O vento é bom bailador, Baila, baila e assobia. Baila, baila e rodopia E tudo baila em redor. E diz às flores, bailando: – Bailai comigo, bailai! E elas, curvadas, arfando, Começam, débeis, bailando. E suas folhas, tombando, Uma se esfolha, outra cai. E o vento as deixa, abalando, – E lá vai!… O vento é bom bailador, Baila, baila e assobia, Baila, baila e rodopia, E tudo baila em redor. E diz às altas ramadas: Bailai comigo, bailai! E elas sentem-se agarradas Bailam no ar desgrenhadas, Bailam com ele assustadas, Já cansadas, suspirando; E o vento as deixa, abalando, E lá vai!… O vento é bom bailador, Baila, baila e assobia Baila, baila e rodopia, E tudo baila em redor! E diz às folhas caídas: Bailai comigo, bailai! No quieto chão remexidas, As folhas, por ele erguidas, Pobres velhas ressequidas E pendidas como um ai, Bailam, doidas e chorando, E o vento as deixa abalando – E lá vai! O vento é bom bailador, Baila, baila e assobia, Baila, baila e rodopia, E tudo baila em redor! E diz às ondas que rolam: – Bailai comigo, bailai! e as ondas no ar se empolam, Em seus braços nus o enrolam, E batalham, E seus cabelos se espalham Nas mãos do vento, flutuando E o vento as deixa, abalando, E lá vai!… O vento é bom bailador, Baila, baila e assobia, Baila, baila e rodopia, E tudo baila em redor!
Batalha de Roncesvales, em 778: morte de Roland. c. 1455-1460
Jean Fouquet (França, ? – 1481)
Iluminura das Grandes Crônicas da França
Biblioteca Nacional da França, Paris
A Canção de Roland é um poema do século XI, talvez a mais antiga canção épica, que dá início à literatura francesa, mesmo tendo sido, na sua forma original, escrita em uma língua românica. A obra inspirou muitas outras criações sobre a França e circulou por toda a Europa. Ela narra a morte heroica de Roland, no campo de batalha de Roncesvales. A batalha aconteceu no dia 15 de agosto de 778, e Roland, que era sobrinho de Carlos Magno, comandava o exército da retaguarda, formado pelos Doze Pares de França, um grupo lendário de cavaleiros associados a Carlos Magno. Na tropa liderada por Roland os cavaleiros são: Roland, Olivier, Gérin, Gérier, Bérenger, Otto, Samson, Engelier, Ivon, Ivory, Anséïs e Girart de Roussillon. Mas em outros poemas e lendas da época, esses cavaleiros poderiam ser outros. Como há muitas versões da Canção de Roland, todas em manuscritos que deram por sua vez origem a outras tantas lendas, é difícil de precisar exatamente quem fazia parte desse exército ou aqueles cuja existência são pura lenda.
Roland morreu numa batalha na região basca da França. A tropa vinha da Península Ibérica onde lutava contra os sarracenos. Dependendo da versão os autores do massacre de Roncesvales, podem ser tanto bascos quanto muçulmanos. Sabe-se que essa batalha realmente ocorreu, está historicamente comprovada e em espírito pertence ao contexto das Cruzadas e da Reconquista cristã da Península Ibérica.
A morte de Roland, 1462
Iluminura em de manuscrito
Autor desconhecido
Bruges, Flandres [Bélgica]
Uma coisa interessante é que a Canção de Roland teve grande popularidade no Brasil no século XIX. Isso graças a um livro de um médico português, Jerónimo de Moreira Carvalho, que escreveu em 1737, portanto no século XVIII, uma continuação da Canção de Roland: Segunda parte da História do Imperador Carlos Magno e dos doze pares de França. Esse romance de cavalaria se tornou leitura de grande sucesso no Brasil do século XIX. Aliás, esse é um de dois portugueses que escreveram uma continuação de história de Carlos Magno. O outro, História nova do Imperador Carlos Magno, e dos doze pares de Françade José Alberto Rodrigues, impressa em Lisboa em 1742. Essa no entanto, não foi popular no Brasil.
Perdi recentemente cinquenta reais de uma velha maneira, num conto do vigário. Como o engodo foi no quarteirão em que moro, a cores e viva voz, cheguei ao meu edifício comentando com o porteiro chefe que havia sido lesada por um bom vendedor. Ele é muito bom, competente, morando no Rio de Janeiro há mais de 25 anos, vindo da Paraíba. No entanto, a expressão ‘conto do vigário ele desconhecia. Expliquei. Mas com a explicação, história perde muito da graça. Minha postura estava entre a pessoa que ri de si mesma e a vergonha de considerando-me tão ‘experiente’ que jamais cairia numa bobagem tão óbvia.
Em casa, procurei a origem da expressão ‘conto do vigário’. Há muitas. Muitas mesmo. Minha pesquisa me deixou com uma única certeza a expressão já estava em uso, no Brasil, no inicio do século XIX. Mas aparentemente já estava em existência em Portugal. Nessa aventura literária, conheci o conto de Fernando Pessoa, Um grande português. Eu não conhecia nenhum conto do poeta português. Continuo o considerando um excelente poeta, entre os maiores da nossa língua. Nesse conto Pessoa nos dá outra possibilidade para a expressão. Aqui está para seu deleite.
Um grande português
Fernando Pessoa
Vivia há já não poucos anos, algures, num concelho do Ribatejo, um pequeno lavrador, e negociante de gado, chamado Manuel Peres Vigário.
Da sua qualidade, como diriam os psicólogos práticos, falará o bastante a circunstância que dá princípio a esta narrativa.
Chegou uma vez ao pé dele certo fabricante ilegal de notas falsas, e disse-lhe: «Sr. Vigário, tenho aqui umas notazinhas de cem mil réis que me falta passar.
O senhor quer? Largo-lhas por vinte mil réis cada uma.». «Deixa ver», disse o Vigário; e depois, reparando logo que eram imperfeitíssimas, rejeitou-as: «Para que quero eu isso?», disse; «isso nem a cegos se passa.» O outro, porém, insistiu; Vigário cedeu um pouco regateando; por fim fez-se negócio de vinte notas, a dez mil réis cada uma.
Sucedeu que dali a dias tinha o Vigário que pagar a uns irmãos, negociantes de gado como ele, a diferença de uma conta, no valor certo de um conto de réis.
No primeiro dia da feira, em a qual se deveria efectuar o pagamento, estavam os dois irmãos jantando numa taberna escura da localidade, quando surgiu pela porta, cambaleando de bêbado, o Manuel Peres Vigário. Sentou-se à mesa deles, e pediu vinho. Daí a um tempo, depois de vária conversa, pouco inteligível da sua parte, lembrou que tinha que pagar-lhes. E, puxando da carteira, perguntou se se importavam de receber tudo em notas de cinquenta mil réis. Eles disseram que não, e, como a carteira nesse momento se entreabrisse, o mais vigilante dos dois chamou, com um olhar rápido, a atenção do irmão para as notas, que se via que eram de cem.
Houve então a troca de outro olhar.
O Manuel Peres, com lentidão, contou tremulamente vinte notas, que entregou. Um dos irmãos guardou-as logo, tendo-as visto contar, nem se perdeu em olhar mais para elas. O Vigário continuou a conversa, e, várias vezes, pediu e bebeu mais vinho.
Depois, por natural efeito da bebedeira progressiva, disse que queria ter um recibo. Não era uso, mas nenhum dos irmãos fez questão. Ditava ele o recibo,disse, pois queria as cousas todas certas. E ditou o recibo — um recibo de bêbado, redundante e absurdo: de como em tal dia, a tais horas, na taberna de fulano, e «estando nós a jantar» (e por ali fora com toda a prolixidade frouxa do bêbado. . .), tinham eles recebido de Manuel Peres Vigário, do lugar de qualquer coisa, em pagamento de não sei quê, a quantia de um conto de réis em notas de cinquenta mil réis. O recibo foi datado, foi selado, foi assinado. O Vigário meteu-o na carteira, demorou-se mais um pouco, bebeu ainda mais vinho, e daí a um tempo foi-se embora.
Quando, no próprio dia ou no outro, houve ocasião de se trocar a primeira nota, o que ia a recebê-la devolveu-a logo, por escarradamente falsa, e o mesmo fez à segunda e à terceira. . . E os irmãos, olhando então verdadeiramente para as notas, viram que nem a cegos se poderiam passar. Queixaram-se à polícia, e foi chamado o Manuel Peres, que, ouvindo atónito o caso, ergueu as mãos ao céu em graças da bebedeira providencial que o havia colhido no dia do pagamento. Sem isso, disse, talvez, embora inocente, estivesse perdido.
Se não fosse ela, explicou, nem pediria recibo, nem com certeza o pediria como aquele que tinha, e apresentou, assinado pelos dois irmãos, e que provava bem que tinha feito o pagamento em notas de cinquenta mil réis. «E se eu tivesse pago em notas de cem», rematou o Vigário, «nem eu estava tão bêbado que pagasse vinte, como estes senhores dizem que têm, nem muito menos eles, que são homens honrados, mas receberiam.» E, como era de justiça, foi mandado em paz.
O caso, porém, não pôde ficar secreto; pouco a pouco se espalhou. E a história do «conto de réis do Manuel Vigário» passou, abreviada, para a imortalidade quotidiana, esquecida já da sua origem. Os imperfeitíssimos imitadores, pessoais como políticos, do mestre ribatejano nunca chegaram, que eu saiba, a qualquer simulacro digno do estratagema exemplar. Por isso é com ternura que relembro o feito deste grande português, e me figuro, em devaneio, que, se há um céu para os hábeis, como constou que o havia para os bons, ali lhe não deve ter faltado o acolhimento dos próprios grandes mestres da Realidade — nem um leve brilho de olhos de Macchiavelli ou Guicciardini, nem um sorriso momentâneo de George Savile, Marquês de Halifax.
“na hora de pôr a mesa, éramos cinco: o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs e eu. depois, a minha irmã mais velha casou-se. depois, a minha irmã mais nova casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje, na hora de pôr a mesa, somos cinco, menos a minha irmã mais velha que está na casa dela, menos a minha irmã mais nova que está na casa dela, menos o meu pai, menos a minha mãe viúva. cada um deles é um lugar vazio nesta mesa onde como sozinho. mas irão estar sempre aqui. na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco. enquanto um de nós estiver vivo, seremos sempre cinco”
Biografias de intelectuais famosos, pensadores, podem facilmente se tornar narrativas que se perdem nas explicações teóricas sobre as contribuições dos retratados. Essas podem desinteressar o leitor comum, nem sempre motivado para aulas teóricas na leitura de entretenimento. Ou, na tentativa de agradar a maior público esses livros podem pecar também ao passarem por cima de teoria representativa da contribuição dos biografados no intuito do texto ser melhor digerido pelo público não especializado. Esse não é o caso de O segredo de Espinosa, de José Rodrigues dos Santos [Planeta: 2023]. Esse é um livro muito bem escrito, cobrindo a vida do filósofo Baruch Espinosa, nascido na Holanda, judeu marrano de origem portuguesa. que trata por meio de diálogos, uma boa parte dos posicionamentos de Espinoza, fazendo-os acessíveis ao leitor sem entediá-lo.
Essas ponderações são ainda mais pertinentes quando se trata de uma obra que traz ao leitor o papel da religião no dia a dia, assim como na vida do Estado. Espinosa foi um dos grandes defensores da separação entre Igreja e Estado. Levando a racionalidade de Descartes a nível não imaginado anteriormente. Considerado o filósofo que abre a era da modernidade nos estudos filosóficos, ele está hoje entre os filósofos mais influentes do mundo atual. Toda essa importância poderia tornar O segredo de Espinosa difícil de ler, difícil de interpretar, mas José Rodrigues dos Santos fez um excelente trabalho cobrindo desde a infância de Espinosa até seus últimos dias.
Além de ser fiel aos argumentos de Baruch Espinosa, José Rodrigues dos Santos presenteia o leitor com deliciosas vinhetas da vida na Holanda do século XVII, historicamente confirmadas, assim como eloquentes cenas da política local, da população em revolta. Não se recusa tampouco a delinear com precisão as questões religiosas e culturais complexas da época.
“Ao longo da Breestraat viam-se as lojas e os armazéns a exibirem os produtos mais variados; muitos provenientes de empresas neerlandesas como a Companhia das Índias Orientais e a Companhia das Índias Ocidentais, outros de empresas portuguesas como a Carreira das Índias e a Companhia Geral do Comércio do Brasil, outros ainda de navios oriundos de Veneza, de Antuérpia, de Hamburgo ou de outros pontos, incluindo saques efetuados por corsários marroquinos. As prateleiras enchiam-se assim de porcelanas de Cantão e de Nuremberg, tapetes de Esmirna, tulipas de Constantinopla, sedas de Bombaim e de Lyon, pimenta das Molucas, sal de Setúbal, linho branco de Haarlem, lã de Málaga, faiança de Delft, sumagre do Porto, açúcar do Recife, madeira de Bjørgvin, tabaco de Curaçau, marfim de Mina, azeite de Faro. Havia ali de tudo e de toda a parte, como se o bairro português de Amsterdã fosse o bazar dos bazares, o mercado do mundo.“
José Rodrigues dos Santos
Esse é um romance histórico, uma biografia cuidadosamente construída, que explora a maneira como Espinosa desenvolveu levou adiante as ideias de Descartes. A obra afirma a retidão de seu caráter, expõe a maneira como as publicações se espalhavam no século XVII, e trabalha a narrativa de tal forma que o leitor não deseja parar de ler. Foi um presente conhecer esse autor português. Irei procurar outras de suas obras. Recomendo sem qualquer restrição, foi para minha lista de favoritos.
NOTA: este blog não está associado a qualquer editora ou livraria, não recebe livros nem incentivos para a promoção de livros.