão, jazia uma flauta de prata. Justamente por cima da mesa, em riquíssima gaiola suspensa ao teto, morava um sabiá. Estando a sala em silêncio, e descendo um raio de sol sobre a gaiola, eis que o sabiá, contente, modula uma ária.

Logo a flauta escarninha põe-se a casquinar no estojo como a zombar do módulo cantor silvestre.

— De que te ris? indaga o pássaro.

E a flauta em resposta:

— Ora esta! pois tens coragem de lançar guinchos diante de mim?

— E tu quem és? ainda que mal pergunte.

— Quem sou? Bem se vê que és um selvagem. Sou a flauta. Meu inventor, Mársias, lutou com Apolo e venceu-o. Por isso o deus despeitado o imolou. Lê os clássicos.

— Muito prazer em conhecer… Eu sou um mísero sabiá da mata, pobre de mim! fui criado por Deus muito antes das invenções. Mas deixemos o que lá se foi. Dize-me: que fazes tu?

— Eu canto.

— O ofício rende pouco. Eu que o diga que não faço outra coisa. Deixarei, todavia, de cantar e antes nunca houvesse aberto o bico porque, talvez, sendo mudo, não houvessem escravizado se, ouvindo a tua voz, convencer-me de que és superior a mim. Canta! Que eu aprecie o teu gorjeio e farei como for de justiça.

— Que eu cante?!…

— Pois não te parece justo o meu pedido?

— Eu canto para regalo dos reis nos paços; a minha voz acompanha hinos sagrados nas igrejas. O meu canto é harmoniosa inspiração dos gênios ou a rapsódia sentimental do povo.

— Pois venha de lá esse primor. Aqui estou para ouvir-te e para proclamar-te, sem inveja, a rainha do canto.

— Isso agora não é possível.

— Não é possível! por quê?

— Não está cá o artista.

— Que artista?

— O meu senhor, de cujos lábios sai o sopro que transformo em melodia. Sem ele nada posso fazer.

— Ah! é assim?

— Pois como há de ser?

— Então, minha amiga modéstia à parte vivam os sabiás! Vivam os sabiás e todos os pássaros dos bosques, que cantam quando lhes apraz, tirando do próprio peito o alento com que fazem a melodia. Assim da tua vanglória há muitos que se ufanam. Nada valem se os não socorrem o favor de alguém; não se movem se os não amparam; não cantam se lhes não dão gorjeia porque tem voz. E sucede sempre serem os que vivem do prestígio alheio, os que mais alegam triunfos. Flautas, flautas… cantam nos paços e nas catedrais… pois venha daí um dueto comigo.

E, ironicamente, a toda voz, pôs-se a cantar o sabiá, e a flauta de prata, no estojo de veludo… moita.

Faltava-lhe o sopro.

***





O papagaio real, conto tradicional do Brasil, coletado por Luiz da Cãmara Cascudo

28 08 2012

Jovem reclinada com papagaio

Valentine Cameron Prinsep (Inglaterra,  1838-1904)

óleo sobre tela

O papagaio real

Duas moças moravam juntas e eram irmãs, uma muito boa e a outra maldizente e preguiçosa. Cada uma tinha seu quarto. A mais velha começou a notar um barulho de asa e depois fala de homem no quarto da irmã. Ficou desconfiada e foi olhar pelo buraco da fechadura.  Viu uma bacia cheia d’água no meio do quarto.  Quando deu meia-noite chegou na janela um papagaio enorme, muito bonito e voou para dentro, metendo-se na bacia, sacudindo-se todo, espalhando água para todos os lados. Cada gota d’água virava ouro e o papagaioo, quando saiu do banho, foi um príncipe mais formoso do mundo. Sentou-se ao lado da irmã e pegaram a conversar como noivos. A irmã ficou roxa de inveja. No outro dia, de tarde, encheu o peitoril da janela de cacos de vidro, assim como a bacia. Nas horas da noite o papagaio chegou e batendo no peitoril cortou-se todo. Voou para a bacia e cortou-se ainda mais. Arrastando-se, o papagaio não virou príncipe, mas chegou até a janela e disse para a moça que estava assombrada com o que acontecera:

— Ai ingrata! Dobraste-me os encantos! Se me quiseres ver só no reino de Acelóis

E, batendo asas, desapareceu. A moça quase se acaba de chorar e de se lastimar. Brigou muito com a irmã e deixou a casa, procurando o noivo pelo mundo. Ia andando, empregando-se como criada nas casas só para perguntar onde ficava o reino de Acelóis. Ninguém sabia ensinar e a moça ia ficando desanimada.

Uma noite, depois de muito viajar, já cansada, ficou com medo dos animais ferozes e subiu em uma árvore, escondendo-se bem nas folhas. Estava amoquecada quando diversos bichos esquisitos chegaram para baixo do pé de pau e pegaram a conversar.

— De onde chegou você?

— Do reino da Lua!

— E você?

— O reino do Sol!

— E você?

— Do reino dos Ventos!

A moça prestou atenção. No primeiro cantar dos galos sumiram-se todos, e ela desceu e continuou a marcha. Andou, andou, até que chegou noutra mata e, para não ser devorada, trepou numa árvore. Lá em cima, quando a noite ficou bem fechada, chegaram umas vozes no pé do pau.

— De onde veio?

— Do reino da Estrela!

— De onde veio?

— Do reino de Acelóis!

— Que novidades me traz?

— O príncipe está doente e ninguém sabe como tratar dele…

A moça botou reparo e na madrugada seguiu no mesmo rumo pois as vozes já tratavam do reino de Acelóis. Andou, andou, andou. Finalmente, quando anoiteceu, estava dentro de uma floresta. Subiu em um pau e ficou quieta, lá em cima. Mais tarde as vozes começaram na falaria:

— De onde vem você?

— Do reino de Acelóis!

— Como vai o príncipe?

— Vai mal, coitado, não tem remédio!

— Ora não tem! Tem! O remédio é ele beber três gotas de sangue do dedo mindinho de uma moça donzela que queria morrer por ele!

Quando amanheceu o dia, a moça tocou-se na estrada. Ia o sol se sumindo quando ela avistou o reinado de Acelóis. Entrou no reinado e pediu agasalho numa casa. Na hora da ceia perguntou o que havia e disseram que o assunto da terra era a doença do príncipe. A moça, no outro dia, mudou os trajes, foi ao palácio e pediu para falar com o rei.

— Rei Senhor! Atrevo-me a dizer que ponho o príncipe bonzinho se Rei Senhor me der, de tinta e papel, a metade do reinado e de tudo quanto lhe pertencer.

O rei deu, de tinta e papel, a metade de tudo que possuía. A moça foi para o quarto, meiou um copo d’água, furou o dedo mindinho, botou três gotas de sangue dentro, misturou e mandou ele beber. Assim que o príncipe engoliu, foi abrindo os olhos, levantando-se da cama e abraçando a moça, numa alegria por demais.

O rei ficou muito satisfeito e quando o príncipe disse que aquela era a sua verdadeira noiva desde o tempo em que ele estava encantado em um papagaio real, o rei não quis dar consentimento porque a moça não era princesa. A moça então falou:

— Rei Senhor! Tenho por tinta e papel a metade de tudo quanto é do rei senhor neste reinado. O príncipe é do rei senhor e eu tenho por minha a metade dele. Se rei senhor não quiser que eu case com ele inteiro, levarei para casa uma banda.

Ao ouvir falar em cortar o príncipe pelo meio, como a um porco, o rei chegou-se às boas e deu o consentimento. Foram três dias de festas e danças e até eu me meti no meio, trazendo uma latinha de doce, mas na ladeira do Encontrão, dei uma queda e ela, páfo! —no chão!…

Em: Contos Tradicionais do Brasil (folclore) de Luís da Câmara Cascudo, Rio de Janeiro, Ediouro:1967





A flor e a nuvem, fábula de Pierre Lachambaudie

11 06 2012

Flor seca, ilustração de Justin Francavilla.

A flor e a chuva

Lachambaudie

Reina o estio. No vale

Languida flor emurchece,

E chama, p’ra socorrê-la,

Uma nuvem, que aparece.

Tu que do Aquilão[*] nas asas

Vais pelo espaço a correr,

Vê que de calor me abraso,

Vem, não me deixes morrer.

Com essas águas que levas,

A minha dor refrigera.

— “Tenho missão mais sagrada,

Agora não posso — espera“.

Disse e foi-se!.. De abrasada

Cai e espira a flor tão bela:

Volta a nuvem e despeja

Quanta água tinha sobre ela.

Era tarde!

[*] Aquilão é o vento do norte.

Em: O Espelho, revista semanal de literatura, modas, indústria e artes, Rio de Janeiro, 1859.

NOTAS:

1 – Não sei de quem é o texto em português.  A publicação de 1859, não traz autoria.

2 – Lachambaudie (1807-1872) foi um escritor, poeta, cancioneiro francês.   Trabalhou como contador a maior parte de sua vida.  Foi um escritor de fábulas, na tradição de seu conterrâneo La Fontaine, em verso. Dentre outras publicações de poesia, distingui-se sobretudo seu livro, Fábulas de Pierre Lachambeaudie, de 1844.

Frequentemente quando posto uma fábula sem a famosa “moral” no final, alguém inevitavelmente me pergunta pela moral.  Não é um obrigatoriedade de todas as fábulas apresentarem uma moral, pré-estabelecida pelo autor.  Muitas vezes, talvez até mais do que se imagina, a moral é para ser entendida pelo leitor.  Aqui nesse caso, cabe o dito popular:

Não deixe para amanhã o que pode fazer hoje.





Os três companheiros, conto folclórico brasileiro

8 06 2012

Três homens num bote, ilustração Paul Rainer.

Os três companheiros

Conto folclórico, texto de Luís da Câmara Cascudo

Um bombeiro, um soldador  e um ladrão eram muito amigos e resolveram viajar por esse mundo para melhorar a vida. Tinham eles um cavalo encantado que respondia todas as perguntas. Chegaram a um reinado onde toda gente estava triste porque a princesa fora furtada por uma serpente que morava no fundo do mar.  Os três companheiros acharam que podiam fazer essa façanha e consultaram o cavalo.  Este mandou o soldador fazer um bote de folhas de Flandres. Meteram-se nele e fizeram-se de vela.

Depois de muito navegar deram num ponto que era o palácio da serpente. Quem ia descer? O bombeiro não quis nem o soldador. O ladrão agarrou-se na corda que os outros seguravam e lá se foi para baixo. Pisando chão, viu um palácio enorme guardado por uma serpente que estava de boca aberta. O ladrão subiu depressa, morrendo de medo. Voltaram para casa e foram perguntar ao cavalo o que era possível fazer. O cavalo ensinou que a serpente dormia de boca aberta e quando estava acordada ficava com a boca fechada. Debaixo da cauda tinha a chave do palácio. Quem tirasse a chave, abrisse a porta, encontrava logo a princesa.  Os três amigos tomaram o bote de folha de Flandres e lá se foram para o mar.

Chegando no ponto os dois não queriam descer. O ladrão desceu e, como estava habituado, furtou a chave tão de mansinho que a serpente não acordou. Abriu a porta, entrou, foi ao salão, encontrou a princesa, disse que vinha buscá-la e saíram os dois até a corda. Agarraram-se e os dois puxaram para cima. Largaram vela e o bote navegou para terra.

Quando estavam no meio dos mares a serpente apareceu em cima d’água, que vinha feroz. Que se faz? Era a morte certa. – Deixa vir, disse o bombeiro. Quando a serpente chegou mais para perto, o bombeiro tirou uma bomba e jogou em cima da serpente. A bomba estourou e a serpente virou bagaço. Na luta, o bote fura-se e a água estava entrando de mais a mais, ameaçando ir tudo para o fundo do mar.

Que se faz? Morte certa! Deixe comigo – disse o soldador. Tirou seus ferros e soldou todos os buracos e o bote navegou a salvamento até a praia.

Chegaram no reinado recebidos com muitas festas pelo rei e pelo povo. O rei deu muito dinheiro aos três mas o ladrão, o bombeiro e o soldador queriam casar com a princesa.

— Se não fosse eu a princesa estava com a serpente! Dizia o ladrão.

— Se não fosse eu a serpente devorava todos, dizia o bombeiro.

— Se não fosse eu iam todos para o fundo do mar! Disse o soldador.

Discute, discute, briga e briga, finalmente a princesa escolheu o ladrão, que era seu salvador e este pagou muito dinheiro aos dois companheiros. O ladrão casou e mudou de vida e todos viveram satisfeitos.

Em: Contos Tradicionais do Brasil (folclore) de Luís da Câmara Cascudo, Rio de Janeiro, Ediouro:1967