Anjinhos semeam estrelas, cartão de Natal, Inglaterra, sem data.
—
Natal… e a gente acredita
num mundo menos atroz
porque a esperança bendita
renasce dentro de nós.
(Newton Vieira)
Natal… e a gente acredita
num mundo menos atroz
porque a esperança bendita
renasce dentro de nós.
(Newton Vieira)
—-
—–
—–
Garcia Redondo
—–
Nessa manhã de Natal, luminosa e fresca, Mma. Lenoir, ainda em penteador, alegre e gárrula, enfeitava, na sala da biblioteca da sua habitação garrida, a virente araucária minúscula que devia encher de gáudio o pequeno Alberto, cobrindo-a de bibelots policromos e de doçuras apetitosas – quando uma criada entrou no aposento e lhe entregou uma carta.
Mma. Lenoir olhou o sobrescrito e, estranhando a letra, indagou:
— De onde vem isto?
— De casa do pai de V. Exª .
— De casa de meu pai!…
Muito admirada, rasgou o envelope, e passou os olhos pela carta.
Uma palidez súbita substituiu as róseas cores do rosto de Mma. Lenoir, as suas lindas mãos patrícias tremeram e um suspiro abafado escapou-lhe do peito. Depois, atirando a carta sobre a mesa onde se erguia a araucária, levou as mãos ao rosto e começou a soluçar.
A criada, pasmada e solícita, correra para a ama, e carinhosa, sem conhecer ainda a causa desse pesar imprevisto, conduziu-a docemente para junto de uma poltrona, onde a fez sentar.
E timidamente, respeitosamente, inquiriu:
— Que foi, minha senhora? Aconteceu alguma coisa ao Sr. Afonso?
Mma. Lenoir não respondeu; soluçando sempre, sempre com suas mãos no rosto, ensopando em lágrimas o seu fino lenço de batiste dava silenciosamente expansão à sua dor.
A criada, perplexa, desejosa de ser-lhe útil nesse transe doloroso, perguntou ainda:
— Quer que vá buscar o menino Alberto?… ele já deve estar acordado.
A cabeça de Mma. Lenoir agitou-se nervosamente e da sua garganta patiu, depois de um grande esforço, esta frase rouca:
— Não, não, traze-me água para beber.
A criada saiu, cerrando discretamente a porta da biblioteca.
—
* * *
—–
Mma. Lenoir só tinha duas afeições no mundo: seu filho Alberto e seu pai. Filha única de um velho rico e libertino, cedo perdera a mãe e cedo vira-se entregue aos cuidados de estranhos.
Para ver-se livre de uma criança, cuja presença o constrangia, impedindo-o de dar largas ao seu temperamento fescenino, o velho Afonso Marquet começara pondo a filha em casa de uma instrutora que lhe servia de mãe e de mestra, e acabara encerrando-a em um colégio, onde ia vê-la raramente, compensando as largas ausências com amiudados presentes fascinadores.
A respeito deste regime pouco afável, a criança, que herdara o belo coração materno, tinha uma grande afeição ao pai e amava-o sinceramente.
Assim cresceu, assim se desenvolveu, esquecida e triste, sempre encerrada entre as quatro paredes do mesmo colégio, vendo o pai poucas vezes, sem conhecer as alegrias do lar e os carinhos dos amigos. Para encher o vácuo de sua alma sentimental e meiga, ilustrava-se, lendo muito, estudando com o prazer e a ânsia de quem procura derivativos para o tédio e distrações aos pesares do isolamento e da reclusão.
Mas, um dia, amanheceu mulher feita e não era mais possível continuar no colégio. O velho Afonso, bem a contragosto, viu-se forçado a conduzi-la ao seu lar de libertino, onde tanta vez espumara a champanha da orgia e estalara o beijo do amor livre. Todavia, a presença em sua casa, dessa mulher, dessa linda mulher que não era como as outras, constrangia-o, obrigando-o a mudar de hábitos arraigados, cuja continuação a sua velhice cupidiana e ardente imperiosamente solicitava.
Atormentado pela forçada abstenção dos seus prazeres cômodos, o velho Afonso cogitou em casar a filha.
Era um meio fácil de ver-se livre dela, recuperando a sua ampla liberdade perdida. E, uma noite, esse pai egoísta e frívolo notou, entre os seus parceiros de baccarat no Clube, um rapaz viveur e esperto, bem galante, bem distinto, razoavelmente educado e como ele de origem francesa, que, a seu ver, era muito capaz de fazer a felicidade da filha, se ela quisesse ter a complacência de amá-lo um poucochinho.
E com essa idéia fixa, começou a levar o rapaz a casa, a dar-lhe jantares, a pô-lo em contato com a filha. Sagaz e ambicioso, o galante Lenoir percebeu os intuitos do velho e, como o negócio convinha-lhe em todos os sentidos, fez-se a desejada corte e conseguiu fazer-se amar.
Poucos meses após, o casamento fazia-se, e o casal ia habitar uma linda chácara com que o velho Afonso presenteara a filha.
——
* * *
——–
A vida conjugal de Mma. Lenoir foi de duração curta e de ventura escassa. Passada a lua de mel, durante a qual ela apenas entreviu uma nesga do céu da felicidade sonhada, o marido voltava à vida enervante e dissipadora dos clubes, abandonando-a noites inteiras, isolada e desiludida, entregue à insônia e aos sustos.
Felizmente o acaso, esse bom amigo incógnito, que às vezes surge providencialmente para dar lenitivo aos que sofrem, veio libertá-la desse companheiro instável, arrebatando-o à vida, que para ele resumia-se nas emoções que produzem os prazeres frívolos e o retângulo verde da mesa do jogo. E assim foi, dois anos após de casada, Mma. Lenoir, com apenas dezenove anos, achou-se viúva e em vésperas de ser mãe.
* * *
—-
—–
A Carta, 1925
Eliseu Visconti ( Brasil, 1866-1944)
Óleo sobre tela, 51 x 69 cm
Coleção Particular
——
——
—-
Quando nasceu o pequeno Alberto, havia três meses que o Sr. Lenoir repousava no Caju, em baixo de uma grande pedra tumular. Essa criança, que não conhecera o pai e que estava destinada a ser o consolo único da mãe, despertou uma grande comoção piedosa no avô. Talvez o remorso de não ter consagrado uma afeição mais intensa à filha, talvez a fadiga produzida pela vida dissoluta que passara, impelisse o velho contrito a dedicar-se com exagero apego ao neto. Nesse rebento louro concentrava todos os seus afetos; e ele que tanto afastara de si a filha, acabou por não poder passar um dia sem ver o neto, sentando-o nos joelhos acalentando-o com excessos de ternura. Entre os braços da mãe carinhosa e os joelhos já trêmulos do avô, essa criança avançou pela vida e atingiu os nove anos.
Mma. Lenoir, embora moça, formosa, rica e requestada, achou-se bem na sua viuvez, e preferiu conservar a independência, que ela lhe trouxera, a correr o risco de var para o seu lar tranqüilo um segundo marido igual ao que tivera. Demais, a sua existência, toda ocupada com o filho, era-lhe agora menos insípida, agradável mesmo.
Via diariamente o pai, que, embora morasse em casa própria, tinha um talher constante à sua mesa e raro deixava de sentar-se entre a filha e o neto, para encher o pequeno de gulodices e fazer-lhe todas as vontades.
Para ter essa criança constantemente feliz e satisfeita, o velho despovoava as prateleiras das lojas de brinquedos e inventava toda sorte de loucuras. Um pedido de Alberto era uma ordem para o avô, que, na sua indulgência senil, chegava muitas vezes a contrariar a filha para não ver murchar o sorriso vermelho nos lábios do neto.
Tal era a situação de Mma. Lenoir, quando na manhã de 25 de dezembro de 1886, na ocasião em que na sala da sua biblioteca preparava a árvore de Natal, que o velho Afonso ocultamente lhe levara na véspera para surpreender o neto no dia seguinte, recebeu inesperada e brutalmente a notícia, comunicada laconicamente por um criado, do falecimento repentino de seu pai.
E fora essa nova que a pusera em lágrimas, numa aflição angustiada e acabrunhadora.
—-
* * *
—-
—–—-
Cerca de uma hora ficou Mma. Lenoir no fundo do seu jardim, no interior de um belvedere rústico, a esmagar a sua dor, a conformar-se com a sua triste sorte, ocultando lágrimas e fazendo desaparecer do seu rosto todos os vestígios da tristeza. Fora aí, entre rosas e madressilvas, que a criada lhe viera explicar como falecera o pai, fulminado por uma congestão cerebral, no momento em que se levantara do leito para ir tomar banho; e fora aí também que a mesma criada, ofegante e aflita, lhe veio comunicar, pouco depois, que o filho, impaciente, fugira do quarto e já estava na biblioteca, encantado e surpreso, a olhar a linda árvore de Natal, que o bom São Nicolau lhe trouxera, esquecendo-se, na precipitação da dádiva de pendurar pelos galhos todos os brinquedos que deixara sobre a mesa.
Dando à fisionomia um ar risonho, Mma. Lenoir atravessou o jardim, reentrou em casa e seguiu para a biblioteca. E já próxima, abafando os passos, viu, através do vão da porta, o filho, de olhos fixos na carta que ela recebera e onde a triste nova lhe tinha sido comunicada de um modo banal, com a fórmula arcaica, lançada por um criado, dedicado mas pretensioso, sobre uma larga folha de papel comum: “Saiba V. Ex.ª que o Sr. Afonso acaba de partir deste para melhor mundo”.
Sem pensar no que fazia, instintivamente, a pobre mãe precipitou-se para a criança e antes de a abraçar, antes de a beijar, arrancou-lhe a carta das mãos, dizendo-lhe com um grande esforço, a sorrir contrafeita, para disfarçar a emoção:
— Ah! Seu curioso, então estava lendo a carta que o São Nicolau me escreveu?
E o pequeno, piscando os olhos, num gesto brejeiro:
— Não é a do São Nicolau, não, mamãe! É a do Antônio, avisando que o vovô fez viagem.
E alegremente, mexendo nas tetéias espalhadas sobre a mesa, acrescentou:
— Estou zangado com o vovô, porque não quis levar-nos com ele para o “mundo melhor”.
Um suspiro de alívio e ao mesmo tempo de dor recalcada escapou dos lábios da infeliz mãe; depois, passeando os seus olhos negros, de novo marejados de lágrimas quentes, pelos livros da biblioteca, disse vagamente, respondendo à observação da criança:
— Sim, não nos levou com ele, mas mandou-nos todas essas lindas tetéias e jóias que estás vendo.
O pequeno, muito intrigado, como quem se sentia na pista de um segredo, indagou:
— Então, o São Nicolau é vovô?
Mma. Lenoir atrapalhada, presa aos sentimentos mais opostos, enxugou de novo os olhos e, para não dar a perceber o seu enleio, foi então beijar o filho numa explosão de ternura.
E, quando o osculava, atraía-lhe a atenção para os brinquedos, distraindo-o do assunto, que tanto a atormentava.
Mas, ele obstinado e curioso, inquiriu ainda:
— E onde fica, mamãe, esse “mundo melhor” para onde o vovô seguiu hoje? Nunca ouvi falar dessa terra!…
Então, a desgraçada mulher, erguendo o braço para o ar, e apontando para a nesga do céu, que se avistava da janela, deixou escapar dos lábios lívidos estas palavras confusas:
— É lá, meu filho,lá, além, bem além daquelas nuvens brancas…
— Então, já sei; é no céu, onde estão Nosso Senhor e … papai — disse o pequeno, batendo as mãos de contente.
E fixou demoradamente os olhos no azul, a ver se divisava por lá a vitória a rodar por entre as nuvens.
—
* * * * *
Em: Noite de Natal: coletânea de histórias de Natal, ed. Cassiano Nunes e Mário da Silva Briito, São Paulo, Editora Saraiva: 1950
—–
—–
—-
—–
Manuel Ferreira Garcia Redondo (RJ, RJ 1854 – SP, SP 1916) engenheiro, jornalista, professor, contista e teatrólogo. Usou os seguintes pseudônimos: Um contemporâneo; Um plebeu, Cabrion, Pepelet, Gavarni, Nemo, Childe Harold.
Obras:
Arminhos, contos, 1882
Mário, teatro, 1882
O dedo de Deus, comédia, 1883
O urso branco, comédia, 1884
Carícia, 1895
A choupana das rosas, contos, 1897
Moléstias e bichos, comédia, 1899
Salada de frutas, 1907
Viagens pelo país da ternura, 1907
Através da Europa, viagem, 1908
Novos contos, 1910
O descobrimento do Brasil, conferência 1911
Cara alegre, humor, 1912
Na pele do outro, comédia, s.d.
Bom-humor e vida airada, s.d.