Ilustração, Brian Wambi do livro The Kando Forest Disaster.
“Estavam voltando de uma tarefa que tinham ido fazer na casa da tia Yaaye quando Binta disse para Kadiatou: “Vamos subir nesta árvore”. “Mas meninas não sobem em árvores. E se alguém contar?” “Ninguém vai contar.” “A gente vai cair”, falou Kadiatou. “E vamos levantar”, disse Binta. Era um pé de acácia bem firme, com galhos espalhados como membros, prontos para receber um abraço. O dia estava ofuscante de sol, e Kadiatou prendeu a saia na mão e subiu atrás de Binta, seu coração batendo depressa, receosa de não estar seguindo suas linhas cuidadosas. Ela parou num galho bifurcado, mas Binta subiu mais. Dava para ver os telhados inclinados da aldeia lá embaixo e o vale majestoso banhado numa bruma melancólica ao longe. Ela tinha mesmo subido numa árvore, estava em cima de uma árvore, bem lá no alto. Que estimulante descobrir que conseguia ultrapassar os limites que tinha imposto para si mesma.Mais tarde, ao descer, Kadiatou sentiu-se feliz por ter subido, mas tinha certeza de que nunca mais faria aquilo de novo. Elas não souberam ao certo quem contou a Bappa Moussa. Ele ralhou com elas e disse que trariam vergonha para a família se comportando daquele jeito, como meninas sem modos. Kadiatou pediu desculpas, enquanto Binta apenas o encarou, carrancuda e em silêncio. E então Kadiatou pediu desculpas várias vezes, para compensar o silêncio de Binta. Aquilo fez Kadiatou se lembrar de que, quando o chefe da aldeia passava, ela o cumprimentava com olhar baixo e respeitoso, enquanto Binta o encarava, levando a irmã a fazer uma mesura ainda mais profunda, como se quisesse compensá-la. Kadiatou sabia se encolher na presença de seus superiores, mas Binta nem sequer sabia que tinha superiores. Mais tarde, Binta disse para Mama: “Eu consigo subir mais alto até do que Bhoye”, e Mama, espalhando pétalas de hibisco num tapete, riu com um brilho nos olhos e disse: “Binta!”. Kadiatou sabia que a mãe a amava por cumprir seus deveres e ser confiável, mas às vezes, secretamente, queria que a mãe a amasse como amava Binta, por ser livre.”
Em: A contagem dos sonhos, Chimamanda Ngozi Adichie, tradução de Julia Romeu, Rio de Janeiro, Cia das Letras: 2025
“O monóculo do marquês de Forestelle era minúsculo, não tinha aro e, obrigando a uma crispação incessante e dolorosa o olho onde se incrustava como uma cartilagem supérflua cuja presença é inexplicável e a matéria rara, dava ao rosto do marquês uma delicadeza melancólica e fazia com que as mulheres o julgassem capaz de grandes penas de amor. Mas o do sr. de Saint-Candé, cercado de um gigantesco anel, como Saturno, era o centro de gravidade de um rosto que se ordenava a todo instante em relação a ele, cujo nariz fremente e rubro e o lábio carnudo e sarcástico procuravam, com os seus trejeitos, pôr-se à altura dos mutáveis reflexos de espírito com que fulgurava o disco de vidro, e era preferido aos mais belos olhares do mundo por mulheres esnobes e depravadas, a quem fazia sonhar com encantos artificiais e refinadas volúpias; enquanto, atrás do seu monóculo, o sr. de Palancy que, com a sua grossa cabeça de carpa, de olhos redondos, se deslocava lentamente no meio da festa, descerrando de instante a instante as mandíbulas como para procurar orientação, tinha o ar de apenas transportar consigo um fragmento acidental, e talvez puramente simbólico, do vidro do seu aquário, parte destinada a figurar o todo, que lembrou a Swann, grande admirador dos Vícios e das Virtudes de Giotto em Pádua, aquele Injusto ao lado do qual um ramo folhudo evoca as florestas onde se oculta o seu covil.
Em: No caminho de Swann, volume I da obra Em busca do tempo perdido, Marcel Proust, tradução de Mário Quintana.
Página com iluminura da obra de Ovídio: Heroides versão em francês
Biblioteca Nacional da França
No livro O leitor comum de Virgínia Woolf, no primeiro ensaio, Os Pastons e Chaucer, somos apresentados a um detalhado e simpático retrato de uma senhora: Margaret Paston(c. 1420-1484). Virginia Woolf traz aos nossos olhos, a personalidade que detectou através das cartas para membros da família Primeiro me lembrei do marcante diário e memórias, The memoirs of Glückel of Hameln, (1646- 1724) [não encontrei em português] que, começado em 1690, foram escritas trezentos anos depois das cartas de Margaret Paston. Surpreende o quão pouco mudou naqueles séculos todos o papel da mulher, suas preocupações em manter a família e os bens da família protegidos. Esse era de fato um dos papeis da mulher, esposa de comerciante ou da pequena nobreza ou dos senhores de terras.
Apesar de leitora assídua sobre idade média, sempre me assombro com o que aprendo sobre a vida dessas mulheres no passado. Letradas, se comunicavam com membros da família regularmente, por cartas, nos dando assim uma maneira de imaginarmos suas vidas com maior precisão. Mas mais delicioso ainda é ver como Virgínia Woolf constrói um retrato tridimensional dessa mulher que conheceu só através de suas cartas. Para escritores de ficção não só a descrição de Margaret Paston assim como a do Castelo Caistor em Norfolk. Além, é claro, de nos ensinar como observar a obra de Chaucer. Aqui fica um pedacinho do ensaio de Woolf, para servir de acepipe literário.
“As longuíssimas cartas que escreveu tão laboriosamente, com sua letra clara e apertada, para o marido, que estava (como sempre) ausente, não mencionavam a si mesma. Os carneiros tinham destruído o feno. Os homens de Heyden e Tuddenham estavam ausente. Um dique se rompera e um boi foi roubado. Precisavam com urgência de melaço, e ela necessitava muito de tecidos para um vestido.
Mas a Sra. Paston jamais falava de si mesma.
Portanto os pequenos Pastons viam a mãe redigir ou ditar cartas longuíssimas, uma página após a outra, uma hora após a outra; porém interromper um pai ou mãe que escreve tão laboriosamente sobre questões de tamanha importância devia ser um pecado. A tagarelice dos filhos, a sabedoria do quarto de dormir das crianças, ou do seu quarto de estudos não tinham lugar naquelas comunicações elaboradas. Em sua maioria, suas cartas são as cartas de um meirinho honesto para seu chefe, explicando , pedindo conselhos, dando notícias, fazendo relatos. Houvera roubos e carnificina; dificuldades em conseguir o pagamento dos aluguéis; Richard Calle mal conseguira amealhar um dinheiro de nada; e, entre uma coisa e outra, Margaret não tivera tempo de realizar, como deveria, o inventário dos bens que seu marido solicitara. . A velha Agnes, inspecionando à distância um tanto duramente, os afazeres do filho, deve muito bem tê-lo aconselhado a planejar esse inventário, para que tenhais menos o que fazer no mundo,; vosso pai já disse: Onde há poucos afazeres, há muito descanso. O mundo não passa de uma estrada, cheia de infortúnio; e, ao partirmos dela, nada levaremos conosco a não ser nossas boas ações e malfeitos.“
Essa passagem ressalta mais uma vez, como a concepção generalizada de que as mulheres na idade média não tinham responsabilidades é errônea. Eram elas as responsáveis pela manutenção, pela adição e preservação dos bens familiares, pelo bem-estar dos filhos e do todos aqueles que se encontravam sob sua guarda, nas terras, nas mansões, nos castelos.
Citação: O leitor comum, Virgínia Woolf, tradução de Marcelo Pen e Ana Carolina Mesquita, Tordesilhas: 2023, p. 34-35
Nota: Cartas de Paston [The Paston Letters] é um do maiores arquivos de correspondência na Inglaterra do século XV. Volume composto de correspondência particular, (por volta de mil cartas) e documentos tais como petições, contratos de aluguel, testamentos, que cobrem três gerações sobre a vida pessoa de uma família na época. Na Biblioteca Britânica em Londres.
Museo d’Arte Moderna e Contemporanea di Trento e Rovereto
A carteira, de Francesca Giannone, traduzido para o português por Roberta Sartori [Editora LVM: 2024] , é o primeiro romance da autora, chamada por alguns como uma “segunda Elena Ferrante“. Esse livro foi vencedor do Prêmio Bancarella de 2023. A comparação com Ferrante talvez seja uma das razões de seu grande sucesso – mais de 625.000 livros vendidos em 2023. Só a localização italiana, acompanhando a narrativa sobre uma mulher e sua família, amigos e parentes, no entanto, não é suficiente para transformá-la em uma segunda autora com potencial de ser universalmente aclamada. Falta-lhe a riqueza nos detalhes relevantes, e o desenvolvimento psicológico dos personagens esboçados para que a comparação se justifique.
Uma história com ingredientes interessantes que se perde, nas quatrocentas e mais páginas: detalhes desimportantes, com laudas facilmente subtraíveis, sobretudo no último terço, sobre a construção da Casa da Mulher. A sinopse parecia boa: uma mulher do norte da Itália se casa com um italiano do sul e vai morar com ele na Puglia, onde ele se encarrega de desenvolver uma vinícola, nas terras que herdou. Anna o acompanha. Dona de um espírito independente, culta, leitora, acaba trabalhando como carteira da cidade, após concurso, quando quebra as expectativas de todos, familiares e habitantes locais, por trabalhar numa posição até então ocupada por homens. Considerada uma estranha no ninho, por seus hábitos e linguagem de outra região, ela teria a oportunidade de conhecer e interagir com os habitantes de Lizanello, [Lecce] entregando cartas e telegramas para toda a população.
No entanto, essa troca entre habitantes e Anna não é explorada pela autora, ainda que seja sugerida na sinopse. O livro se arrasta cobrindo algumas décadas da vida da carteira, enquanto a trama se perde no núcleo familiar de Anna, seu marido Carlo e filho Roberto; na atração que Antonio, irmão de Carlo, tem por Ana, no passado de Carlo, familiares, filhos legítimos ou não, e um ou outro personagem como Giovanna vítima de um relacionamento abusivo com um padre. Mas se espremermos o conteúdo temos uma novela televisiva, em que intrigas e amores proibidos são alimento para um longo volume que merecia bom editor, para cortar cenas inúteis, diálogos que não levam a nada e enchem o leitor de informação espúria para a trama.
Terminei o livro com a sensação de tempo perdido. É superficial. É adolescente. Não é livro para leitor maduro. Francesca Giannone poderia e deveria entregar mais. Percebi nela algumas características que costumo ver nos escritores de primeira viagem. Sua obra poderia ser melhorada com a assistência de um bom editor. Pergunto-me : para que um prólogo? Em que ele ajudou nessa narrativa? Outros detalhes de primeiros romances: muitos personagens nomeados que aparecem uma única vez e não participam mais do resto da trama. Uma das primeiras regras de uma boa edição: personagens com nomes devem ser sempre aqueles que o leitor precisa gravar para entender o enredo. Enfim, há espaço para melhorias na escrita. Mas é preciso que a autora e que seus editores queiram que isso aconteça, e que não se deitem no sucesso da primeira obra, porque pode ser que não se sustente. Francesca Giannone toca em assuntos queridos na atualidade: emancipação feminina, mulheres trabalhando, votando, mulheres em profissões fora do esperado, mudança em preconceitos sociais. Mas não se aprofunda em nenhum desses aspectos. Tudo não passa de conversa fiada, de um aceno ao espírito da época.
Francesca Giannone
Uma palavra sobre a edição brasileira: deveria ter tido mais rigor na revisão. Aponto aqui alguns problemas que saltaram aos olhos: duas maneiras de escrever o nome Agata ou Agatha. Ambos aparecem no texto. Há frases inteiras que não fazem sentido, mostro algumas mas há mais. Imagino serem resultado de uma revisão final pela inteligência artificial que não distingue homônimos ou que deixa passar a palavra correta na ordem errada. 1) “Ela havia ficara em recuperação.” [169]; “ele cresceu de forma surpreendentemente” [228]; “No final, ele dará há algo para ele também” [350] “A dela mãe a expulsou de casa” [433].
Não recomendo. Preferiria dar uma estrela negativa, mas não posso. Fica uma estrela pelo esforço da escritora, pela tradução e alguns pontos a menos pela revisão editorial. Não conheço essa editora. Não começamos com o pé direito. Espero que melhorem no futuro. Não pretendo colocar o Prêmio Bancarella entre aqueles cujos vencedores farão parte da minha lista de futuras leituras. Ver que esse prêmio existe há setenta e dois anos e que teve como vencedores Ernest Hemingway (1953), Boris Pasternak (1958), Oriana Fallacci (1970); Umberto Eco (1989) entre outros conhecidos nomes da literatura mundial é surpreendente. Não sei o que houve em 2023.
NOTA: este blog não está associado a qualquer editora ou livraria, não recebe livros nem incentivos para a promoção de livros.
Acabo de ler O colibri do escritor italiano Sandro Veronesi, tradução de Karina Jannini [Editora Autêntica Contemporânea: 2024] obra que recebeu o Prêmio Strega (Itália), em 2020. O autor já havia recebido o Strega em 2006 pelo livro Caos calmo publicado no Brasil em 2007. Trata-se da história de vida de Marco Carrera: seus sucessos, atribulações, amigos, amores, filha, neta, uma narrativa que cobre o período de vida adulta do protagonista. Costumo gostar de ficção que se metamorfoseia em biografia de um personagem fictício, gente comum. Duas obras que considero excelentes nesse gênero são: Os diários de pedra, da escritora canadense Carol Shields, que recebeu os prêmios Pulitzer e National Book Critics Circle, 1995 e As aventuras de um coração humano, do escritor britânico William Boyd. Dois livros que me emocionaram quando seus protagonistas chegaram ao final da vida. Essas narrativas demonstram algo que o próprio Sandro Veronesi diz desejar retratar: “o heroísmo da vida comum”. O propósito é que o leitor consiga se ver ali, como pessoa comum, como sua própria vida também é repleta de aventuras, obstáculos que parecem intransponíveis, requerendo decisões hercúleas. Demonstrar como a vida não é linear, mas tecida de vai vens, de erros e acertos. Veronesi consegue transmitir isso, consegue mostrar como a vida de Marco Carrera também é heroica. No entanto, por mais que eu simpatizasse com seus enfoques, problemas, empecilhos e me surpreendesse com as reviravoltas daquela vida, esse médico oftalmologista, não me emocionou nem durante, nem ao fim de sua jornada. Vamos então ao que me foi problemático. Tudo se resume a uma questão de estilo.
A maior restrição que tive a essa obra, e não é a única, foi o exagero de informação transmitida ao leitor. A verbosidade de Veronesi [rara de encontrar na literatura atual] faz a prosa pesada, tediosa. Um bom editor teria aconselhado o escritor a cortar vários excessos. Vejamos: um email entre irmãos sobre os móveis herdados dos pais, mostra um interminável rol de poltronas e sofás que jamais terão importância no texto.
“2 sofás dois lugares Le Bambole, metal, couro cinza, poliuretano, Mario Bellini para B&B, 1972 (20.000 €) 4 poltronas Amanta,* fibra de vidro e couro preto, Mario Bellini para B&B, 1966 (4.400 €) 1 poltrona Zelda, madeira tingida em tom jacarandá e couro em cor natural, Sergio Asti, Sergio Favre para Poltronova, 1962 (2.200 €) 1 poltrona Soriana, aço e couro anilina marrom, Tobia e Afra Scarpa para Cassina, 1970 (4.000 €) 1 poltrona Sacco,* poliestireno e couro marrom, Gatti, Paolini e Teodoro para Zanotta, 1969 (450 €) 1 poltrona Woodline, madeira curvada a quente e couro preto, Marco Zanuso para Arflex, 1965 (1.000 €) 1 mesinha de café Amanta, fibra de vidro preta, Mario Bellini para B&B, 1966 (450 €) 1 mesinha baixa 748, teca marrom, Ico Parisi para Cassina, 1961 (1.100 €) 1 mesinha baixa Demetrio 70, plástico laranja, Vico Magistretti para Artemide, 1966 (150 €) 1 mesa La Rotonda, cerejeira natural e cristal, Mario Bellini para Cassina, 1976 (4.000 €) 1 estante modular Dodona 300, plástico preto, Ernesto Gismondi para Artemide, 1970 (4.500 €) 2 estantes modulares Sergesto, plástico branco, Sergio Mazza para Artemide, 1973 (1.500 €)“
Informação que não leva a lugar nenhum. Não leva a NADA! É prosa auto condescendente, discurso empolado, que se repete adiante na lista de livros de ficção científica também da mesma herança. Teria o objetivo de encantar o leitor com a raridade dos livros encontrados? Se foi essa a intenção, não funcionou. Seria o caso de o autor precisar mostrar conhecimento nesse campo, para quê? E para quem? Ocorre, então, a ideia do intelectual demonstrando pesquisa sobre uma era. Necessidade de mostrar conhecimento. Mas o romance não é uma tese de mestrado ou documento de pós graduação. Para quem ele está exibindo esse conhecimento?
Outro aspecto da verbosidade é o detalhismo com que descreve locais. Concordo que a Itália tem alguns dos mais deliciosos e sedutores espaços, praças, recantos de todo mundo; mas a proposta dessas descrições não parece ser só a caracterização do carinho que Marco Carrera tem pelos locais por onde perambula.
“De fato, um dos lugares mais bonitos do mundo, isto é, o chamado Granarone2 do Palazzo Caffarelli (bonito não pelas intrínsecas qualidades arquitetônicas, que não tem, mas por sua posição, que domina todo o lado sudoeste da colina do Campidoglio até o rio Tibre, ou seja, a área em que se encontram as ruínas dos templos de Jano, de Juno Sóspita, da Esperança, de Apolo Sosiano, de Santo Homobono e do Pórtico Republicano no Fórum Holitório, além da basílica de São Nicolau em Cárcere e da Rocha Tarpeia em sua totalidade e de três quartos do Teatro de Marcelo; na Idade das Trevas, tornara-se pasto para cabras, e por isso foi rebatizada de “Monte Caprino”; no final do século XVI, foi requalificada pela construção, justamente em seu ponto mais alto, do Palazzo Caffarelli no Campidoglio, por parte da antiga e homônima família da nobreza municipal romana; em meados do século XIX, foi adquirida, com palácio e tudo, pelos prussianos, e por eles enriquecida com outros edifícios mais simples, entre os quais o mencionado Granarone, para onde foi transferido o Instituto Germânico de Arqueologia; depois, em 1918, após a derrota do Império Prussiano, inteiramente readquirida pela municipalidade de Roma), além de servir como sede da Advocacia Capitolina, naqueles anos abrigava o departamento da Casa Comunal,onde os atos judiciários são conservados e notificados aos interessados. Em outras palavras, as pessoas que eram objeto de alguma queixa, denúncia ou de ações judiciárias tinham de retirá-las ali, no Granarone.“
Essas observações todas nos são dadas ainda nas primeiras cinquenta páginas do livro. É um problema que quase pede uma leitura dinâmica. Mas não é só. A narrativa se torna tão conturbada quanto a vida de Marco, pela forma não linear da exposição. Saltitamos do passado recente ao presente ao passado longínquo. E todos os possíveis meios de comunicação são utilizados, de e-mails a mensagens nos celulares e depoimentos. É um leque imenso que se abre de diferentes estilos de prosa. De novo, fica a sensação do autor querer demonstrar suas habilidades. O que não deveria ser necessário, não é marinheiro de primeira viagem. Já é altamente reconhecido.
Sandro Veronesi consegue, ao final, seu objetivo: reconhecermos que a vida de uma pessoa comum, pode ser heroica; e provavelmente é. A vida de qualquer um de nós pode ser essa vida heroica. Só a partir do meio do livro, a leitura parece mais amigável. Os olhos correm com maior facilidade sobre o texto. Mas no final, antes de fechar o livro, voltei a ter essa sensação de que o autor precisava demonstrar o subtexto da obra, as origens do que o levara a escrever, no capítulo chamado Dívidas: um capítulo inteiro de notas e explicações, de onde veio essa ideia, que conto o autor leu que o inspirou para qual capítulo e o máximo da auto condescendência, quando cita a si mesmo! Como é mesmo que ele faz? Vejam:
“No capítulo “Urania”, a escrita a lápis no frontispício do romance de ficção científica é algo verdadeiro, referente a mim mesmo, e foi adaptado para a obra. Na realidade, foi meu pai, enquanto eu nascia não me lembro mais em qual hospital, em Florença, que escreveu estas palavras no frontispício do romance da coleção Urania que estava lendo…“
Não gostei. Estou surpresa que tenha recebido o maior prêmio de literatura da Itália. Das cinco estrelas, máximo de pontos que dou aos livros neste blog, dei duas. Conheço leitores que deram quatro estrelas e alguns que gostariam de ter subtraído uma ou duas estrelas abaixo de zero. Esse não é um livro para um leitor iniciante. Estou surpresa de ver tantas resenhas enaltecendo O colibri. Não recomendo.
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Biografias de intelectuais famosos, pensadores, podem facilmente se tornar narrativas que se perdem nas explicações teóricas sobre as contribuições dos retratados. Essas podem desinteressar o leitor comum, nem sempre motivado para aulas teóricas na leitura de entretenimento. Ou, na tentativa de agradar a maior público esses livros podem pecar também ao passarem por cima de teoria representativa da contribuição dos biografados no intuito do texto ser melhor digerido pelo público não especializado. Esse não é o caso de O segredo de Espinosa, de José Rodrigues dos Santos [Planeta: 2023]. Esse é um livro muito bem escrito, cobrindo a vida do filósofo Baruch Espinosa, nascido na Holanda, judeu marrano de origem portuguesa. que trata por meio de diálogos, uma boa parte dos posicionamentos de Espinoza, fazendo-os acessíveis ao leitor sem entediá-lo.
Essas ponderações são ainda mais pertinentes quando se trata de uma obra que traz ao leitor o papel da religião no dia a dia, assim como na vida do Estado. Espinosa foi um dos grandes defensores da separação entre Igreja e Estado. Levando a racionalidade de Descartes a nível não imaginado anteriormente. Considerado o filósofo que abre a era da modernidade nos estudos filosóficos, ele está hoje entre os filósofos mais influentes do mundo atual. Toda essa importância poderia tornar O segredo de Espinosa difícil de ler, difícil de interpretar, mas José Rodrigues dos Santos fez um excelente trabalho cobrindo desde a infância de Espinosa até seus últimos dias.
Além de ser fiel aos argumentos de Baruch Espinosa, José Rodrigues dos Santos presenteia o leitor com deliciosas vinhetas da vida na Holanda do século XVII, historicamente confirmadas, assim como eloquentes cenas da política local, da população em revolta. Não se recusa tampouco a delinear com precisão as questões religiosas e culturais complexas da época.
“Ao longo da Breestraat viam-se as lojas e os armazéns a exibirem os produtos mais variados; muitos provenientes de empresas neerlandesas como a Companhia das Índias Orientais e a Companhia das Índias Ocidentais, outros de empresas portuguesas como a Carreira das Índias e a Companhia Geral do Comércio do Brasil, outros ainda de navios oriundos de Veneza, de Antuérpia, de Hamburgo ou de outros pontos, incluindo saques efetuados por corsários marroquinos. As prateleiras enchiam-se assim de porcelanas de Cantão e de Nuremberg, tapetes de Esmirna, tulipas de Constantinopla, sedas de Bombaim e de Lyon, pimenta das Molucas, sal de Setúbal, linho branco de Haarlem, lã de Málaga, faiança de Delft, sumagre do Porto, açúcar do Recife, madeira de Bjørgvin, tabaco de Curaçau, marfim de Mina, azeite de Faro. Havia ali de tudo e de toda a parte, como se o bairro português de Amsterdã fosse o bazar dos bazares, o mercado do mundo.“
José Rodrigues dos Santos
Esse é um romance histórico, uma biografia cuidadosamente construída, que explora a maneira como Espinosa desenvolveu levou adiante as ideias de Descartes. A obra afirma a retidão de seu caráter, expõe a maneira como as publicações se espalhavam no século XVII, e trabalha a narrativa de tal forma que o leitor não deseja parar de ler. Foi um presente conhecer esse autor português. Irei procurar outras de suas obras. Recomendo sem qualquer restrição, foi para minha lista de favoritos.
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Vladimir Nabokov escreveu um boa parte de seu famoso romance Lolita (1955), enquanto viajava pelo interior dos Estados Unidos com sua mulher. Paravam nos motéis das estradas para descansar. Como as paredes eram finas e deixavam o barulho da estrada próxima penetrar, ele ia para o estacionamento do motel, fechava-se no carro e trabalhava no texto de Lolita sentado no banco de trás.
“Pessoas assim, como este Sr. José, em toda a parte as encontramos, ocupam o seu tempo ou o tempo que creem sobejar-lhes da vida a juntar selos, moedas, medalhas, jarrões, bilhetes postais, caixas de fósforos, livros, relógios, camisolas desportivas, autógrafos, pedras, bonecos de barro, latas vazias de refrescos, anjinhos, cactos, programas de óperas, isqueiros, canetas, mochos, caixinhas de música, garrafas, bonsais, pinturas, canecas, cachimbos, obeliscos de cristal, patos de porcelana, brinquedos antigos, máscaras de carnaval, provavelmente fazem-no por algo a que poderíamos chamar angústia metafísica, talvez por não conseguirem suportar a ideia do caos como regedor único do universo, por isso, com as suas fracas forças e sem ajuda divina, vão tentando pôr alguma ordem no mundo, por um pouco de tempo ainda o conseguem, mas só enquanto puderem defender a sua coleção, porque quando chega o dia de ela se dispersar, e sempre chega esse dia, ou seja por morte ou seja por fadiga do colecionador, tudo volta ao princípio, tudo torna a confundir-se.”
Fazer resenha de alguns parágrafos sobre o livro O jovemde Annie Ernaux, com tradução de Marília Garcia [Fósforo: 2022] é mostrar que apesar de poucas páginas — um conto? — há pelo menos algo de mais sólido a ser observado sobre essa leitura. Estou aos poucos cobrindo a obra de Annie Ernaux, volume por volume. Não porque ela tenha sido recipiente do Nobel de Literatura 2022. Não tenho o hábito de ler toda a obra de quem ganha o Nobel. Mas sua prosa é de grande sensibilidade e a forma de autobiografia ficcionalizada,– sempre considero que qualquer biografia é ficção –, tem me atraído nos últimos tempos, também pela interação de história com memória.
A linha narrativa deste minúsculo volume é simples: uma mulher de uma certa idade, tem um parceiro amoroso muito mais jovem do que ela. O rapaz tem idade para ser seu filho. Nas últimas décadas esse parece ser um acontecimento mais comum, menos escondido. Vemos na mídia, com alguma frequência, senhoras envolvidas amorosamente com rapazes jovens. Tinha impressão de que essa desigualdade de idades, com o perfil desse casal, fosse corriqueiro na França, mas, pelo visto, na época de Annie Ernaux, esse não era o caso.
O que me surpreendeu nessa história foi perceber que a mulher, pelo menos nesse caso, acaba com atitudes e posicionamentos que vemos na descrição de homens mais velhos que mantêm relacionamentos com mulheres que, pela idade, poderiam ser suas filhas. Não sei porque, eu achava que seria diferente: estava errada. Nesse conto, a mulher (Annie) se sente superior ao rapaz e fada madrinha, dando ao jovem acompanhante oportunidade de viagens por diferentes cidades europeias, estadias e refeições em lugares luxuosos, ao mesmo tempo observando para si mesma e muitas vezes de maneira crítica,, gestos e maneirismos que lhe desagradam. Ao mesmo tempo, sua exposição à penúria da vida do estudante, e aos métodos que ele usa para combater a falta de dinheiro, trazem para a narradora memórias de sua própria juventude. Mas não há afeto. É um estranho passeio sem emoção pela juventude da própria autora.
Annie Ernaux
A conclusão sobre o comportamento da mulher nessa memória fica a cargo do leitor. Apesar de ser uma parte independente das outras obras de Annie Ernaux dessa volumosa autobiografia, acho um gesto de marketing fazer essa publicação em separado. Talvez traga o benefício de apresentar a autora a um publico maior, que não queira investir tempo na leitura. Mas suas outras obras, publicadas pela mesma editora podem muito bem preencher essas demandas, pois são livros de rápida leitura e poucas páginas.
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Quando o meu grupo de leitura Papalivros decidiu que o final do ano seria dedicado à leitura de Eu vou, Tu vais, Ele vai, da autora alemã Jenny Erpenbeck, tradução de Sergio Tellaroli [Cia das Letras: 2024] confesso ter tido algum receio. Talvez fosse mais um livro dos tantos que apareceram nos últimos anos com agenda política ostensiva, uma das heranças mais limitantes que recebemos do filósofo francês Sartre, amplamente abraçada por militantes de minorias mundo afora, defendendo que a literatura só tem valor se politicamente comprometida.
Mas que bela surpresa tive: o livro é um escrupuloso relato das dificuldades dos países europeus em aceitarem responsabilidade sobre refugiados de guerra e imigrantes. E da tribulação por que esses refugiados, sem terra, sem emprego, sem conhecimento linguístico passam sem obter resultados positivos para a retomada de uma vida proveitosa. Aos poucos nos envolvemos com cada um dos personagens pelos olhos de um professor de literatura clássica, que ao se aposentar e por acaso, passa a se interessar por um grupo de homens, a maioria do norte da África, que pede asilo político em Berlim. Sua adaptação à nova vida sem as obrigações da universidade é lenta. Confronta o final de carreira e a aproximação do final de vida. A esposa já faleceu, e a morte parece presente, bem próxima mesmo, desde que um homem se afoga no lago próximo à sua casa. Este contraponto é finamente entrelaçado na narrativa que se torna ainda mais rica quando através da perspectiva do professor vemos paralelos entre os refugiados e antigos heróis gregos da Ilíada.
A riqueza das referências aos clássicos da literatura ocidental, dos gregos aos romanos, Homero, Ovídio, tecidas junto a referências contemporâneas como “O tempo que passa: ensaio sobre a espera” de Andrea Köhler ou lendas medievais, como O romance de Tristão e Isolda, toda elas parte do fluxo de consciência contínuo de Richard, o professor que seguimos em seu novo papel de aposentado e interessado na vida além paredes universitárias, é a cereja do bolo dessa leitura. Entre os bônus dessas associações de ideias estão também os cognomes que ele dá aos asilados para melhor caracterizá-los para si mesmo e para o leitor. Richard identifica história, personalidade e saga de cada um e os liga a personagens clássicos. Mesmo que o leitor não esteja familiarizado com essas referências, a leitura corre suave, mas se você as conhece, o prazer dos sorrisos de reconhecimento é enorme.
No entanto, o cerne das questões abordadas está no dilema dos países europeus e da Alemanha em especial, em aceitar e introduzir os novos habitantes na cultura do país. A burocracia impera. Não só porque são muitos os que procuram asilo fugindo das mais variadas guerras, revoltas, perseguições nos países do continente africano, mas também porque os sistemas europeus, repletos de armadilhas burocráticas herdadas, quer da Alemanha ocidental como da oriental, têm longas raízes na própria história do pensamento europeu. Richard, está em boa posição para entender e se revoltar simultaneamente com a lenta resolução. E compara como lhe apetece a experiência antes da unificação da Alemanha em 1990 e a vida que levou depois, observando também, como seus colegas, já aposentados, reagem ao problema aos que procuram asilo. Paralelamente somos apresentados a Rashid, [Nigéria], Awad [Gana}, Osaboro [Niger e Líbia], Khalil [Chad], e outros doze homens, conhecendo suas histórias, desejos, esperanças e passado. Com eles aprendemos sobre a dificuldade de adaptação. Falam línguas que ninguém entende quer na Alemanha, na Itália, de onde muitos vieram, ou na Europa. Não conhecem o alemão. Vêm à procura de algum trabalho qua não existe. Têm experiências desnecessárias para o país que os abriga. E passam dias, semanas, meses, anos à espera. À espera de permissão para ficar, para trabalhar. Esperam serem vistos e respeitados, mesmo que fazendo trabalhos meniais. Querem trabalhar e não podem. Presumem poder se adaptar, imaginam um futuro melhor, calculam maneiras de ajudar as famílias deixadas para trás, suspeitam que pode não dar certo, consideram um dia voltar às suas origens, desconfiam, com toda razão, dos europeus e especulam silenciosamente o propósito de suas vidas.
Jenny Erpenbeck
A meio termo da leitura, depois de conhecer através de Richard cada um dos homens procurando asilo, um após outro, numa corrente infinita de sofrimentos, fugas, guerras, lutas desesperadas pelo sobrevivência duvidei de minha capacidade de chegar ao fim desse volume. Em geral não me emociono muito na leitura, mas temi que qualquer conclusão a que se chegasse no fim desse volume, seria extremamente penosa. Mas a escrita de Jenny Erpenbeck é muito leve, justa, equilibrada. Avancei meticulosamente. E não me arrependi, Eu vou, tu vais, ele vai, – um título significativo para essa obra — traz tênue esperança de um mundo melhor. E isso foi o que bastava para que que eu o considerasse uma excelente e importante leitura. Passadas quatro semanas, posso afirmar, é um livro importante nas considerações que traz à tona, ilibadas. Ele nos faz pensar sobre o problema dos asilados. Não só na Europa. O mundo está cheio deles que fogem dos regimes mais desumanos. É um problema de todos nós, inclusive nosso, aqui no país, que abrigamos tantas famílias vindas da Venezuela. Essa leitura pode nos sensibilizar ainda mais para sua saga.
Recomendo; tornou-se um de meus livros favoritos dos últimos tempos. Sem restrições.
NOTA: este blog não está associado a qualquer editora ou livraria, não recebe livros nem incentivos para a promoção de livros.