Harry C. West na nossa primeira biblioteca no Rio de Janeiro.
2024 chegou e trouxe a decisão de começar a dar um destino para a já diminuida biblioteca daqui de casa. Chegamos ao Rio de Janeiro com aproximadamente 2,800 livros, com mobiliário reduzido, meu piano de meia cauda, minha coleção de azulejos persas dos séculos XVIII e XIX e pela primeira vez a combinação de nossos livros em um único cômodo. Sim, moramos nos Estados Unidos com o luxo de cada um ter sua própria biblioteca, seu próprio computador, sua própria impressora, suas poltronas favoritas, e todos os outros objetos que compõem uma biblioteca-escritório de pessoas estudiosas.
Depois de escolher o lugar para morar, no RJ, voltamos para os Estados Unidos determinados a reduzir nosso mobiliário, livros, objetos. Deixávamos para trás uma casa em centro de terreno com um jardim extenso, uma pequena floresta ao fundo por onde corria um riachinho cantante na linha divisória com os vizinhos de trás, distante cento e vinte metros da casa. Este terreno tinha um bocado de vida silvestre, difícil de imaginar que estávamos num ambiente urbano, a oito quilômetros do movimentado centro da cidade, capital do estado. Nossos companheiros de endereço faziam um conto de Rudyard Kipling parecer americano. Tínhamos corujas, gambás, esquilos, como os do Brasil, uma meia dúzia de famílias de chipmunks (não achei tradução porque não são esquilos, mas da família), pombinhas, passarinhos de todo tipo, toupeiras, guaxinins, coelhinhos com rabo de pompom, lesmas, borboletas, grilos aos milhares… Todos nós convivendo felizes em pouco mais de 2100 metros quadrados de jardim sombreado por mais de 20 carvalhos de 30 metros de altura, alguns pinheiros e uns dez dogwoods, além de arbustos e plantas que eu mesma tocava. Pouca grama, ainda bem, só na frente da casa.
Harry em sua mesa favorita, (apesar de ter uma escrivaninha): mesa de jogo, na biblioteca. A mim parece e era desconfortável, mas ele gostava.
Saímos deste local para morarmos num apartamento de cento e oitenta metros quadrados, no Rio de Janeiro. Tínhamos que reduzir. Passamos aproximadamente oito meses nos preparando, empacotando, selecionando objetos. Nossas bibliotecas foram podadas. A minha concentrada em arte moderna europeia e na arte dos séculos XVII e XVIII, em história medieval além, é claro, de muita literatura europeia dos séculos XIX e XX, com ênfase na Inglaterra e França. Harry, por outro lado tinha uma vastíssima coleção de diversas traduções dos clássicos gregos e romanos (ele gostava de comparar traduções), grande coleção de filosofia, que também apresentava diversas cópias do mesmo texto com diferentes traduções para o inglês. Psicologia era seu campo de estudos aplicados à literatura americana. E todos os textos da literatura americana do século XIX, sua especialidade, além dos teoristas contemporâneos de Lacan a Bachelard, James Hillman e outros. Chegamos ao Brasil com um container de 40 pés grande parte dele dedicado a livros, manuscritos, papelada, que só a nós interessava. Isso foi antes dos livros digitalizados do Kindle ou de qualquer outro dispositivo. Calculamos que deixamos metade dos nossos livros para trás. Mas não contamos.
Em 2009 nos mudamos para outro endereço. Menor. Lá se foram outros tantos livros, a maior parte dos meus livros de arte. Estava ficando fácil arranjar imagens na internet que me permitiam continuar a trabalhar sem ter que folhear livros pesados e fólios. Nossa filiação com as universidades americanas começava a dar frutos substanciais quanto à pesquisa, porque tínhamos o direito de consultar livros já digitalizados desses locais. [Hoje eu assino alguns sites onde encontro as mais recentes publicações sérias.] O mundo mudou.
Nosso mundo.
Outras mudanças, doença, fizeram dos originais 2.800 livros no Rio de Janeiro, talvez uns 1700. Hoje selecionei 231 volumes para doação. Foi a primeira seleção. Vou repetir essa limpeza ainda umas duas vezes neste mês. Guardei todos os que ainda tinham anotações. Aprendi com Harry a marcar os livros nas próprias páginas. Porque esses eram livros de trabalho. Muitos deles, que hoje guardei, já estão com dorsos e capas desgastados pelos trinta e cinco anos em que Harry ensinou na universidade. Guardei também porque têm sua letra, tão bem elaborada, tão distinta, tão fácil de ler e sua assinatura nas páginas de rosto. Estes eu guardei. Não tive coragem ainda de me desfazer deles, assim como ainda tenho os manuscritos dos dois livros já acabados mas faltando polir, que ele deixou para trás. Tentei ainda conversar nos últimos anos, ajudá-lo na edição nos cortes (sou boa de cortes), mas seu interesse já não estava lá.
Nossa biblioteca era vasta porque apesar de trabalharmos nas humanidades, havia poucos pontos em comum nas nossas áreas de interesse. Havia poucas duplicatas. Exceto, e foi assim que nos apaixonamos, quando comparávamos notas: eu trabalhando com Freud e outros da psicologia, porque minha especialidade era a arte surrealista e Harry se dedicando aos pós-Junguianos na interpretação dos grandes escritores americanos do século XIX: Hawthorne, Poe, Emerson, Melville, Whitman e Throreau. Ele aprendeu sobre as artes plásticas comigo e passou a visitar museus com outros olhos. Tivemos também a sorte de viajar muito, e residir em alguns diferentes países. Desta ligação, eu saí ganhando, porque ele me educou nos textos clássicos gregos e romanos, assim como nos filósofos da renascença. Por sua causa devorei Edgar Alan Poe, Nathaniel Hawthorne e meu favorito entre esses, Emerson e seus ensaios. Mas além da primeira geração de clássicos americanos, também me familiarizei com Emily Dickinson, Henry James, Stephen Crane, Kate Chopin e outros. Nessa troca, ganhei mais, porque a literatura havia sempre sido um interesse meu, afinal de contas comecei meus estudos em letras, em francês. E Harry só se interessou pelas artes visuais depois de nos conhecermos. Mas fizemos uma boa dupla que se entendeu e se completou. Fico, portanto, ainda com muitos de seus livros ‘primários’, aqueles que têm sua letra cobrindo páginas, e sublinhados com pontos de interrogação ou menção do caminho para levar adiante. Quanto a seus manuscritos ainda não tive coragem de deixá-los ir. Mas estou abrindo espaço nas prateleiras. Ainda leio muito, ainda leio em papel. Ultimamente compro a versão digital e se gosto do livro, compro o mesmo livro em papel. Caminho para uma vida mais leve.