Resenha: “Os transparentes” de Ondjaki

31 08 2017

 

 

 

 

Fruit for sale, Luanda, Watercolour Painting by Ronan CahillVendendo frutas em Luanda

Ronan Cahill (GB, contemporâneo)

Aquarela

www.ronancahill.com

 

 

Gosto da linguagem poética encontrada nos livros de Ondjaki.  Nossa língua usada por ele se veste de roupa nova com inesperadas figuras de linguagem, sutil delicadeza e delicioso sotaque angolano.   Isso aconteceu tanto nas duas obras que li anteriormente, Os da minha rua e Bom dia, camaradas, como agora na leitura de Os transparentes. É inegável o poder sedutor da voz narrativa do autor.   Além disso, Os transparentes tem dívidas a pagar com a obra de Gabriel Garcia Marquez,  se não ao autor colombiano, certamente ao realismo mágico que caracterizou toda uma geração de escritores sul-americanos.

Esta é a história da sociedade de Luanda pós-independência.  É uma delação. Mostra os erros, excessos e abusos no sistema político implantado. Francamente, não mostra nenhum benefício. Para retratar essa realidade, Ondjaki nos apresenta a um edifício de sete andares, no centro de Luanda, que exerce o papel de espinha dorsal da narrativa, pois é lugar de residência de grande parte dos personagens. A ação se dá dentro e fora do edifício e compreende um grande número de tipos. Muitos deles são  identificados por cognomes ou nomes curiosos como  Amarelinha, AvóKunjikise e MariaComForça.   Alguns o são pelas características de um grupo de pessoas  de uma classe social, como  O Cego, (que representa os deficientes) O VendedorDeConchas (pequeno comerciante)e O Carteiro (faz as vezes daqueles bem intencionados que trabalham para o governo).  Mas o personagem principal leva um nome comum, Odonato, talvez para justificar a consequência incomum de sua condição: começa a ficar transparente.  Essa habilidade, no entanto, só existe para as pessoas simples, sem qualquer poder de afetar ou resolver seus destinos.  Na Luanda pós-independência, as pessoas podem se tornar transparentes pela fome, pobreza e desemprego.

 

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Essa alegoria é um achado.  Faz sentido, em Angola, aqui no Brasil e em muitos outros lugares: os pobres, os desempregados, os sem-teto são todos transparentes, invisíveis para a sociedade.  E Ondjaki aproveita esse viés e nos mostra uma Angola cruel, fruto de um sistema político corrupto.   A objeção que tenho, no entanto, se explica pela simplicidade com que essa mesma sociedade é retratada.  O maniqueísmo, a dualidade sem nuances entre os  bons e pobres desempregados em oposição aos ricos e maus governantes.  Essa simplificação da sociedade achei singela e um tanto pueril. São visões simplificadas de realidades complexas que levam, eventualmente, à imposição de sistemas totalitários de direita ou de esquerda.  Sociedades como a de Angola, Brasil, França, Turquia ou qualquer outro país são muito mais matizadas, heterogêneas.  Na maioria delas grande parte da população está exatamente no meio, sem abraçar qualquer extremo e que mostram atitudes nem boas, nem más Esperava mais desse autor tão sensível, um detalhamento social com maiores nuances.  Nenhum sistema político é totalmente competente ou irrepreensível. Nem tudo é preto no branco,  o cinza, aquele terreno social ambíguo, é complexo, mostrando-se em vários tons, abrigando uma multiplicidade de pontos de vista.

 

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Por isso, quando chegamos ao final e percebemos que a esperança sobrevive, essa esperança não dá alento, porque através do texto, a complexidade social da cidade, do país, não foi retratada.  As respostas parecem fáceis demais, imaturas. Talvez o conflito entre o novo e o tradicional pudesse ser mais trabalhado, retratado contextualizado. Uma vista d’olhos pelas alegorias clássicas onde os seres humanos são retratados com sentimentos ambíguos e por vezes contraditórios poderia ter fortalecido as ideias do autor.

No entanto, não posso deixar de dizer que o livro seduz.  Há mágica e bom humor, mesmo que a teoria por trás esteja arraigada a uma dialética um pouquinho cansada, de classes dominantes contra oprimidos.  Vale a leitura porque, acima de tudo, o texto vem de um autor de qualidade, com enorme habilidade de encontrar na palavra certa, a palavra poética.  Qualquer assunto fica bem tratado pelo hábil Ondjaki.

 

 

NOTA: este blog não está associado a qualquer editora ou livraria, não recebe livros nem qualquer incentivo para a promoção de livros.





Às vezes influenciamos mais do que imaginamos: Roque Santeiro

5 12 2009

Na foto, da esquerda para a direita:  Lima Duarte como Sinhôzinho Malta, Regina Duarte como Viúva Porcina e José Wilker como Roque Santeiro.  Telenovela produzida pela Rede Globo e exibida no Brasil de junho de 1985 a fevereiro de 1986.

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Hoje, sábado chuvoso, resolvi abrir umas pastas com papelada de  minha mãe.  Desde que ela faleceu ando aos pouquinhos selecionando, excluindo e guardando sua papelada.  Mamãe havia sido uma grande fã da telenovela  Roque Santeiro, e guardara provavelmente porque gostava tanto da novela um recorte do jornal português O Jornal ( 10/01/1988)  de quando a novela passava naquele país.  Vou reproduzi-lo aqui para mostrar como essa produção televisiva influenciou o ritmo daquele país.

Como ver “Roque Santeiro”

Muita gente da classe alta e média que deixou de ver telenovelas brasileiras voltou a retomar o hábito com “Roque Santeiro“.  Os efeitos de tal visão só podem ser benéficos, sobretudo em alguns dos nossos políticos e intelectuais, bem precisados de lições do “sentido do ridículo“.  mas como é que alguns dos nossos líderes de opinião ou autarcas podem continuar a fazer determinados discursos, vendo o professor Astromar?

A mensagem que Dias Gomes criou para ser encenada em Asa Branca atravessa o Atlântico e assenta como uma luva a tantos dos nossos amigos e amigas — e, reconheçamo-lo, às vezes a nós próprios.

Mas não é verdade que, em Portugal, alguns dos maiores admiradores de Eça ou Fialho foram precisamente aqueles que eram atingidos pela sátira mordaz?

Não se caia, portanto, no pecado de dissertar sobre esse incomensurável lugar-comum do poder da televisão.

Mas não é que nos cafés portugueses se ouve já rir com essas gargalhadas alarves de Sinhôzinho e se vêem os tiques do seu sacudir de braço?

Roque Santeiro” teve, há tres anos, um enorme impacto no Brasil.  Também em Portugal, mesmo nas grandes cidades, muitos indiferentes das telenovelas querem já chegar mais cedo à casa para não perder as birras da viúva Porcina, os delírios do Beato Salu, as cenas de ciúme de Zé das Medalhas.

Libelo contra o puritanismo cínico (“vícios privados, virtudes públicas“) como se vai confrontar em Portugal a ironia cáustica e divertida de “Roque Santeiro” com uma certa moralidade conservadora e hipócrita que parece crescer neste país de humor tão próprio que fracassa geralmente quando expresso em público?

Neste Portugal onde ainda há poucos dias houve um linxamento popular pelo receio de bruxaria, no país de Santa da Ladeira, do Padre Cruz — com que olhos vêem “Roque Santeiro” esses cidadãos que não são das classes “blasées” alta e média alta?

E já agora perguntamos: “Estou certo ou estou errado?”

Em:  O Jornal, Lisboa, 10 de janeiro de 1988, Página: ESCOLHAS, Coluna: Tendências.

Mercado Roque Santeiro, Luanda.  Foto do blog: Angola Bela,  www.angolabelazebelo.com

NOTA da Peregrina:  Essa novela foi exibida também em Angola, onde sua influência pode ser sentida até hoje, já que deu o nome de Roque Santeiro ao grande mercado ao ar livre em Luanda.





Albinos, osgas no mundo encantado de Agualusa

19 06 2008

Hoje terminei de ler o delicioso livro Manual Prático de Levitação do escritor angolano José Eduardo Agualusa. Este é o segundo livro de sua autoria que leio. Fiquei muito satisfeita em perceber que todo o encanto de linguagem e de temática que haviam me conquistado da primeira vez nas páginas de O vendedor de passados, permaneceu, vingou e cresceu, para minha total gratificação. Gosto de sua prosa, de seu humor, de sua imaginação e da delicadeza com que consegue abordar temas especialmente difíceis entre eles a guerra e suas infinitas e variadas conseqüências.

Diferente do anterior, este é um livro de contos, alguns pequeninos, tamanho bolso, mas que dão conta do recado com grande encanto. Estes contos nos oferecem uma breve viagem por Angola, Brasil e Outros Lugares de Errância. Esta é uma edição para o Brasil, uma coletânea de contos outrora publicados em Portugal e Angola. A eles só foram adicionados três contos inéditos: Os cachorros, O ciclista e Manual Prático de Levitação que dá o nome ao livro. A capa nesta edição da editora Gryphus já é sedutora o suficiente para mim. Trata-se de uma livre adaptação de um quadro do pintor belga René Magritte, cujos trabalhos fizeram parte não só do meu mestrado como do meu curso de doutoramento em história da arte. Nesta criação de Tite Zobaran e Mariane Esberard sobre o quadro Le chef d’oeuvre , duas silhuetas do homem com o chapéu coco se desdobram como se olhassem cada qual para um continente, mas são tão etéreas quanto o céu azul, levemente nublado que as preenche. Os autores foram muito felizes neste arranjo porque não só traz à tona a dualidade dos contos através de Angola e do Brasil como também o espírito onírico de grande parte da prosa Agualusa.

Este é um livro leve, de contos, retratos falados, quase-crônicas que devem ser lidas e apreciadas por todo tipo de leitor. São meras 150 páginas de encantamento. Vale a leitura!