Um comodista sofrendo de gota: a dor é representada por um diabinho queimando o pé da vítima. Caricatura de G. Cruikshank, 1818. Litografia colorida.
“Não tenho visto meu amigo João Brandão nas livrarias nem nos teatros nem nos comícios nem nas maratonas. Que se passa com ele? Fui visitá-lo e encontrei-o de perna esticada, curtindo modesta variedade de gota — a gota dos pobres, disse-me ele.
— E como é a gota dos pobres?
— É a gota dos que não comeram nem beberam em excesso, não chafurdaram nos prazeres da mesa, e no entanto…
Não me pareceu deprimido, mas conformado. Tinha ao alcance da mão dois livros, e contou-me:
— O Álvaro esteve aqui com esses santos remédios. Recomendou que eu trocasse a colchicina por La goute et l’humour e Les goutteux célèbres. Tenho lido um pouco de cada um, e já posso mover com o dedão do pé direito, nesse lance simpático de separá-lo do dedo vizinho. Restabelecer a mobilidade dos dedos do pé, mesmo que não seja para andar, constitui um prazer de que a gente não se dá conta quando a máquina está em perfeito funcionamento, você sabia?
Eu não tinha reparado nisso, nos pequenos prazeres de pequenas partes do corpo desempenhando sem alarde suas funções rotineiras. E João continuou:
— A gente só lê coisas a respeito de uma doença quando ela nos pega pelo pé literalmente ou não. Aí começa a ler coisas desalentadoras que acabam tornando a doença mais pesada. O Álvarus teve a gentileza de me convidar a rir da minha gotinha, ou pelo menos a sorrir.
E folheando os volumes:
— Todo mundo diz que gota é doença de nobre, por ser de nobre e até de reis, como Carlos V, e Lupis XVI, mas eu posso orgulhar-me da companhia de nobrezas de outro tipo, a meu ver mais estimulantes e honrosas. Veja aqui: Chateaubriand e Lamartine eram gotosos. Montaigne também. E Leibnitz. E Cellini. E Rubens. A confraria é tão numerosa e brilhante que dá vontade de perguntar. E Dante também não era? Não está faltando Shakespeare nessa lista? Vai ver que se esqueceram de Homero… Me sinto muito reconfortado, palavra.
Antes que ele fizesse o elogio da gota, disse-lhe que não precisava exagerar….”
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Para o final da crônica, Gota, com humor, veja abaixo.
Em: Moça deitada na grama, Carlos Drummond de Andrade, Rio de Janeiro, Record, 1987, pp: 131-132
O leão sentado em seu trono e tendo a seu lado seu ministro urso, um dia dava audiência a seu povo. A ovelha veio chorando reclamar que seu pequeno cordeirinho havia sido raptado na noite anterior. O leão examinou com cuidado a fisionomia de todos que o rodeavam, porque o crime em geral se revela na face do culpado.
— Não fui eu o autor do crime, logo gritou o lobo. Não, senhor, já há muitos dias estou indisposto o que me obrigou a uma dieta; digo a verdade, não fui eu!
— Foi você! respondeu o leão. Por se defender quando ninguém ainda havia lhe acusado, você se acusou a você mesmo; você devorou o carneirinho e o urso vai lhe dar a mesma sina.
Sem demora, o lobo foi castigado com pela ferocidade do urso. Alguns dias depois testemunhas oculares declararam que o lobo realmente havia sido o culpado.
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Traduzido do francês e adaptado por Ladyce West. Publicação de 1911, em domínio público. Ilustração original
“Domingo é dia de pescaria – mas, evidentemente, só para quem sabe pescar. E nem sempre o pescador, armado de anzol, e tendo ao lado uma latinha com iscas, pode desempenhar seu ofício em isolamento semelhante ao daquele colega que, sentado a uma mesa, se dedica a capturar, no improfundável rio da vida, os fugidios peixes do espírito.
O curioso aproxima-se do pescador acomodado sobre as pedras, procura inteirar-se do seu sucesso, faz-lhe perguntas sobre o mar que, cativo de uma enseada, é apenas prateado pedaço de si mesmo, como uma pétala é flor. O homem que se desfatigara no silêncio e na espera sente-se, por sua vez, como um peixe que no fundo das águas, resiste à investida de um anzol dotado de imperdoável engodo. Desejaria não ser agarrado, naquele momento, por voz nenhuma, não beber esse elixir de curiosidade, tédio e convivência que as criaturas servem umas às outras, quando conversam. Diz que o mar está parco, e mostra-lhe o que angariou: uma cocoroca, alguma finas piabinhas cor-de-chumbo, dois gordos peixes-porcos que agonizam estatelados dentro do vasilhame.
E, gratuitamente, ou porque se sentisse na obrigação de dar um esclarecimento suplementar, ou porque não desejasse que o interlocutor o comesse por estreante ou desafortunado, ajuntou:
— Domingo passado, o mar estava melhor.”
Em: Lêdo Ivo, seleção do autor, prefácio de Gilberto Mendonça Teles, São Paulo, Global: 2004, (Coleção Melhores Crônicas- direção de Edla van Steen, “Viagem em torno de uma cocoroca“, p. 133
NOTA: Lêdo Ivo (1924-2012) foi não só um grande poeta, mas um excelente cronista, e também romancista. Precisa ser mais lembrado. Uma das coisas que me encanta sobremaneira na sua prosa é a inteligente criação de palavras que eu imediatamente adiciono ao meu dicionário digital. Além disso aprecio a expansão dos significados que ele consegue dar a palavras já existentes, Nesses três parágrafos que introduzem a crônica “Viagem em torno de uma cocoroca“, vejamos as palavra inventadas: improfundável, desfatigara; a expansão do verbo comer [que o interlocutor o comesse por estreante], parco [Diz que o mar está parco], fora as maravilhosas figuras de linguagem [se dedica a capturar, no improfundável rio da vida, os fugidios peixes do espírito.]; [um anzol dotado de imperdoável engodo] engodo no lugar de isca. Seus textos são assim, riquíssimos de viradas de significados, inesperadamente poéticos. Vale lê-lo.
Não conheço a autoria dessa imagem. Só há uma fonte na internet para ela. Reproduzida muitas vezes. Não confio. Tenho a impressão de que é feita por IA, ainda que alguns atribuam a um pintor do final do século XIX. Nem vou mencionar seu nome para evitar que um rumor se propague. Totalmente fora de seu estilo. É no entanto uma interessante superimposição ao texto que segue. Serve também para alertar a todos vocês que aqui aparecem que há horas em que temos que confiar nos nossos instintos.
“O som do relógio, que expulsara o silêncio, morria em vibrações cada vez mais ténues e distantes. Depois de apagar todas as luzes, Justina foi sentar-se numa cadeira, perto da janela que dava para a rua. Gostava de ali estar, imóvel, desocupada, as mãos abandonadas no regaço, os olhos abertos para a escuridão, à espera nem ela sabia de quê. A seus pés veio enroscar-se o gato, seu único companheiro de serões. Era um animal tranquilo, de olhos interrogadores e andar sinuoso, que parecia ter perdido a faculdade de miar. Aprendera com a dona o silêncio e, como ela, a ele se abandonava.”
Em: Claraboia, José Saramago, Cia das Letras. Original de 1953, publicação póstuma em nova edição.
Duas empregadas, Maria e Margarida, levavam cada, uma cesta, bem pesada: uma resmungava o tempo todo reclamando do peso de sua carga; a outra se ria e fazia graça como se a dela fosse leve.
— Como você pode rir? – perguntou Margarida; sua cesta é tão pesada quanto a minha, e você não é mais forte do que eu.
— É porque, na minha, coloquei uma pequena planta que diminui o peso, respondeu Maria.
— Por favor, me diga, Maria, que planta é essa? Eu queria também ter para aliviar o peso de minha cesta.
Maria responde:
— A planta, tão preciosa que transforma todos os fardos em pesos leves, é a paciência.
Christoph von Schmid nasceu na Alemanha em 1768 e faleceu em 1854. Foi um dos primeiros a escrever contos para crianças. Suas histórias, anedotas, diálogos, são lidos até hoje pelas crianças europeias, principalmente na França, na Alemanha e na Inglaterra. Sua obra está traduzida para muitos idiomas e publicada com ou sem ilustrações, dependendo da idade para qual suas mais de trezentas publicações forem apropriadas. Ele também adaptou lendas locais para contos. Ele foi um dos primeiros escritores a se preocupar com o ensino de valores para crianças.
Este é o quarto livro de Chimamanda Ngozi Adichie que leio. Como outros leitores que gostam de sua escrita esperei dez anos para essa nova produção. Finalmente A contagem dos sonhos veio, trabalho pós pandemia, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Júlia Romeu. É óbvio que não há falta de assunto para a autora, nunca houve, por tudo que já li dela, Chimamanda continua loquaz na sua escrita.
A sensação que tive é que após alguns anos sem publicar, a autora tinha muito, muito mesmo, a dizer sobre mulheres e seus sonhos. O livro é extenso. Sinto que poderia ser dividido em dois excelentes romances com diferentes diretrizes. Isso porque ele relata desejos, sonhos e o cotidiano de quatro mulheres que lutam para se realizar economicamente, profissionalmente, além de preencherem seus destinos de esposas, amantes, mães e filhas. Não é um conjunto fácil de tarefas a concretizar. Essa luta, a persistência na busca, a procura do preenchimento do sonho é a coluna dorsal da obra. Ela trata das expectativas frustradas, dos obstáculos do dia a dia, e mostra a quase impossível ideia de casar sonho com realidade.
Não falta vontade, perseverança, educação ou dinheiro a três dessas mulheres: Chiamaka, Zicora e Omelogor, as três nigerianas. O caso de Kadiatou já é diferente desde de seu nascimento. Outra obra deveria ser escrita para ela. Originária da Guiné ela se faz adulta dentro dos ditames da educação muçulmana. Traz consigo os limites de seu papel social que diferem daqueles das outras três personagens, quando emigra, acaba sofrendo consequências traumáticas pelas quais não é responsável.
As quatro mulheres são apresentadas em sequência, e têm suas vidas levemente entrelaçadas. Chiamaka abre a narrativa. Ela é escritora-jornalista especializada em escrever colunas para revistas de viagem, vem de família rica, emigra para os EUA, não tem problemas financeiros e é apoiada pelos pais, mas não consegue encontrar um parceiro de vida adequado. Zikora, a segunda que conhecemos, é amiga de Chiamaka e pode até ter sido apresentada ao leitor anteriormente, já que sua história apareceu como um conto independente, em 2020, Zikora, pela Amazon Original Stories. Lá, é personagem principal. Aqui, a mesma história: advogada de sucesso em Washington DC, que se vê igualmente lograda na escolha de um companheiro de vida. Quando engravida é deixada de lado pelo homem que ama. Foi durante o parto e nos dias subsequentes que conseguiu perceber as dificuldades que sua mãe teve, e consegue reconciliar seu desejo com o que sua mãe imagina para ela e o neto. Omelogor, é prima de Chiamaka, mas as duas não poderiam ser mais diferentes. Ela também se muda para os Estados Unidos para estudar. Tem muito sucesso no campo das finanças. Mostra também seu lado de defensora das mulheres quando dá conselhos para homens, incentivando-os a agir de maneira mais ‘civilizada’ em seu blog. Entra em controvérsias, mas é autêntica. Das três nigerianas, ela é a personagem mais tridimensional, suas faltas, pecados, erros de julgamento a fazem uma pessoa completa. Talvez seja a mais interessante das nigerianas.
Chimamanda Ngozi Adichie
Finalmente, na sequência, temos a história de Kadiatou, comovente, triste, de grande poder dramático. Sua relação com as outras mulheres retratadas é que ela foi empregada de Chiamaka, e vai para os EUA, asilada, procurando uma vida melhor para sua filha. Essa história, completamente diferente das outras, até mesmo no tom, lembra um caso real que chegou às manchetes dos jornais por volta de 2011, quando de uma camareira de hotel foi abusada por um homem de negócios de alto nível, em Nova York. Para mim, essa história deveria ser um livro à parte. Principalmente porque na seção final quando voltamos a saber de Chiamaka — cujo relato fecha o livro — percebemos ainda com maior precisão a diferença de tom usado nas três primeiras narrativas, e a dela. E também os problemas que afetam Kadiatou serem de muito maior grandeza do que os enfrentados pelas outras.
O que as une é a constante procura do amor e da felicidade. Todas acabam frustradas pelos homens que escolhem, pelas escolhas que fazem ou pelas pressões sociais. Com esse perfil fica óbvio que Chimamanda Ngozi Adichie continua dando voz às frustrações das mulheres que lutam contra o machismo, o racismo e desigualdades sociais. Tudo dentro do tradicional perfil de suas obras, que conquistaram, a cada publicação, milhares de leitores devotos. Mas neste livro acredito que ela poderia ter sido mais sucinta. O livro é longo. E se arrasta em algumas passagens. Para mim, sua melhor obra até hoje, mais redonda, mais completa, é Meio Sol Amarelo, narrativa de grande impacto. Se você nunca leu Chimamanda Ngozi Adichie, recomendo que comece com Hibisco Roxo, o mais leve e mais direto de seus romances. Mas recomendo A contagem dos sonhos com as restrições mencionadas acima.
De cinco estrelas, no máximo eu lhe daria entre três e quatro. Mas não há meios pontos nesse jogo. Fico com quatro, em admiração por todo trabalho dessa escritora.
NOTA: este blog não está associado a qualquer editora ou livraria, não recebe livros nem incentivos para a promoção de livros.