Mulher medieval

28 04 2025

Penelope escrevendo para Ulisses, c. 1500

Página com iluminura da obra de Ovídio: Heroides versão em francês

Biblioteca Nacional da França

 

 

No livro O leitor comum de Virgínia Woolf, no primeiro ensaio, Os Pastons e Chaucer, somos apresentados a um detalhado e simpático retrato de uma senhora: Margaret Paston(c. 1420-1484). Virginia Woolf traz aos nossos olhos, a personalidade que detectou através das cartas para membros da família   Primeiro me lembrei do marcante diário e memórias, The memoirs of Glückel of Hameln, (1646- 1724) [não encontrei em português] que, começado em 1690, foram escritas trezentos anos depois das cartas de Margaret Paston. Surpreende o quão pouco mudou naqueles séculos todos o papel da mulher, suas preocupações em manter a família e os  bens da família protegidos. Esse era de fato um dos papeis da mulher, esposa de comerciante ou da pequena nobreza ou dos senhores de terras. 

Apesar de leitora assídua sobre idade média, sempre me assombro com o que aprendo sobre a vida dessas mulheres no passado. Letradas, se comunicavam com membros da família regularmente, por cartas, nos dando assim uma maneira de imaginarmos suas vidas com maior precisão. Mas mais delicioso ainda é ver como Virgínia Woolf constrói um retrato tridimensional dessa mulher que conheceu só através de suas cartas. Para escritores de ficção não só a descrição de Margaret Paston assim como a do Castelo Caistor em Norfolk. Além, é claro, de nos ensinar como observar a obra de Chaucer.   Aqui fica um pedacinho do ensaio de Woolf, para servir de acepipe literário.

 

“As longuíssimas cartas que escreveu tão laboriosamente, com sua letra clara e apertada, para o marido, que estava (como sempre) ausente, não mencionavam a si mesma. Os carneiros tinham destruído o feno. Os homens de Heyden e Tuddenham estavam ausente. Um dique se rompera e um boi foi roubado. Precisavam com urgência de melaço, e ela necessitava muito de tecidos para um vestido.

Mas a Sra. Paston jamais falava de si mesma.

Portanto os pequenos Pastons viam a mãe redigir ou ditar cartas longuíssimas, uma página após a outra, uma hora após a outra; porém interromper um pai ou mãe que escreve tão laboriosamente sobre questões de tamanha importância devia ser um pecado. A tagarelice dos filhos, a sabedoria do quarto de dormir das crianças, ou do seu quarto de estudos não tinham lugar naquelas comunicações elaboradas. Em sua maioria, suas cartas são as cartas de um meirinho honesto para seu chefe, explicando , pedindo conselhos, dando notícias, fazendo relatos. Houvera roubos e carnificina; dificuldades em conseguir o pagamento dos aluguéis; Richard Calle mal conseguira amealhar um dinheiro de nada; e, entre uma coisa e outra, Margaret não tivera tempo de realizar, como deveria, o inventário dos bens que seu marido solicitara. . A velha Agnes, inspecionando à distância um tanto duramente, os afazeres do filho, deve muito bem tê-lo aconselhado a planejar esse inventário, para que tenhais menos o que fazer no mundo,; vosso pai já disse: Onde há poucos afazeres, há muito descanso. O mundo não passa de uma estrada, cheia de infortúnio; e, ao partirmos dela, nada levaremos conosco a não ser nossas boas ações e malfeitos.

Essa passagem ressalta mais uma vez, como a concepção generalizada de que as mulheres na idade média não tinham responsabilidades é errônea. Eram elas as responsáveis pela manutenção, pela adição e preservação dos bens familiares, pelo bem-estar dos filhos e do todos aqueles que se encontravam sob sua guarda, nas terras, nas mansões, nos castelos.

Citação: O leitor comum, Virgínia Woolf, tradução de Marcelo Pen e Ana Carolina Mesquita, Tordesilhas: 2023, p. 34-35

Nota: Cartas de Paston [The Paston Letters] é um do maiores arquivos de correspondência na Inglaterra do século XV. Volume composto de correspondência particular, (por volta de mil cartas) e documentos tais como petições, contratos de aluguel, testamentos, que cobrem três gerações sobre a vida pessoa de uma família na época. Na Biblioteca Britânica em Londres.





Uma amizade em cartas

9 11 2023

Homem Lendo

Antônio Hélio Cabral (Brasil, 1948)

 

 

 

 

Encontrei hoje essa deliciosa passagem no livro de Otto Lara Resende chamado O rio é tão longe: cartas a Fernando Sabino; em que Otto reclama do conto enviado a ele por Sabino.  Há humor, calor humano, camaradagem, puxão de orelha e a magia de uma grande amizade.

 

 

“… deixe-me protestar contra a torpeza de me ter mandado o conto com as páginas todas fora de ordem, o que me foi uma verdadeira calamidade. Eu estava tão burro que li tudo fora de ordem e é verdade que achei meio estranho, mas como grande e estranho é o mundo, fui logo achando deliciosa a sua loucura.

 

Em: O rio é tão longe: cartas aFernando Sabino, Otto Lara Resende,  introduçao de Humberto Werneck, São Paulo, Cia das Letras: 2011, p. 19

 





Da ironia do aprendizado…

12 06 2020

 

alexandre-o-grande-4Aristóteles e seu aluno Alexandre

 

 

Carta de Alexandre, o Grande, a Aristóteles, o filósofo e o aluno

 

Alexandre para Aristóteles, saudações.

Você não deveria ter publicado suas aulas, como fez, pois como vou superar outros homens se as doutrinas em que fui treinado se tornam públicas para todos? No entanto, eu prefiro me distinguir pelos meus conhecimentos do que pelos meus feitos.

[tradução minha]

 

Em: Private Letters Pagan and Christian: an Anthology of Greek and Roman Private Letters from the Fifth Century before Christ to the Fifth Century of Our Era, selected  by Dorothy Brooke, New York, E. P. Dutton & Co., Inc: 1930, p. 37





Dos benefícios do repolho, cartas do século IV

2 11 2014

 

 

FEDERIGHI, Ettore(Brasil, 1909-1978)Natureza morta com legumes, 1964 ost, 80 x 100 cmNatureza morta com legumes, 1964

Ettore Federighi (Brasil, 1909-1978)

óleo sobre tela, 80 x 100 cm

 

Hoje me preparando para uma aula sobre mosaicos paleocristãos encontrei essa curiosa troca de cartas.  Espero que também traga a vocês um sorriso ao desvendar um tantinho que seja dos costumes do século IV.   A tradução muito liberal é minha, do inglês. Não pude deixar de me lembrar dos emails que trocamos, e ponderar que daqui a séculos poucos poderão se deliciar com as nossas trocas de conselhos, já que a informática não deixa lastro histórico para gerações futuras.

Troca de cartas entre São Basílio o Grande, e Antípater, Governador da Capadócia, meados do século IV.

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I – Carta de São Basílio, o Grande para Antípater, Governador da Capadócia que recuperara sua saúde comendo picles de repolho (chucrute).

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“Como é boa a filosofia, pelo menos por curar até mesmo seus discípulos por um preço módico; porque em filosofia um mesmo e único prato serve tanto para uma guloseima quanto para a dieta de um homem doente. Ouvi dizer que você recuperou sua inapetência comendo picles de repolho. Antigamente eu não gostava disso tanto pelo provérbio como pela lembrança da pobreza que em geral o acompanha. Agora preciso mudar minha opinião e rir do provérbio, e olhar para o repolho como uma esplêndida nutrição para os homens, já que restaurou a saúde ao nosso Governador. No futuro imagino que não haverá nada como o repolho, nem mesmo os lótus de Homero, nem a celebrada ambrósia, seja lá o que isso for, que os olimpianos tinham em sua salada.”

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II –  Carta de Antípater, Governador da Capadócia para São Basílio, o Grande respondendo à carta acima.

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Repolho duas vezes é morte, diz o maldoso provérbio. No meu caso, eu só posso morrer uma vez, quer eu peça repolho muitas vezes, quer eu nunca o saboreie. Então, já que você tem que morrer, não se amedronte de comer um delicioso picles que o provérbio sem justificativa condena.”

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Em: Private Letters Pagan and Christian: an anthology of Greek and Roman private letters from the fifth century before Christ  to the fifth century of our era, selecionadas por Dorothy Brooke, New York, E. P.Dutton & Co, Inc. 1930, p: 142

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 NOTA: São Basílio o Grande, ou Basílio da Capadócia nasceu no ano 330 na Turquia e faleceu em 379 na sua cidade natal: Kayseri. Foi um influente teólogo do cristianismo.





Trova do carteiro

12 02 2013

carteiro desastrado, margret borissCartão postal, com ilustração de Margret Boriss.

Carteiro, ao fazer a entrega
das cartas, de porta em porta,
o pranto e o riso carrega
nos segredos que transporta.

(Jacy Pacheco)





Quadrinha das tuas cartas

18 12 2012

carta da holanda, Henry Clive (1882 – 1960)Carta, ilustração de Henry Clive.

As tuas cartas, querido,
guardadas com muito amor,
de tanto que as tenho lido,
quase mudaram de cor!

(Téula Athayde)





Cartas de viagem: Espanha IV

19 09 2009

 

cordoba juderia

Córdoba, Espanha.

 

Córdoba, outubro de 19…

 

 Meus queridos: 

Córdoba e Granada são duas jóias espanholas.  Decidimos não rever Sevilha desta vez, porque estaremos de volta a Sevilha, tudo permitindo, durante a Semana Santa.

Desta vez visitamos ambas as cidades com uma calma invejável.  Revisitar é também redescobrir.   Nenhuma delas nos deixou desapontados.  Eu estava com medo de que Córdoba não fosse, nesta segunda visita, tão interessante quanto a achei da primeira vez.  Mas a minha memória não me falhou, e ainda a acho um dos lugares mais interessantes que conheço.  Tenho uma afeição inexplicável por ela.

Não faz sentido tentar descrever para  vocês a grandiosidade da arquitetura islâmica na Espanha.  Seria impossível.  O Alhambra é mesmo um castelo das Mil e Uma Noites e os jardins Generalife fazem a maioria dos outros jardins e parques, orgulhos nacionais de outros países, parecerem projetos primitivos.  A mesquita de Córdoba também cai nessa mesma categoria.  São todas obras de príncipes visionários que tinham muito dinheiro, sábios matemáticos nas suas cortes e mão de obra abundante (em grande parte escrava) para construírem para seu desfruto pessoal as maravilhas arquitetônicas que nos restam.  Acho que vocês não devem saber – porque eu também só aprendi agora – que os escravos utilizados pelos califas no sul da Espanha, não eram africanos, como pode vir a nossa mente hoje em dia, mas eram, em sua grande maioria, portugueses e espanhóis, cristãos capturados durante as invasões na península ibérica pelos muçulmanos e feitos escravos nessa época medieval.   

 

cordoba, patio

Pátio em Córdoba.

 

Gosto especialmente de Córdoba, por causa de sua atmosfera e também por causa de sua Juderia – bairro judeu da idade média.   A maioria das cidades da Andaluzia e também do resto da península ibérica que estiveram sob controle islâmico tem áreas das cidades de residência para os judeus.  São em geral enclaves interessantíssimos dentro do perímetro urbano, que começaram a ser evacuados pelos judeus quando a Inquisição bateu firme e forte: 1488 na Espanha e 1496 em Portugal. Esses bairros atingiram o seu apogeu durante a dominação islâmica porque os mouros eram mais tolerantes do “povo da Bíblia”, que seus inimigos cristãos.  

A Juderia de Córdoba é um grupo de talvez 30 a 40 ruas bem estreitas (da largura de um carro) e becos.  Tem casas de dois ou três andares dos dois lados, que são todas brancas.  Tão brancas que poderiam ser usadas nos anúncios de “que sabão lava mais branco?”  Em geral, ela tem uma porta bem larga, no centro do prédio, que anteriormente talvez pudesse ser usada por uma carreta de mão.  Este portão leva a um saguão coberto de azulejos decorados com motivos mouriscos.  Esse saguãozinho deixa-nos perceber através de portões de ferro batido os jardins internos das casas.  Esses jardins são tão famosos que os atuais donos dessas casas deixam suas portas abertas para que passantes, como nós, possam ver e desfrutar de seu charme, olhando lá dentro.

 

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Pátio da Juderia, Córdoba.

 

Do lado de fora, essas casas são cobertas de vasos e potes de cerâmica, carregadinhos de plantas, de trepadeiras e choronas, e parecem estar colocadas nas paredes sem nenhuma ordem visível.  Não há grandes áreas de paredes pintadas de branco sem que alguém não coloque ali pelo menos uns vinte potes de plantas, pendurados nas paredes e também há  potes dependurados em arames que vão de lado a lado das ruas, dando a elas, dessa maneira, um teto de verduras, que sombreia o caminho.

Os nomes das ruas são também maravilhosos:  Rua das Flores, Rua da Lua, Esquina do Ouro, Rua dos Judeus, Praça do Burro.  Esses becos e ruas, de vez em quando, se abrem em pracinhas minúsculas, que podem  ter pequeninos monumentos, como encontramos um ao filósofo e astrônomo árabe  Averroes  e outro ao judeu andaluz, Maimonedes, rabino, médico e filósofo.  As ruas mais largas ( um carro e meio de largura) têm laranjeiras dando sombra às diminutas calçadas.  Nesta época do ano essas árvores estão carregadas de frutos.  E que aroma!

Bares e restaurantes freqüentemente usam esses jardins internos  como suas salas de almoço.  Sentados à mesa a gente pode apreciar todos os potes de plantas que populam as paredes internas dessas casas.  De vez em quando, ouve-se alguém cantarolar uma típica melodia andaluza.  

Na Juderia há uma pequena sinagoga do século XIV, uma das pouquíssimas ainda em pé na Espanha ( a outra famosa sinagoga é a de Toledo).  Essa construção também tem à moda das casas e da mesquita, um jardim interno e por incrível que pareça foi construída num estilo bem islâmico de arquitetura semelhante ao encontrado nas mesquitas da época.  A arquitetura cristã em Córdoba deixa muito a desejar.  Preservados também estão os banhos árabes, hoje parte de uma loja de artigos turísticos, que tem quatro de seus cômodos dos fundos tombados, por serem os antigos banhos das cidade.  E há também na Juderia o Museu do Touro – o melhor que conheço na Espanha.   Assim como a Inquisição e a Guerra Civil Espanhola nesse século, a fascinação do espanhol com o touro está na lista daqueles assuntos que qualquer pessoa que queira entender a Espanha, tem que um dia destrinchar.

 

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Plaza de las Tendillas, Córdoba.

 

Mas Córdoba também é o desfile de seus habitantes nas ruas.  Gentes de todas as idades passeiam da Plaza de las Tendillas.  Observar as pessoas, por volta das cinco da tarde, de um dos muitos cafés nessa praça, é o grande passatempo tanto de espanhóis quanto dos turistas que visitam o local. Regado a chocolate quente com churros todos observam e são observados.   Todas as cidades espanholas têm esse fenômeno do andar/desfilar.  Todas as cidades espanholas são, conseqüentemente, dos melhores lugares para se observar pessoas, o comportamento humano.  Cada cidade tem sua personalidade; a mais barroca dessas atividades é a que se desenrola em Barcelona, sem dúvida.  Mas Córdoba é pequena o suficiente para que, depois só de alguns dias, sentada no mesmo café, a gente possa começar a conhecer os transeuntes.  Reconhece-se a senhora que vem passear acompanhada de sua filha, ou a adolescente que fez de tudo, no dia anterior, para ganhar a atenção de um rapaz, que hoje já não está com a camisa vermelha que lhe caía tão bem.  Em Córdoba é mais fácil a gente se sentir como parte da cidade; perde-se logo a noção de estarmos olhando para o cenário de uma peça teatral, como a gente se sente no início. Ao invés, a gente passa a se sentir como um extra numa cena de bar, depois de termos ido lá uma meia dúzia de vezes, e acompanhamos o roteiro da peça imaginária logo ali, debaixo dos nossos narizes.    E, no momento em que a gente se levanta para ir embora, de repente a gente cruza aquela linha imaginária que nos separava de um ator principal.  Como num passe de mágica, passamos a ser um deles, desfilando também na Plaza de las Tendillas, deixando que outros nos olhem e observem.  

 

Beijinhos a todos, e muitas saudades,  L.

 

 PS: Sabem que eu adoro esses 3 pingos da palavra beijinhos?





Cartas de viagem: Espanha III

15 09 2009

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Casa Mila, Barcelona.

 

Barcelona, outubro de 19…

Meus queridos:

Nossa entrada em Barcelona foi uma experiência inesquecível.  Graças ao extraordinário senso de direção de H. só levamos uma hora para chegar ao hotel.  Chegamos no engarrafamento de 16:30.  Ainda não pensamos como os espanhóis.  Não imaginávamos que o engarrafamento dessa hora fosse o de “volta ao trabalho”, ou seja, para o centro da cidade…  Mas, verdade seja dita, não estávamos preparados para as grandes avenidas em que nos metemos que cortam a cidade em fatias de bolo, triangulares; avenidas das quais não se pode sair facilmente, não se pode dobrar à direita ou à esquerda; avenidas que uma vez nelas, você tem que sair do outro lado da cidade quer queira ou não.  Isso com uns malucos não só buzinando, mas achando ruim que você com o seu carro de placa de Paris (que mostra de cara que é estrangeiro) ande meio titubeando!  Se o meu casamento sobreviveu à relação piloto x co-piloto na entrada de Barcelona, vai sobreviver a muita tempestade! (Cá pra nós, não há nada pior que um co-piloto que sabe dirigir mas que acima de tudo se sente correta – como eu!)  Barcelona é uma cidade muito grande, a maior que visitamos dessa vez.

Essa metrópole é uma parte diferente da Espanha.  É uma das Grandes Senhoras Cidades do mundo!  Não é por causa de seu tamanho.  Ou por causa de seu tráfego ou até mesmo por seu comércio (de lojas caríssimas às que só vendem porcarias).  Tampouco é por causa de seus museus, monumentos históricos ou igrejas.  É a atmosfera de Barcelona, cheia de uma energia inebriante e envolvente, que seduz.

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Igreja da Sagrada Família, Barcelona.

 

A impressão é de que nada aqui pode acontecer de uma maneira medíocre.  As coisas aqui ou são grandiosas ou umas bombas, mas o que a gente não conseguirá é ser indiferente a elas.  Essa maneira de ser, de tentar coisas novas, de arriscar-se a fazer um papel ridículo, é magnética.  Barcelona é assim, e como conseqüência há uma variedade grande de coisas inesperadas.  E a única coisa que se pode fazer é ficar deslumbrada.

De cima de um morro a cidade revela todos os seus segredos de terra ao mar.  Monumentos bonitos e horrorosos que passam desapercebidos ao rês do chão aparecem no horizonte; desde a catedral inacabada de Gaudi até a praça monumental de Espanha.

O chão de pé-de-moleque das ruas do bairro gótico esconde embaixo de si mesmo, num museu de escavações, as ruínas da cidade romana.  Carrancas em goteiras e outros monstros observam das fachadas dos edifícios do passado, os pedestres de hoje; enquanto que durante o dia inteiro milhares de pessoas são cuspidas para fora do metrô super moderno, para andarem nas Ramblas – uma série de pequenas ruas que desembocam numa longa avenida que leva ao mar.  Essa população parece andar de sol a sol.

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Bairro gótico, Barcelona.

 

As Ramblas são um capítulo à parte em Barcelona.  A avenida principal, Rambla de Barcelona, tem um calçadão bem no centro, coberto de quiosques vendendo flores e pequenos animais domésticos, jornaleiros colossais com jornais e revistas do mundo inteiro.  Há restaurantes e bares que, apesar de serem localizados nos prédios ao longo da avenida, mantêm grandes barracas onde se pode comer e beber o que aquele restaurante oferece, desde um café até um jantar, com o garçom atravessando um trânsito impossível para nos servir.  É três ou quatro vezes o preço do cardápio, mas pelo menos uma vez vale a pena!

As ruazinhas que saem dessa avenida principal são deliciosas: estreitas e ensebadas;  Elas oferecem uma variedade interessante de gostos e perfumes desde suas lojas de vinhos, em que todo o vinho bebido vem de barricas postas umas sobre as outras nas paredes laterais das lojas, até as lojas de churros onde se pode comprar uma cornucópia dessa fritura em qualquer sabor imaginável!  Essas ruelas também têm restaurantes, pequenas lojas de roupas, caras ou não.  Tudo que existe para ser vendido, achará um lugar por lá.  No entanto, as ruas são tão estreitas que às vezes nem uma Kombi poderia passar.  Como a mercadoria chega às lojas é um fato a ser investigado.  De vez em quando há uma pracinha.  Lá algum dono de um bar próximo coloca umas mesinhas com cadeiras e um povaréu toma champanha ou sangria enquanto que – como em Nova York – alguém toca um saxofone ou violino, passando o chapéu a cada quinze minutos.   Este é o centro da cidade.  É aqui que tudo acontece.  O povo irá, de fato, andar andar nessas ruas 24 horas por dia.  As últimas sessões de cinema em Barcelona começam a 1 hora da manhã.  O jantar é sempre muito tarde.  Nós fomos a restaurantes às 11 horas da noite e tivemos que esperar em fila para vagar uma mesa.  Mas às 7 da manhã as Ramblas já estão cheias de gente.  Às 9 todo o comércio volta a abrir, para fechar às 13 horas.  Nessas horas realmente faz calor.  Faz muito CALOR!   Mesmo agora no final de outubro.  Tudo reabre as 16:30 para fechar às 21 horas.

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Las Ramblas, Barcelona.

 

A energia evidente no movimento da população é uma característica espanhola.  Madri entre outras é uma cidade em que todo mundo anda como se desfilasse nas ruas antes do jantar.  Mas na Catalunha é diferente.  Em Barcelona, a cidade inteira parece estar presa nesse rodamoinho.  Ela efervesce!  Produz energia por si só.  Essa energia, sentida no ar que se respira, complementa bem a forma orgânica de como a cidade parece ter crescido.  Na verdade há muito pouco em Barcelona que pareça simplesmente racional.  Ela cresceu como um cogumelo.  Até parece que os artistas minimalistas com aquela pureza de linhas e de superfícies bem lisas não seriam capazes de terem admiradores por aqui.  Mas não é verdade.  Eles têm.  Não é que a gente não encontre edifícios bem modernos e tecnologia de ponta por todo canto.  Mas há sempre um jeitinho diferente, espremido numa profusão de formas inesperadas no desenho moderno catalão.  Formas orgânicas aparecem em todo canto produzindo uma marca inesquecível não só na arquitetura ( que outro lugar poderia ter produzido um Gaudi?) mas em tudo mais que é criado aqui.   Essa para mim é a mais clara faceta do espírito catalão, a que separa esta região encantadora do resto também maravilhoso da Espanha. 

 

Beijinhos,  L.





Calor carioca desagrada o Marquês do Lavradio

8 09 2009

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Palácio dos Vice-reis, mais tarde Paço Imperial,  Rio de Janeiro.

 

Hoje, às 9:30 da manhã o termômetro marcava 30 graus em Copacabana. Um vento quente e forte adicionava bastante desagravo ao pedestre. Isso para o mês de setembro, ainda antes do início oficial da primavera é fora do comum. É claro que devemos muito dessas variações climáticas ao desmatamento. Mas o calor insuportável é as vezes bem carioca mesmo. Hoje ele me lembrou uma carta do Marquês do Lavradio, quando tinha acabado de chegar ao Rio de Janeiro em 1770, vindo da Bahia, um lugar que considero ainda mais quente!

Aqui está um trecho da carta nº 176 do Marquês do Lavradio a seu filho Conde de Vila Verde:

Carta de Amizade Escrita
Ao Conde de Vila Verde
Em Lisboa
20 de fevereiro de 1770

Meu querido filho, e senhor do meu coração ….

……………………………………

Parece-me que desta vez fica bem satisfeita a sua curiosidade de você sobre esta matéria agora darei conta do que a terra me parece, e como eu tenho me achado nela, é situada esta Capital em um baixa toda cheia de pântano rodeada de inacessíveis montes, é raro o sítio onde cavando-se 4 palmos de profundidade se não encontre logo infinita água conservem-se todo o ano infinitas lagoas as quais com o extraordinário calor do sol se lhes corrompem as águas, onde nasce estamos respirando um ar sumamente impuro, é raro o dia em que não sejamos visitados de duas três e mais trovoadas o calor é tão extensivo que ainda quando se está em casa sem se fazer nenhum excesso se está continuamente metido em um suor, de forma que eu ao principio entendi que todos estávamos sincopados; o comercio é muito pouco, a preguiça desses habitantes sumamente extraordinária, e esta os tem reduzido à decadência e miséria em que se acham estes povos.

Eu logo ao terceiro dia da minha chegada fui atacado de uma das moléstias da Terra que me causou bastante cuidado, porém com a continuação dos banhos e de várias outras impertinências tenho conseguido alguma melhoria; acho-me já coberto desde o pescoço até a cintura de uma espécie de brotoeja que não me deixa sossegar nem de dia, nem de noite fazendo-me parecer que estou cheio de pontas agudas de alfinetes que continuamente me estão penetrando, finalmente depois que cheguei ainda não passou um só dia em que pudesse dizer que me achava bom, e o pior é ter que passar por este tormento três anos que receio me faltem as forças para resistir.

……..

Ilmº e Exmº Senhor Conde de Vila Verde

                                                                          Marquês do Lavradio

 

 

Em: Cartas do Rio de Janeiro, Marquês do Lavradio,  Rio de Janeiro, Editora SEEC [Secretaria do Estado de Educação e Cultura]: 1978.  Carta 176.

 

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Marquês do Lavradio — D. Luís de Almeida Portugal Soares de Alarcão d’Eça e Melo Silva Mascarenhas – 11.º vice-rei do Brasil (1769-1778). Substituiu Antônio Rolim de Moura Tavares como vice-rei do Brasil. Em seu governo incentivou o teatro e fundou uma academia científica para o estudo dos recursos naturais do país. Fez obras militares necessárias à defesa do Rio de Janeiro, construiu as fortalezas do Pico e do Leme e abriu novas ruas, como a que conserva o seu nome. Enviou tropas e armamentos para o Sul do Brasil, onde durante seu governo ocorreram a recuperação do Rio Grande do Sul, a ocupação temporária da Ilha de Santa Catarina pelos espanhóis e a perda da Colônia do Sacramento.