Amor, texto de Mário Lúcio Sousa

30 07 2020

 

 

407abcb8000b4f7c424249bc1177b938Ignoro a autoria desta ilustração.

 

“Parecia praga e era. O Língua foi atraído por outra mulher. Era a mulher mais preta que ele alguma vez vira. E isso intrigou-o. Tão preta era a mulher que parecia não querer parecer. E foi o que o Língua lhe disse: Você é muito preta mulher. E ela, toda vespertina, correspondeu como convinha: Ainda só viu o que os olhos alcançam, negro, devo ter partes ainda mais escuras. E o Língua caiu babado nos braços dela. Durante três anos não largou o rabo da saia da Preta nem para ir trabalhar. Era mesmo para crer que só agora a bruxaria da outra mulher andava a surtir efeito. O Língua não estava a perceber, mas virou o homem mais submisso da ilha. O trabalho era então satisfazes os mais extravagantes caprichos da Preta, de tal modo que ele virou ao mesmo tempo angustiado e feliz, azarado e contente, imprudente e lúcido, renegado e pesaroso, como todo o homem arrebatado. Pior, não conseguia sair dali.  Se a paixão tem fogo, o corpo tem lume. Mas, um dia, ao olhar para um caco de espelho, teve um espanto tão grande que, então, para salvar a pele, ou o que restava, vestiu-se, pegou nas sandálias e desapareceu.  Como nunca ia sem dizer adeus, assobiou e, sem virar a cara, acenou. Nunca soube se foi correspondido. Mas dali saiu com a determinação de nunca mais voltar a cair nos braços de uma mulher.”

 

Em: Biografia do Língua, Mário Lúcio Sousa, Alfragide, Don Quixote: 2015, p. 264





Minutos de sabedoria: Mário Lúcio Sousa

24 07 2020

 

 

 

Jennifer Young, (EUA), Leiura de verão, osm, 15x15cmLeitura de verão

Jennifer Young, (EUA, contemporânea)

óleo sobre madeira, 15 x 15cm

 

“Na ânsia de termos aquilo que desejamos, às vezes, acabamos por atrair aquilo que não queremos.”

 

Mário Lúcio Sousa

 

Mário Lúcio Sousa (Cabo Verde)Mário Lúcio Sousa (1964)

 





O que é cultura, fragmento de Mário Lúcio Sousa

29 10 2016

 

 

 

bernardo-amiconeJovem lendo na carta: “Meu coração é onde o verdadeiro amor reside, eu irei tecer uma cama de rosas par você.”

Bernardo Amiconi (Itália, ? — 1879)

óleo sobre  tela, 60 x 50 cm

 

 

“Cultura é o que diferencia os seres humanos das bestas. Então, não há nada que o humano faça, como ser social, que não tenha um cunho cultural. A cultura não deve ser vista somente como entretenimento, manifestação artística. É a forma de pensar, de ver o mundo, de se relacionar com Deus, com os Cosmos, com a Natureza, com o outro. Dentro da cultura há economia, turismo, saúde, educação. Em tudo o que existe colocamos a cultura, porque damos o seu valor.”

 

Em: “Conte algo que não sei“, entrevista com Mário Lúcio Sousa, O Globo, quarta-feira, 26 de outubro de 2016, 1º caderno, página 2.

Salvar





Uma seleção: melhores frases de abertura de romance em língua portuguesa

6 06 2012

Habitante de Patópolis, lendo na biblioteca, ilustração Walt Disney.

No dia 29 de abril publiquei aqui uma listagem, por voto popular das melhores frases de abertura de romances em lingua inglesa, como saiu publicado no jornal The Guardian:

As melhores frases de abertura de romance em língua portuguesa? Dê o seu palpite!

Logo amigos e conhecidos do blog deram alguns palpites e hoje posto essa listagem.  Gostaria de ressaltar, no entanto, que os autores teriam que ser de língua portuguesa.  Alguns se lembraram de obras de Camus e de Flaubert.  Já mais alguém reclamou da lista original não incluir a frase de abertura de Moby Dick, de Herman Melville: “Chamai-me Ismael“.  Mas a brincadeira foi justamente para livros na nossa língua para que pensássemos naquilo que lemos de literatura em português.  A grande surpresa foi o número de autores não brasileiros listados e sobretudo a popularidade dos autores africanos na nossa pesquisa que não tem nada de científica.  Então sem mais delongas, aqui vão as sugestões, lembrando que estarei sempre à disposição de aumentar essa lista a qualquer momento.

Alice sugeriu:

As palavras, como os seres vivos, nascem de vocábulos anteriores, desenvolvem-se e fatalmente morrem.

Em: Milagrário Pessoal, de José Eduardo Agualusa.

A minha vida se resume a uma larga e sinuosa curva para o amor”.

Em O Planalto e a Estepe, de Pepetela

Elizete sugeriu:

‎”Quem és tu que danças descalço na noite escura?”

Em: Não Te Deixarei Morrer David Crockett, de Miguel Souza Tavares.

‎” Não basta morrer para conhecer o sorriso de Deus – mesmo que, como foi o meu caso, se tenha vivido abismada nele uma vida inteira.”

Em: Fazes-me Falta de Inês Pedrosa.

Hira sugeriu:

A morte é como o umbigo: o quanto nela existe é a sua cicatriz, a lembrança de uma anterior existência.

Em: Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, de Mia Couto

Ladyce sugeriu:

 “Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte”.

Em:  Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis.

“Embora os descaminhos futuros, Sandro Lanari nasceu pintor.”

Em: O pintor de retratos, Luiz Antonio de Assis Brasil

Luca sugeriu:

Tudo no mundo começou com um sim“.

Em: A hora da estrela, de Clarice Lispector

Marilda sugeriu:

“Era uma noite fria de lua cheia.”

Em: O Continente, de Érico Veríssimo.

Nonada”.

Em: Grande Sertão:Veredas, de Guimarães Rosa.

Nanci

A TUA CABEÇA RODOU na direcção do meu rosto, os teus olhos fecharam-se e a tua boca avançou para a minha, através de uma lenta rota de luz, risos e lágrimas”.  Em: Nas tuas mãos, de Inês Pedrosa

Ricardo, do blog O Último Abencerragem:

Arcóbriga e Meríbriga são cidades mortas desde que os habitantes foram obrigados a descer para o vale”.  Em: A Voz dos Deuses — Memórias de um Companheiro de Armas de Viriato, de João Aguiar.

“(Sei que andas por aí, oiço os teus passos em certas noites, quando me esqueço e fecho as portas começas a raspar devagarinho, às vezes rosnas, posso mesmo jurar que já te ouvi a uivar, cá em casa dizem que é o vento, eu sei que és tu, os cães também regressam, sei muito bem que andas por aí.)” Em: Cão como Nós, de Manuel Alegre.

Sempre que do portão se avizinhava mero turista ou descobridor de mistérios e o sino ficava longo tempo a retinir pela ribeira, ouviam-se pesados bate-lajedos de caseiro em movimento”. Em: A Torre de Barbela, Rubem A.

——-

NOTA:  As citações acredito que estejam todas corretas.  O que estava a meu alcance verifiquei, mas não tenho acesso a todos esses romances.





Germano Almeida surpreende com seu TESTAMENTO do Sr. Napumoceno

27 08 2008

Este livro me apresentou à literatura cabo-verdiana.  E que apresentação!  Fez com que eu quisesse ler mais!   O Testamento do Senhor Napumoceno [ São Paulo, Editora Companhia das Letras:1996]  é  narrado com muito humor.  É também um livro cheio de surpresas.  Napumoceno da Silva Araújo parece ter uma das vidas mais discretas do arquipélago.  Mas quando o seu testamento de 387 páginas é finalmente aberto, aprendemos detalhes de sua vida particular que mostram um outro homem.  Um homem que demonstra uma tremenda habilidade de escrever, que discorre sobre membros da família, sobre seus superiores, seus empregados e ainda mais detalhadamente sobre suas aventuras amorosas.  Tudo é metodicamente descrito e causa tanta surpresa a ponto de ser desacreditado.  Principalmente depois que sua fortuna não passa às mãos do sobrinho, como era esperado, mas à filha, desconhecida de todos, fruto de um relacionamento indiscreto no passado.  E de revelação em revelação, de requisitos estranhos para a sua própria cerimônia funerária a métodos de negócio questionáveis, ficamos sabendo sobre a vida nas ilhas, nas 10 ilhas deste país de 300.000 pessoas.  Um repleto povoado por pequenas cidades, cujas distancias são feitas grandes, muito grandes pelo mar.

 

O escritor Germano Almeida

O escritor Germano Almeida

 

 

 

 

 

Napumoceno representa facilmente Cabo Verde.   Sua solidão, sua maneira metódica, sua vida controlada e reclusa contribuem para que ele mesmo se isole da própria cidade onde mora.  Mesmo depois de ter se tornado um homem de negócios de sucesso, ele ainda é recusado pelo clube local.  Tenho por mim que o sentimento de rejeição  sentido por Napumoceno se assemelhe ao sentimento que o país teve em relação a Portugal. O vazio a volta de sua vida é claramente percebido.   Mas quando ele morre e seu testamento é lido, detalhes suas aventuras vêm à tona.  Só então vizinhos e conhecidos descobrem que sua vida era de fato muito diferente.   Rico em emoções e em gosto pela vida, ele viveu exatamente como uma ilha, isolado, rodeado por um grande vácuo.

 

Numa entrevista dada a Fernando Nunes da ZonaNon: revista de cultura crítica, em 2003, Germano Almeida descreveu a independência de Cabo Verde em 1975, como sendo uma verdadeira revolução causando um crescimento inimaginável de 1975 a 1990 na economia e sociedade do país, resultados que não haviam sido contemplados e que certamente ultrapassaram qualquer expectativa.  O país cresceu nesses 15 anos numa razão maior do que havia crescido nos 500 anos de domínio português.   A alegria, o entusiasmo de descobrir seu próprio potencial outrora desconhecido, as possibilidades a explorar suas riquezas internas formam um excelente paralelo a vida de Napumoceno.  Muito mais rica do que o esperado, passando dos limites e das expectativas que os outros poderiam ter.  

 

Mas este não é um livro político.  Tampouco um livro histórico.  Este é o retrato de um homem na sua complexidade, alguém como nossos vizinhos, nossos amigos e parentes.   Gente que acreditamos  conhecer e que, de repente, sem aviso, mostra um lado, uma habilidade, um dom diferente, conhecido exclusivamente por seu portador.  E nós, leitores, ficamos tais como os conhecidos de Napumoceno, surpresos e embasbacados.  Excelente leitura!