A Fazenda Santa Cruz, poesia de Olegário Mariano

13 05 2024

Entrada da fazenda, 1966

Aldo Bonadei (Brasil, 1906-1974)

óleo sobre tela, 59 x 77cm

 

 

O Rio Grande do Sul está em todos os nossos pensamentos.  Dia sim. outro também.  Durante a semana passada, uns versos, que eu não sabia de quem, e que não sabia de onde vinham, vieram me visitar, memória é uma coisa chocante. 

Por muitos anos tive o hábito de anotar versos que lia e que achava bonitos.  Na adolescência certamente sem o cuidado que desenvolvi, ao longo dos anos, de anotar o autor, o livro etc.  A frase que me perseguiu foi “os rios são com certeza, o pranto da natureza.”  Bem, chegar à autoria de Olegário Mariano foi fácil.  Bastou abrir aspas, colocar a frase no Google, fechar aspas e procurar.  O problema foi achar a poesia….  Achei.  Tenho em casa a obra completa do poeta.  Mas são dois volumes…  Levei  um tempinho.  Aqui vai para vocês.

 

Acredito que o rio mencionado na poesia seja o Rio Saracuruna aqui no estado do Rio de Janeiro.  Já naquela época, antes de 1931, Mariano nos alertava sobre os maus tratos que este rio recebia.

 

 

 

A Fazenda Santa Cruz

 

Olegário Mariano (1889-1958)

 

 

Por entre a folhagem verde

Que pelas brenhas se perde,

No coração da Fazenda

Dorme a casa de vivenda.

 

Um pátio largo defronte,

Ao fundo azul — o horizonte

A crepitar, esbraseado,

Num crepúsculo doirado.

 

A mata pesada, imensa,

Parece que sonha ou pensa…

Catedral verde que encerra

O culto simples da terra.

 

Abre-se um rio de prata

E, num fragor de cascata,

Borbulha de duna em duna…

É o rio Saracuruna.

 

À tona um enxame treme

Se equilibra e vibra e freme,

E às vezes se desmorona

Como uma coluna, à tona…

 

Umas partem, outras voltam,

As asas doiradas soltam

Em nervosas tarantelas,

Brancas, verdes amarelas.

 

Bate a porteira da entrada.

Sonolenta entra a boiada:

— Pintado!  Moreno!  Audaz!

And à frente, meu rapaz!

 

Um deles, o mais tristonho,

Que é pesado como um sonho,

Olhando o campo tão lindo,

Vai passando, vai mugindo…

 

Entre árvores surge a lua,

Branca e inteiramente nua,

Mostrando, em suaves coleios,

O tronco, os braços, os seios…

 

Sobe e do alto descampado

Espalha um véu de noivado

Com cintilações estranhas

Pela encosta das montanhas…

 

Depois desce ao rio, e o rio

Que rola sereno e frio,

Se enrosca num frenesi:

— Beija-me as águas, Iaci!

 

O Saracuruna sonha…

Na marcha lenta e tristonha,

O rio lembra um vivente

Porque chora, porque sente.

 

Vai sinuoso… Entra a devesa

Levando na correnteza

Troncos, arbustos e ninhos

Que encontrou pelos caminhos.

 

E perde-se longe…  Agora

Nem sinal da água que chora…

 

Os rios são, com certeza,

O pranto da natureza.

 

 

Em: Toda uma vida de poesia — poesias completas, Olegário Mariano, Rio de Janeiro, José Olympio: 1957, volume 1 (1911-1931), pp. 90-92.





A estrela pequenina, soneto de Olegário Mariano

27 04 2023
Ilustração de Jimmy Liao.

 

 

A estrela pequenina

 

Olegário  Mariano

 

Quando à noite olho o céu desta larga janela,

Vejo através da talagarça da neblina,

Uma estrela infantil, inquieta e pequenina,

Que, por ser infantil, me parece mais bela.

 

Ora se esconde, ora ressurge, ora se inclina,

Aumentando o esplendor da sua cidadela.

Devo a Deus que me pôs em contato com ela,

O espírito do céu nessa graça divina.

 

E pergunto a mim mesmo, extasiado de vê-la:

Quem viverá no corpo ideal daquela estrela?

Quem nela se encarnou? Que destino era o seu?

 

Será o Amor que aquele ponto de ouro encerra?

Ou a Saudade que põe os olhos sobre a terra,

Por não  poder voltar à terra onde nasceu?

 

 

Em: Toda uma vida de poesia — poesias completas, Olegário Mariano, Rio de Janeiro, José Olympio: 1957, volume 2 (1932-1955), p. 450.

 

 





“As vozes da Natureza” soneto de Olegário Mariano

10 07 2022

Luz na mata

Alexandre Reider (Brasil, 1973)

óleo sobre tela

As vozes da Natureza

Olegário Mariano

 

As vozes que nos vêm da natureza

Traduzem sempre um mútuo sentimento.

Cantam as frondes pela voz do vento,

Pelo manancial canta a represa.

 

Pelas estrelas canta o firmamento          

Nas suas grandes noites de beleza.

Cada nota a outra nota vive presa,

É um pensamento de outro pensamento.

 

Pelas folhas murmura a voz da estrada,              

Pelos salgueiros canta a água parada

E o amigo sol, apenas se levanta,

 

Jogando o manto de ouro ao céu deserto,

Chama as cigarras todas para perto,

Que é na voz das cigarras que ele canta.

 

Em: Toda uma vida de poesia — poesias completas, Olegário Mariano, Rio de Janeiro, José Olympio: 1957, volume 1 (1911-1931), p. 158.





Andorinha, poesia de Olegário Mariano

28 04 2021
Andorinha

Olegário Mariano

 

A frescura do céu baixou com a tarde calma,

Penetrou pouco a pouco os meus sentidos… Vejo

Em cada boca estuar a volúpia de um beijo,

Arder em cada corpo a chama do desejo

E um frêmito passar vibrando de alma em alma…

 

Voa, chilreando, louca, uma inquieta andorinha.

Cruza o céu, desce  à tona azul da água apressada,

Pousa num fio telegráfico da rua.

— Dá-me um pouco de sol! Eu que não tenho nada,

Preciso de aquecer a minh’alma na tua.

     Andorinha!  Andorinha!

Tens em meu coração tua melhor morada…

Mas és de outro e afinal bem podias ser minha!

 

 

Em: Toda uma vida de poesia — poesias completas, Olegário Mariano, Rio de Janeiro, José Olympio: 1957, volume 2 (1932-1955), p. 433.





O enterro da cigarra, poesia de Olegário Mariano

25 02 2019

 

 

 

cigarra e formigaIlustração de Milo Winter para as Fábulas de Esopo, 1919.

 

 

O enterro da cigarra

 

Olegário Mariano

 

As formigas levavam-na… Chovia…

Era o fim… Triste outono fumarento!..

Perto, uma fonte, em suave movimento,

cantigas de água trêmula carpia.

 

Quando eu a conheci, ela trazia

na voz um triste e doloroso acento.

Era a cigarra de maior talento,

mais cantadeira desta freguesia.

 

Passa o cortejo entre árvores amigas…

Que tristeza nas folhas… Que tristeza!

Que alegria nos olhos das formigas!…

 

Pobre cigarra! Quando te levavam,

enquanto te chorava a Natureza,

tuas irmãs e tua mãe cantavam. . .





Arco-iris, poesia de Olegário Mariano

24 08 2017

 

 

IRACEMA OROSCO FREIRE - O.S.M - JARDIM COM PALMEIRAS . 26 X 39. Assinado no CID.

Jardim com palmeiras, s/d

Iracema Orosco Freire (Brasil, século XX)

óleo sobre madeira, 26 x 39 cm

 

 

Arco-iris

 

Olegário Mariano

 

Choveu tanto esta tarde

Que as árvores estão pingando de contentes.

As crianças pobres, em grande alarde,

Molham os pés nas poças reluzentes.

 

A alegria da luz ainda não veio toda.

Mas há raios de sol brincando nos rosais.

As crianças cantam fazendo roda,

Fazendo roda como tangarás:

 

“Chuva com sol!

Casa a raposa com o rouxinol.”

 

De repente, no céu desfraldado em bandeira,

Quase ao alcance da nossa mão,

O Arco-da-Velha abre na tarde brasileira

A cauda em sete cores, de pavão.

 

 

Em: Toda uma vida de poesia — poesias completas, Olegário Mariano, Rio de Janeiro, José Olympio: 1957, volume 1 (1911-1931), p. 277.





Teia de aranha, poesia de Olegário Mariano

3 03 2017

 

 

gao-qipei-finger-painting-of-a-spider-on-a-web-china-1684Teia de aranha,  1684

Gao Qipei (China, 1660-1734)

Pintura a dedo, sobre o papel

 

 

 

Teia de aranha

 

Olegário Mariano

 

Dizem que traz felicidade a teia

De aranha. Surge um dia, malha a malha.

E a aranha infatigável que trabalha,

Mata os insetos quanto mais se alteia.

 

Sobe ao beiral. É um berço e balanceia

Ao vento que os filetes de oiro espalha.

E ao sol iluminado, que a amortalha,

A trama iluminada se incendeia.

 

Voa a primeira borboleta ebriada.

Vem louca, primavera de ansiedade,

Mas de repente, a asa despedaçada,

 

Rola… É o fim… A tortura da grilheta…

Maldita seja essa felicidade

Que vem da morte de uma borboleta!

 

 

Em: Toda uma vida de poesia — poesias completas, Olegário Mariano, Rio de Janeiro, José Olympio: 1957, volume 1 (1911-1931), p. 117.

 

 





O enamorado das rosas, poesia de Olegário Mariano

23 03 2015

 

 

66f8f6f784f6376200145e95a190d4baDesconheço a autoria dessa ilustração.

 

O enamorado das rosas

Olegário Mariano

 

 

Toda manhã, ao sol, cabelo ao vento,

Ouvindo a água da fonte que murmura,

Rego as minhas roseiras com ternura

Que água lhes dando, dou-lhes força e alento.

 

Cada uma tem um suave movimento

Quando a chamar minha atenção procura.

E mal desabrochada na espessura,

Mandam-me um gesto de agradecimento.

 

Se cultivei amores às mancheias,

Culpa não cabe às minhas mãos piedosas

Que ele passassem para mãos alheias.

 

Hoje, esquecendo ingratidões mesquinhas,

Alimento a ilusão de que essas rosas,

Ao menos essas rosas, sejam minhas.

 

 

Em: Toda uma vida de poesia — poesias completas, Olegário Mariano, Rio de Janeiro, José Olympio: 1957, volume 2 (1932-1955), p. 597.





Os bois, soneto de Olegário Mariano

24 02 2015

 

 

Georgina de Albuquerque,Fazenda com figuras e animais, óleo sobre tela,(c.1952) - 39 x 47 cm.Fazenda com figuras e animais, c. 1952

Georgina de Albuquerque (Brasil, 1885-1962)

óleo sobre tela, 39 x 47 cm

 

 

Os bois

 

Olegário Mariano

 

É dolorosa a angélica atitude

Dos grandes bois lentos a trabalhar…

Sinto neles a força da saúde

A glória de viver para ajudar.

 

Da sua laboriosa juventude

Nada têm, pobres diabos a esperar…

Quem sabe? A vida pode ser que mude…

E eles se põem a olhar o campo, a olhar…

 

Tempo de safra. Brilham canaviais…

Gemem os carros e o rumor se irmana

À alma dos bois que geme muito mais.

 

Pacientemente seguem, dois a dois…

Há uma filosofia muito humana

No mugido e no olhar, tristes, dos bois…

 

 

Em: Toda uma vida de poesia: poesias completas (1911-1955) , Olegário Mariano, Rio de Janeiro, Editora José Olympio: 1957, 1º volume (1911-1931), p. 93

 





Meio-dia, poema de Olegário Mariano

11 01 2009

 

 

Edgard Oehlmeyer(1905-1967)Paisagem,1944osm, 35x44cmPaisagem, 1944

Edgard Oehlmeyer (Brasil, 1905-1967)

óleo sobre madeira, 35 x 44 cm

 

 

 
 Meio-dia

 

                    Olegário Mariano

 

 

Meio dia.  A abrasada calmaria

No amplo manto de fogo a mata esconde,

Na fornalha que envolve o meio-dia

O ouro do sol tempera o ouro da fronde.

 

Pesa o silêncio sobre a frondaria…

Desponta o rio não se sabe donde.

Só, com a voz da mata, em agonia,

Uma cigarra zine e outra responde…

 

É o grito humano que da natureza

Sobe ao tranquilo azul da imensidade,

Ungido de amargura e de incerteza…

 

Querem chorar as árvores sem pranto

E as cigarras ao sol clamam piedade

Para suas irmãs que sofrem tanto!

 

 

 

Do livro: Últimas Cigarras, 1920.

 

 

Olegário Mariano Carneiro da Cunha, (PE1889 —  RJ 1958). Poeta, político e diplomata brasileiro.

 

 Obras:

 

 Angelus (1911)

Sonetos (1921)

Evangelho da sombra e do silêncio (1913)

Água corrente, com uma carta prefácio de Olavo Bilac (1917)

Últimas cigarras (1920)

Castelos na areia (1922)

Cidade maravilhosa (1923)

Bataclan, crônicas em verso (1927)

Canto da minha terra (1931)

Destino (1931)

Poemas de amor e de saudade (1932)

Teatro (1932)

Antologia de tradutores (1932)

Poesias escolhidas (1932)

O amor na poesia brasileira (1933)

Vida Caixa de brinquedos, crônicas em verso (1933)

 

O enamorado da vida, com prefácio de Júlio Dantas (1937)

Abolição da escravatura e os homens do norte, conferência (1939)

Em louvor da língua portuguesa (1940)

A vida que já vivi, memórias (1945)

Quando vem baixando o crepúsculo (1945)

Cantigas de encurtar caminho (1949)

Tangará conta histórias, poesia infantil (1953)

Toda uma vida de poesia, 2 vols. (1957)

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