A chegada da primavera, texto de Olga Tokarczuk

30 08 2023

Pessoa lendo na paisagem, 2005

Erni Kwast (Holanda, 1959)

 

 

 

“Os primeiros indícios da primavera ainda não tinham chegado à cidade. Ela deveria ter se acomodado nos arredores, nas hortas das chácaras, nos vales dos riachos, como as tropas inimigas antigamente. Sobre os paralelepípedos, o inverno deixou um monte de areia usada para cobrir as calçadas escorregadias, e agora, ao sol, empoeirava tudo e sujava os sapatos primaveris recém-tirados do armário. Os canteiros municipais estavam debilitados e os gramados sujos de fezes de cães. Nas ruas passavam pessoas com um aspecto acinzentado e olhos semicerrados. Pareciam grogues. Formavam filas em frente aos caixas eletrônicos, para tirar de lá um valor de vinte zlotys, exatamente o valor necessário para se alimentar durante um dia. Estavam com pressa para chegar ao posto de saúde, pois tinham uma consulta marcada para as 13h35, ou estavam a caminho do cemitério para trocar as flores de plástico do inverno pelos narcisos naturais da primavera.”

Em: Sobre os ossos dos mortos, Olga Tokarczuk, tradução de Olga Baginska-Shinzato,  São Paulo, Todavia: 2020, p.118





Outono: Olga Tokarczuk

23 03 2023

Autumn At Le Maris Park Paris Landscape French Post Impressionist Signed  Oil (#0022) on Mar 22, 2023 | Jasper52 in NY

Outono no parque Le Maris em Paris

Josine Vignon (França, 1922-2022)

óleo sobre tela, 53 x 64 cm

“O inverno começa logo depois do Dia de Todos os Santos. As coisas aqui funcionam assim, o outono retira todas as suas ferramentas e os seus brinquedos, sacode as folhas, pois já não serão necessárias, varre-as para debaixo das divisas dos campos, retira as cores das gramas até ficarem cinzentas e desbotadas. Depois, tudo ganha nitidez e se torna branco e negro: a neve cai sobre os campos lavrados.”

Em: Sobre os ossos dos mortos, Olga Tokarczuk, tradução de Olga Baginska-Shinzato, São Paulo, Todavia: 2019, p.213.





Dos medos de conhecer o escritor, texto de Olga Tokarczuk

16 02 2023

Jovem lendo

Ann Brockman (EUA, 1899-1943)

óleo sobre tela

 

 

“A escritora costumava vir em maio,num carro carregado até o teto de livros e comida exótica. […] Se eu a conhecesse um  pouco menos, certamente leria seus livros.  Mas por conhecê-la, tinha medo de os ler. Era possível que eu me achasse neles, de uma forma que não conseguiria entender? Ou os lugares que amo seriam completamente diferentes do que são para mim? De alguma forma as pessoas como ela, que dominam a escrita, costumam ser perigosas.  Logo levantam suspeitas de falsidade — que não são elas mesmas, mas um olho que está sempre observando, e transformando em frases tudo o que observa; assim retira da realidade a sua qualidade mais importante — sua inexpressividade.”

 

Em: Sobre os ossos dos mortos, Olga Tokarczuk, tradução de Olga Baginska-Shinzato,  São Paulo, Todavia: 2020, p.54





A intrigante primeira frase…

27 07 2022

Ilustração Anna Speshilova.

“Com a minha idade e nas minhas condições atuais, deveria sempre lavar bem os pés antes de dormir, caso uma ambulância precise vir me buscar à noite.”

Em: Sobre os ossos dos mortos, Olga Tokarczuk, tradução Olga Baginska-Shinzato, São Paulo, Todavia: 2019, p.7.