A flauta e o sabiá, fábula de Coelho Neto

8 01 2013

gaiola e mulher, george barbierO vôo do pássaro, George Barbier (França,1882-1932)

A flauta e o sabiá

Coelho Neto

Em rico estojo de veludo, pousado sobre uma mesa de charão, jazia uma flauta de prata. Justamente por cima da mesa, em riquíssima gaiola suspensa ao teto, morava um sabiá. Estando a sala em silêncio, e descendo um raio de sol sobre a gaiola, eis que o sabiá, contente, modula uma ária.

Logo a flauta escarninha põe-se a casquinar no estojo como a zombar do módulo cantor silvestre.

— De que te ris? indaga o pássaro.

E a flauta em resposta:

— Ora esta! pois tens coragem de lançar guinchos diante de mim?

— E tu quem és? ainda que mal pergunte.

— Quem sou? Bem se vê que és um selvagem. Sou a flauta. Meu inventor, Mársias, lutou com Apolo e venceu-o. Por isso o deus despeitado o imolou. Lê os clássicos.

— Muito prazer em conhecer… Eu sou um mísero sabiá da mata, pobre de mim! fui criado por Deus muito antes das invenções. Mas deixemos o que lá se foi. Dize-me: que fazes tu?

— Eu canto.

— O ofício rende pouco. Eu que o diga que não faço outra coisa. Deixarei, todavia, de cantar e antes nunca houvesse aberto o bico porque, talvez, sendo mudo, não houvessem escravizado se, ouvindo a tua voz, convencer-me de que és superior a mim. Canta! Que eu aprecie o teu gorjeio e farei como for de justiça.

— Que eu cante?!…

— Pois não te parece justo o meu pedido?

— Eu canto para regalo dos reis nos paços; a minha voz acompanha hinos sagrados nas igrejas. O meu canto é harmoniosa inspiração dos gênios ou a rapsódia sentimental do povo.

— Pois venha de lá esse primor. Aqui estou para ouvir-te e para proclamar-te, sem inveja, a rainha do canto.

— Isso agora não é possível.

— Não é possível! por quê?

— Não está cá o artista.

— Que artista?

— O meu senhor, de cujos lábios sai o sopro que transformo em melodia. Sem ele nada posso fazer.

— Ah! é assim?

— Pois como há de ser?

— Então, minha amiga modéstia à parte vivam os sabiás! Vivam os sabiás e todos os pássaros dos bosques, que cantam quando lhes apraz, tirando do próprio peito o alento com que fazem a melodia. Assim da tua vanglória há muitos que se ufanam. Nada valem se os não socorrem o favor de alguém; não se movem se os não amparam; não cantam se lhes não dão gorjeia porque tem voz. E sucede sempre serem os que vivem do prestígio alheio, os que mais alegam triunfos. Flautas, flautas… cantam nos paços e nas catedrais… pois venha daí um dueto comigo.

E, ironicamente, a toda voz, pôs-se a cantar o sabiá, e a flauta de prata, no estojo de veludo… moita.

Faltava-lhe o sopro.

***


Ações

Information

4 responses

17 01 2015
Avatar de Matheus Ernesto dos Santos Matheus Ernesto dos Santos

Voltei ao tempo, 64 anos, e me veio à memória, Dona Marilande, e Dona Graciosa, minhas professoras quando ainda criança com 6 anos, me fizeram ler esta fábula e a mesma calou como uma mensagem divina em meu coração. Dona Marilande, Dona Graciosa; eu era feliz e não sabia. Hoje, como Pastor, pretendo construir uma mensagem para a libertação de pessoas baseada neste tema: A Flauta e o Sabiá. Sem tirar os méritos do autor e sem infringir seu direitos autorais, ah! como gostaria de dar continuidade aos meus propósitos, Posso? Deus em Cristo abençoe a todos.

17 01 2015
Avatar de peregrinacultural peregrinacultural

Prezado Matheus, que alegria receber um comentário como este. Eu não tenho nenhum direito autoral sobre esta postagem. Teoricamente teria simplesmente pela junção da imagem com o texto. A fábula de Coelho Neto está em domínio público. As obras do autor Henrique Maximiano Coelho Neto, que nasceu em 1864 — e faleceu em 1934, estão em domínio público, o que faz com que sejam um real tesouro da cultura brasileira. O mesmo é verdade sobre a gravura do artista francês. Dê continuidade aos seus plano. Tenho certeza que sua sensibilidade aguçada será um bom guia para um trabalho edificante. Muito obrigada por sua visita, por seu comentário e sei que Dona Marilande e Dona Graciosa se vivas estariam muito orgulhosas do aluno que as honra com tão boas memórias. Um grande e sincero abraço.

2 02 2019
Avatar de João Batista Filho João Batista Filho

No meu curso primário (1931) li esse primor de conto: a flauta e o sabiá. Hoje, 02 de fevereiro de 2019, não sei por que cargas d’água, lembrei-me de Coelho Neto. Acionei a internet e fiquei encantado. De muitos outros , La Fontaine, Esopo,, nos mais variados idiomas, especialmente em francês ,
ainda me recordo. Obrigado a quem me trouxe tão grande prazer. Afinal , sou um saudosista de apenas 95 anos. Tiau, gente.

9 02 2019
Avatar de peregrinacultural peregrinacultural

João Batista, que prazer conhecê-lo. Fico feliz de poder ter lembrado a você deste delicioso conto de Coelho Neto. Um grande abraço!

Deixar mensagem para peregrinacultural Cancelar resposta