O papel do comércio, Francis Bacon

29 07 2017

 

 

Doceria Anton_Pieck_BakkerijDoceria, ilustração de Anton Pieck.

 

 

“Os comerciantes são a veia porta do corpo da nação. Quando não ocorre florescimento comercial, embora o corpo tenha membros fortes, o sistema circulatório carecerá de sangue e o corpo como um todo apresentará pouca resistência: haverá subnutrição. Impor taxas e tributos sobre essa classe raramente produz  proveitosos do ponto de vista da realeza porque aquilo que o rei pode ganhar sobre uma centena de indivíduos perde no país inteiro que empobrece, porque a massa dos impostos só é possível de crescer proporcionalmente à massa de fundos empregados no comércio.”

 

Em: Da soberania e Da arte de comandar, Francis Bacon, Ensaios, tradução Edson Bini, São Paulo, Edipro: 2015, 2ª edição, p.73





Ormuz, o início da viagem de Marco Polo

23 08 2014

 

 

 

Marco Polo at the gates of Hormuz City(maybe) Livres des Merveilles, Snark, Bibliotheque NationaleMarco Polo às portas da Cidade de Ormuz [há dúvidas sobre essa identificação].Livres des Merveilles, Snark, Bibliothèque Nationale, Paris

 

Há dois anos leio de vez em quando uma passagem do livro Marco Polo: de Veneza a Xanadu, Laurence Bergreen.  Isso depois de já ter lido o livro inteiro.  Na primeira leitura fui marcando as cidades pelas quais passava Marco Polo. [Quem lá na companhia americana 3M inventou as Post-it notes ™, na minha opinião tem entrada garantida no céu…  Que delícia poder marcar um livro todo sem desfigurá-lo!] Bem, fui marcando cada passo da viagem de Marco Polo, para procurar na internet o que se sabe desses locais e se existem construções da época [século XIII].  Sei que isso pode parecer coisa de quem não tem o que fazer, e provavelmente é.  Mas para quem gosta de história isso é uma fonte incrível de entretenimento, muito mais atraente do que grande parte dos programas de televisão, do que muito romance na lista dos mais vendidos.  Com um pouquinho de informação, com o Google Maps, e fotos, com acesso a bibliotecas inteiras na rede, a imaginação se solta e com tempo e tenacidade preencho muitos dos espaços que desapareceram apagados pelas pegadas de invasões, guerras, pestes, e todo tipo de calamidade que já nos atingiu e continuará atingindo. Há muito pouca informação segura ainda sobre esses locais, principalmente em regiões como a Pérsia (maior parte do Irã hoje) que se encontra em grande turbulência faz muito tempo.  Sítios arqueológicos nem sempre permaneceram abertos através dos diversos confrontos bélicos e corremos o risco de perder muito do que ainda poderia ser resgatado. Mesmo assim essa viagem eletrônica pelo mundo de Marco Polo tem sido fascinante.

 

640px-Braun_Hormus_UBHDOrmus” (Braun e Hogenberg. “Civitates Orbis Terrarum“, 1572)

 

Ormuz é um dos locais — visitado por Marco Polo no início de sua viagem — que encontra numerosas referências na rede.  Tem mais: muitas dessas referências são em português.  Isso porque os portugueses estiveram por lá em 1507, dominaram a cidade, e tentaram construir o Forte de Nossa Senhora da Vitória, mas foram surpreendidos pela deserção de três capitães.  Os portugueses tentavam colocar o cabresto no comércio internacional que obrigatoriamente passava por essa ilha na entrada do Golfo Pérsico. Mas  inicialmente não foram bem sucedidos.  Só em 1515, Afonso de Albuquerque, já governador da Índia, estabeleceu a suserania de Ormuz submetida ao governo da Índia.  A Ormuz que atraía os portugueses não era mais aquela visitada por Marco Polo, pois os portugueses estiveram por lá trezentos anos depois da viagem do mercador italiano, mas desde o período medieval que o local era de grande importância para o comércio de produtos exóticos vindos do Oriente.

[À parte: toda vez que leio sobre as explorações portuguesas na Era dos Descobrimentos sinto profunda admiração pelos homens que se atreveram a explorar o desconhecido. Na Era  dos Descobrimentos, a população de toda a Europa é estimada em 60 milhões e a população total de Portugal entre 1400 e 1500 é estimada em um milhão de pessoas.  Um país tão pequenino, com uma população ínfima [1/60 de toda a Europa] que se jogava em frágeis embarcações, sair pelo mundo, conquistando, brigando, construindo, lutando, guerreando, tendo o atrevimento de desbancar governos locais, já estabelecidos, tem algo de mágico, do mitológico, do conhecido enredo do arquétipo do “pequeno contra o gigante”, que me comove.  Os obstáculos eram enormes, as dificuldades aterrorizantes, as doenças intermitentes, o desconhecido era abismal e assim mesmo, espada em punho, foram aos muitos cantos do mundo. É muito impressionante.] Para ter uma ideia dos perigos enfrentados em Ormuz, pelo viajante no século XIII,  fica aqui abaixo uma citação do livro de Laurence Bergreen, com citações diretas da descrição original de Marco Polo.

 

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Para o grupo de viajantes, a visão de tanta água após passarem meses no deserto os fez recordar Veneza e o Mar Adriático, porém, observando-a melhor, Ormuz não era exatamente a joia que tinham  avistado de longe. Em primeiro lugar, “se um mercador aqui morre, o rei confisca todos os seus bens”.  O clima também trazia riscos aos viajantes desprevenidos. O vento do deserto circundante podia ser “tão sufocantemente quente que seria mortal se, tão logo percebessem sua chegada, os homens não mergulhassem na água até o pescoço para escapar do calor”.

Enquanto estiveram em Ormuz, Marco ficou horrorizado ao saber que o vento mortal apanhara de surpresa  pelo menos 6 mil soldados (5 mil a pé, o restante a cavalo) no deserto e sufocara “todos eles, de sorte que ninguém sobreviveu para levar a notícia ao senhor”. Com o tempo, os “homens de Ormuz”, souberam da morte em massa e decidiram enterrar os corpos para evitar infecções, mas “quando os suspenderam pelos braços para levá-los às covas, eles [os cadáveres] estavam tão ressecados pelo calor que os braços caíram do tronco, de forma que eles [os homens] tiveram que fazer as covas ao lado dos cadáveres e empurrá-los.”

 

Em: Marco Polo: de Veneza a Xanadu, Laurence Bergreen, tradução Cristina Cavalcanti, Rio de Janeiro, Objetiva: 2009, pp 68-69.

 





Serviço, uma arte em extinção no Rio de Janeiro

22 05 2014

 

 

Robin Cheers (EUA) browsing_the_stacks, 2007

Passando os olhos nas estantes, 2001

Robin Cheers (EUA, contemporânea)

www.robincheers.com

 

Na semana  passada uma amiga me recomendou a leitura do livro de Ana Miranda, O peso da luz:  Einstein no Ceará, publicado em 2013. Ela o estava lendo e gostando.  Saí do nosso encontro na sexta-feira e fui diretamente à uma pequena mas excelente livraria em um shopping ao lado de casa.  Eles não tinham e nunca tinham ouvido falar dessa publicação.  Esta é a minha livraria favorita por aqui, mas reconheço que é muito pequenina. O sistema eletrônico deles não é ligado ao mundo apesar de dar a impressão oposta por ter algumas telas de computação à vista.  Uma busca no meu celular mostrou que o livro havia sido publicado por uma pequena editora: Armazém da Cultura.  Nesta livraria ninguém se ofereceu para que eu encomendasse o livro através deles. Estranhei porque sou conhecida no local, freguesa antiga. Saí desapontada e me perguntando por que não havia interesse deles em satisfazer esta cliente?

Sábado pela manhã, saí para um passeio a pé e um almoço leve em uma livraria próxima, aqui na zona sul do Rio de Janeiro, no final do Leblon. Esta livraria é bem grande, tem um café-restaurante ao fundo onde sempre encontro amigos. Em geral é uma livraria bem badalada pela inteligência carioca frequentadora de noites de autógrafos diversas.  Lá, a mesma cena se repetiu. Não sabiam da existência do livro, não tinham ideia do que se tratava e, sinceramente, pela linguagem corporal não estavam interessados em saber do meu problema em localizar o livro. Ainda sugeriram que eu pudesse estar com nome do autor errado, porque o único livro recente de Ana Miranda era Semíramis. Desinteressados de verem o livro no meu celular eles trataram de me despachar o mais rápido possível. Esta livraria também não estava conectada à internet e não podia fazer uma busca para descobrir detalhes do livro. Rapidamente a atendente detrás do balcão de vendas para onde eu havia dirigido as minhas perguntas, se virou para o cliente seguinte, ignorando a minha frustração, incapaz de oferecer seus serviços para me ajudar nessa tarefa.

 

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Corri então a outra livraria, a dois quarteirões dali, no mesmo bairro. Essa é parte de uma cadeia grande. Situação semelhante.  Mas devo dizer, para ser justa, o tratamento foi muito mais afável e com maior calor humano.  Os empregados pelo menos fizeram um esforço para amenizar a minha frustração.  Haviam sido, obviamente, treinados para tentarem satisfazer o cliente.

Não entendo do que está por trás de uma livraria.  Não é meu papel saber as limitações de uma livraria, de seus problemas em representar uma editora. Isso é papel para o proprietário do estabelecimento.  O meu é vir com o dinheiro e comprar aquilo que eles aparentemente se propõem a vender.  Não acreditei que eu não pudesse achar um livro de uma escritora brasileira do calibre de Ana Miranda, em todas as livrarias do Rio de Janeiro.  Mas este sendo o caso, não entendo os motivos que fizeram com que não houvesse interesse em preencher o meu pedido em qualquer uma das três livrarias visitadas. Não se tratava de um “João da Silva” que publicou seu livro na impressora de casa.

Acabei achando o livro, em uma livraria bem maior.  Esta tem o catálogo online, possui um acervo generoso e conexões no Brasil inteiro. Entendo que algumas livrarias não tenham livros de editoras menores ou menos conhecidas. Principalmente livrarias independentes. Mas me aborrece ver que ninguém teve o interesse de me SERVIR, ou seja de achar para mim aquilo que eu procurava. Nenhuma  das três se ofereceu para que eu encomendasse com elas a compra do livro.  Francamente esse comportamento não acontece em uma livraria no exterior.

Falta aqui aquele senso de que custa muito dinheiro ao proprietário do estabelecimento trazer o cliente à sua porta. É dinheiro investido em anúncios, em manter a loja aberta, os empregados trabalhando; investimento na página da internet, na página das redes sociais [mesmo que as redes sociais sejam gratuitas, há que colocar uma pessoa trabalhando nessas páginas] e até mesmo o custo do aluguel numa das áreas mais nobres da cidade. Tudo isso é custo.  E é alto. Quando aquele cliente entra na loja precisa sair satisfeito com o tratamento que teve. Todas três livrarias foram reprovadas porque nenhuma delas ofereceu uma solução, criativa ou não, para esta cliente que queria comprar.

Em outros países um telefonema para a competição estaria em ordem.  A livraria reservaria o livro lá no outro estabelecimento, que compete com ela. Ou pediria  a alguém, um empregado, que fosse à livraria competidora e comprasse o livro. Sim, eles não teriam o lucro imediato, mas teriam a minha fidelidade.  Em outros países, não deixar o cliente sair sem uma solução para o seu problema é o lema do comércio. “Pode deixar, teremos o volume aqui, amanhã de manhã“, ou “a Sra. fique tranquila, levamos o volume até sua casa amanhã“.  Ao invés de criticar em um tom irônico o cliente que deseja o livro de uma pequena editora, como me aconteceu na segunda parada, o vendedor diria: “interessante esta editora, precisaremos ver que mais podem ter em seu catálogo…”  Mesmo que seja simplesmente por educação. Em outros lugares do mundo, já tive livros entregues no meu hotel, até mesmo na próxima cidade da viagem… É essa a atenção de que o cliente precisa. Enfim o cliente é rei, ele manda, porque é ele quem compra. Sem o consumidor não há comércio. Depois, no futuro, essas livrarias irão reclamar, dizer que as vendas online as obrigaram a fechar.  Dirão que não aguentaram porque a competição era muito grande. Mas o que faltou foi a consciência de que o cliente que entrou naquele estabelecimento precisa sair satisfeito, não importa a dificuldade, o exotismo de sua necessidade.

Ainda não comecei a ler o livro de Ana Miranda. Ele se encontra entre outros cinco livros comprados na mesma tarde, na livraria em que o encontrei. Estão empilhados porque compro muitos livros. Repousam sobre a mesa de trabalho, ao lado do computador.





Veneza do século XIII: os primórdios do capitalismo e da globalização

9 01 2014

Marco Polo sailing from Venice in 1271, detail from an illuminated manuscript, c. 15th century; in the collection of the Bodleian Library, Oxford, Eng.Marco Polo saindo em navio de Veneza, em 1271.  Detalhe de iluminura de um manuscrito do século XV, na Biblioteca Bodleian, na Universidade de Oxford.

QUASE TODOS em Veneza dedicavam-se ao comércio. As viúvas investiam em atividades mercantis e qualquer jovem desprovido de meios podia intitular-se “mercador” simplesmente aventurando-se no negócio. Apesar dos riscos enormes, riquezas inimagináveis atraíam os mais arrojados, os empreendedores e os bobos. Fortunas surgiam e evaporavam da noite para o dia, e muitas fortunas familiares venezianas provinham do êxito de uma única expedição comercial a Constantinopla.

Os mercadores venezianos desenvolveram todo tipo de estratagema para lidar com mudanças bruscas em seu meio de vida, o comércio mundial. Na ausência de padrões para o câmbio, as diversas moedas em uso eram um pesadelo na hora da conversão. O Império Bizantino tinha os seus besantes, as terras árabes seus dracmas, Florença seus florins. Confiando na proporção entre ouro e prata numa moeda para determinar o seu valor, Veneza tentava acomodar todas. Mercadores como os Polo evitavam o difícil sistema monetário, com sua inevitável confusão e depreciação e negociavam, com gemas tais como rubis, safiras e pérolas.

Para resolver suas necessidades financeiras sofisticadas e exóticas a cidade desenvolveu o sistema bancário mais avançado na Europa Ocidental. Bancos de depósito do continente são originários de Veneza. Em 1156, a República de Veneza tornou-se o primeiro estado desde a Antiguidade a obter um empréstimo público. Ela também emitiu as primeiras leis bancárias da Europa, com o fim de regulamentar a nascente indústria bancária. Como resultado dessas inovações, Veneza dispunha das mais avançadas práticas de negócios da Europa.

Veneza adaptou os contratos romanos às necessidades dos mercadores que negociavam com o Oriente. Sofisticados contratos marítimos de empréstimo ou de troca estipulavam as obrigações entre armadores e mercadores inclusive faziam seguro – obrigatório em Veneza a partir de 1253. O tipo de acordo mais comum entre os mercadores era o comenda ou, no dialeto veneziano, collegantia, um contrato baseado em modelos antigos. Numa tradução aproximada, o termo significava “negócio de risco” e, mais que um conjunto de princípios legais consistentes, era um reflexo dos costumes prevalecentes no comércio. Apesar de esses contratos do século XII e XIII pareceram antiquados suas exigências de precisão contável são surpreendentemente modernas. Eles exprimiram e respaldaram uma forma rudimentar de capitalismo muito antes do surgimento do conceito.

Para os venezianos, o mundo era assombrosamente moderno de outra maneira: ele era “plano”, isto é, mundialmente ligado para além das fronteiras e dos limites, fossem estes naturais ou artificiais. Eles viam o mundo como uma rede de rotas comerciais e oportunidades constantemente em mutação que se estendiam por terra e mar. Por barco ou em caravanas, os mercadores venezianos viajavam aos quatro cantos do mundo em busca de especiarias, gemas e tecidos valiosos. Graças à sua iniciativa, minerais, sal, cera, remédios, cânfora, goma-arábica, mirra, sândalo, canela, noz-moscada, uvas, figos, romãs, tecidos (especialmente seda), peles, armas, marfim, lã, penas de avestruz e papagaio, pérolas, ferro, cobre, pó de ouro, barras de ouro,  barras de prata e escravos asiáticos chegavam à Veneza, provenientes da África, do Oriente Médio e da Europa Ocidental, por meio de complexas rotas comerciais.

Itens ainda mais exóticos chegavam à cidade a bordo de galés estrangeiras. Imensas colunas de mármores, pedestais, painéis e blocos, arrancados de templos ou edifícios em ruínas em Constantinopla ou alguma cidade grega ou egípcia, amontoavam-se no cais. Esses restos da antiguidade, lápides de civilizações mortas ou moribundas, terminavam em uma esquina qualquer da Piazza San Marco, ou na fachada de um palazzo ostentoso habitado por algum duque ou rico mercador.

A diversidade de mercadorias levou Shakespeare a comentar por meio da personagem Antônio em O Mercador de Veneza, que “o lucro e o comércio da cidade/dependem de todas as nações”. O comércio veneziano era sinônimo de globalização – outro conceito embrionário da época. Para estender seu alcance, os venezianos formavam parcerias com governos e mercadores distantes que desconsideravam as divisões raciais e religiosas. Árabes, judeus, turcos, gregos e, mais tarde, mongóis faziam parcerias comerciais com Veneza, mesmo quando pareciam ser seus inimigos políticos…

Em: Marco Polo: de Veneza a Xanadu, Laurence Bergreen, tradução Cristina Cavalcanti, Rio de Janeiro, Objetiva: 2009, pp 28-30.