Calendário de Eugene Grasset, para a loja La Belle Jadiniere, 1896
“Quão rapidamente flui a corrente de janeiro a dezembro! Somos levados de roldão pela torrente das coisas que se tornaram tão familiares que não projetam nenhuma sombra.”
As ondas
“Quão rapidamente flui a corrente de janeiro a dezembro! Somos levados de roldão pela torrente das coisas que se tornaram tão familiares que não projetam nenhuma sombra.”
As ondas
Mulher pensativa
Jules Rauschert (EUA, 1896-1975)
óleo sobre tela, 60 x 46 cm
“Somos histórias, contidas naqueles vinte centímetros complexos atrás de nossos olhos, linhas desenhadas por vestígios deixados pela mistura das coisas do mundo, e orientadas a prever acontecimentos no futuro, em direção à entropia crescente, num canto um pouco particular deste imenso e desordenado universo. Este espaço, a memória, junto com nosso contínuo exercício de antecipação, é a fonte do nosso sentir o tempo como tempo, e a nós mesmos como nós mesmos. Pense nisto: a introspecção pode facilmente imaginar que existe sem que exista o espaço ou a matéria, mas será que consegue se imaginar fora do tempo?”
Em: A ordem do tempo, Carlo Rovelli, tradução de Silvana Cobucci, Ed. Objetiva: 2018
A leitura da poesia, c. 1939
Ivan Olinsky (Rússia/EUA, 1878-1962)
óleo sobre tela, 90x 76 cm
“Bryce e John faleceram há alguns anos. Eu conheci os dois, e adquiri profundo respeito e admiração por eles. Na parede da minha sala na Universidade de Marselha pendurei uma carta que John Wheeler me mandou ao saber dos meus primeiros trabalhos em gravidade quântica. De vez em quando a releio, com um misto de orgulho e saudade. Gostaria de ter-lhe perguntado mais coisas, nos nossos poucos encontros. Na última vez em que o encontrei, em Princeton, fizemos uma longa caminhada. Falava com a voz baixa de uma pessoa idosa, e eu perdia muitos trechos do que ele dizia, mas não ousava lhe pedir que repetisse. Agora ele se foi. Já não posso lhe fazer perguntas, não posso lhe contar o que penso. Não posso lhe dizer que acho que suas ideias eram as corretas e que nortearam toda a minha vida de pesquisa. Já não posso lhe dizer que acredito que ele foi o primeiro a se aproximar do cerne do mistério do tempo em gravidade quântica. Porque ele, aqui e agora, não existe mais. Este é o tempo para nós. A lembrança e a saudade. A dor da ausência. Mas não é a ausência que provoca dor. São o afeto e o amor. Se não existisse afeto, se não existisse amor, não haveria a dor da ausência. Por isso, também a dor da ausência, no fundo, é boa e bela, porque se alimenta daquilo que dá sentido à vida. Conheci Bryce em Londres quando me encontrei com um grupo de gravidade quântica pela primeira vez. Eu era bem jovem, fascinado por essa matéria misteriosa pela qual ninguém se interessava na Itália; já ele era um grande guru do tema. Eu tinha ido encontrar Chris Isham no Imperial College e quando cheguei me disseram que estava na varanda do último andar. Na mesa estavam sentados Chris Isham, Karel Kuchar e Bryce DeWitt, os três principais autores cujas ideias eu estudara durante anos. Lembro a sensação intensa de vê-los ali, através do vidro, conversando tranquilamente. Eu não ousava ir até lá e interrompê-los. Pareciam-me três grandes mestres zen que compartilhavam insondáveis verdades em meio a misteriosos sorrisos. É provável que estivessem apenas decidindo onde iriam jantar. Relembro e me dou conta de que na época eram mais jovens do que sou agora. Isso também é o tempo. Um estranho inversor de pontos de vista. Pouco antes de morrer, Bryce deu uma longa entrevista na Itália, reunida num pequeno livro; só ali percebi que ele acompanhava meus trabalhos com muito mais atenção e simpatia do que jamais teria imaginado com base em nossas conversas, nas quais expressava mais críticas que encorajamentos.“
Em: A ordem do tempo, Carlo Rovelli, tradução de Silvana Cobucci, Ed. Objetiva: 2018
“… o que “é real”? O que “existe”? A resposta é que essa é uma pergunta mal formulada, quer dizer tudo e nada. Porque o adjetivo “real” é ambíguo, tem uma infinidade de significados. O verbo “existir” tem ainda mais. À pergunta: “Existe um boneco cujo nariz cresce quando conta mentiras?”, pode-se responder: “Claro que existe! É o Pinóquio!”; ou então: “Não, não existe, é apenas uma fábula inventada por Collodi”. As duas respostas estão corretas, porque usam o verbo “existir” com significados diferentes. Há tantas maneiras de se dizer que uma coisa existe: uma lei, uma pedra, uma nação, uma guerra, um personagem de uma comédia, um deus de uma religião a qual não professamos, o deus de uma religião em que acreditamos, um grande amor, um número… cada um desses entes “existe” e “é real” num sentido diferente do outro. Podemos nos perguntar em que sentido algo existe ou não (Pinóquio existe como personagem literário, não no registro civil italiano), ou se uma coisa existe num sentido determinado (existe uma regra que proíbe fazer roque no jogo de xadrez depois de mover a torre?). Perguntar-se “o que existe?” ou “o que é real?” em geral significa apenas se perguntar como queremos usar um verbo e um adjetivo.6 É uma questão gramatical, não sobre a natureza.”
Em: A ordem do tempo, Carlo Rovelli, tradução de Silvana Cobucci, Ed. Objetiva: 2018
“A função dos relógios é indicarem todos a mesma hora. Mas essa ideia também é mais moderna do que podemos imaginar. Durante séculos, enquanto se viajava a cavalo, a pé ou de carruagem, não havia motivo para sincronizar os relógios de um lugar para outro. Existia um ótimo motivo para não fazê-lo: meio-dia é, por definição, o momento em que o sol está mais alto no céu. Cada cidade ou aldeia tinha uma meridiana que marcava o momento em que o sol estava a meio-dia e permitia regular o relógio do campanário, visível a todos. O sol não chega ao meio-dia no mesmo momento em Lecce, Veneza, Florença ou Turim, porque vai de leste para oeste. Meio-dia chega primeiro em Veneza e bem mais tarde em Turim, e durante muitos séculos os relógios de Veneza estiveram uma boa meia hora adiantados em relação aos de Turim. Cada cidadezinha tinha sua “hora” peculiar. A estação de Paris mantinha uma hora própria um pouco atrasada em relação ao restante da cidade por cortesia aos viajantes.
No século XIX, chega o telégrafo, os trens se tornam comuns e rápidos, e passa a ser importante sincronizar bem os relógios de uma cidade para outra. É difícil organizar horários ferroviários se cada estação tiver uma hora diferente das outras. Os Estados Unidos são o primeiro país a tentar padronizar a hora. A proposta inicial é estabelecer uma hora universal para todo o mundo. Chamar, por exemplo, de “doze horas” o momento em que é meio-dia em Londres, de modo que o meio-dia corresponda às doze horas em Londres e a aproximadamente dezoito horas em Nova York. A proposta não agrada, porque as pessoas são apegadas às horas locais. O acordo é obtido em 1883, com a ideia de dividir o mundo em fusos “horários” e padronizar a hora só dentro de cada fuso. Desse modo, a discrepância entre as doze horas do relógio e o meio-dia local compreende no máximo em torno de trinta minutos. Aos poucos, a proposta é aceita no restante do mundo, e os relógios começam a ser sincronizados entre cidades diferentes.”
Em: A ordem do tempo, Carlo Rovelli, tradução de Silvana Cobucci, Ed. Objetiva: 2018
A menina do papai
Karin Jurick (EUA, 1961-2021)
óleo sobre placa, 20 x 20 cm
Machado de Assis
Autoria desconhecida.Os dois elementos mencionados no título brasileiro do livro de Ruth Ozeki A Terra Inteira e o Céu Infinito formam um todo, uma unidade, um ser-tempo, pleno, indivisível. E foi justamente com o sentido de plenitude, de preenchimento emocional que acabei de ler um dos mais ricos livros de ficção (o quanto é ficção é debatível) dos últimos anos. Ao fechar a última página, ao ler os apêndices, me dei conta de querer reler o livro, assim que for possível, pela certeza de que mesmo na releitura ainda não terei digerido tudo o que foi abordado nessas quatrocentas e tantas páginas.
Esta é uma obra complexa demais para caber nos poucos parágrafos de uma resenha. Extremamente atual, de fácil leitura, o livro de Ruth Ozeki nos leva a considerar assuntos sérios que ponteiam o horizonte cotidiano de todos nós e que raramente paramos para considerar em maior detalhe. Temos através dessa história de duas mulheres: uma jovem adolescente e uma mulher madura, que se encontram através do tempo, noções de zen-budismo, física quântica, meio ambiente, tsunami, lixo oceânico, bullying, doença mental, suicídio, Segunda Guerra Mundial, relativismo da história, escolhas éticas e morais e um tanto de fantasia. Tudo isso numa obra que consegue manter unidade integral, única, aberta, consistente e estética.

Com essa variedade temática espera-se uma espécie de colcha de retalhos. Mas isso não acontece. Ruth Ozeki controla muito bem o texto e seu ritmo. Ainda que não produza uma obra de suspense, eu me vi virando página após página, magnetizada pelo desenrolar da quase não-trama. Que feito!
A história é contada por duas vozes distintas: Ruth, uma mulher madura que vive numa ilha no Canadá e encontra um diário de uma jovem japonesa jogado ao mar. Resolve lê-lo. E nós lemos junto. Assim conhecemos Naoko a jovem japonesa que viveu nos EUA e voltou com sua família para o Japão onde sofreu todo tipo de preconceito e bullying. Não era suficientemente japonesa. Aos poucos sabemos dos problemas familiares, de seu pai, de seu tio avô e conhecemos sua bisavó, um dos personagens mais interessantes do livro que nos dá lições e lições de vida.
Mesmo que repleto de situações difíceis descritas em detalhe, ou talvez justamente porque são descritas em detalhe, consegui seguir em frente testemunha dos sofrimentos dos personagens, seguir seus passos, entender suas maneiras de pensar, quer pessoais quer culturais, e sair ao final estimulada, esperançada.
Ruth OzekiEsta obra de ficção é repleta de informações factuais que se transformam diante dos nossos olhos em verdadeiras meditações. Dentre elas, quase imperceptível, está aquela do leitor criando sua obra na leitura do livro, como Proust, que tem um papel importante e interessante no livro, já havia notado [“todo leitor é leitor de si mesmo”]. Como acontece com Ruth ao ler o diário de Naoko. Há, de fato, tantas camadas de leitura entremeadas e possíveis que ao final do livro o desejo de reler é quase obrigatório. Com fortes personagens o leitor é levado pela mão a considerar postulados filosóficos diversos inclusive aqueles sobre o conceito de tempo, assim como considerações éticas em horas difíceis. Tudo isso num contexto contemporâneo que a pessoa comum não só entende mas sobre a qual é frequentemente convidada a opinar.
Há tempos não me encanto com uma obra de tal maneira. Foi a primeira leitura de 2017 do meu grupo de leitura e todos os leitores se encantaram. Recomendo com entusiasmo.