Famílias reais medievais…

26 08 2024

Coroação de Ricardo III da Inglaterra

Iluminura anônima,  manuscrito do século XIII

Governou o país de 1216 a 1272

 

 

Uma de minhas distrações é ler sobre a Idade Média. Hábito reforçado, quando meu marido e eu tivemos a oportunidade de passar uma temporada na França, na Gasconha. Naquela estadia, sem televisão, a leitura foi nossa principal diversão nas noites de final de verão-outono-inicio de inverno. Nesta época li duas biografias de Leonor de Aquitânia.  Além de cair de amores por ela, minha curiosidade sobre a intrincada história das relações França-Inglaterra-França, da história do Rei Artur à Invasão Normanda em 1066 até o século XVIII, todo esse puxa-empurra entre Inglaterra e França, aos poucos trouxeram nomes que foram se tornando personagens familiares e por causa disso, esses reis, ingleses e franceses são parte do meu descanso. 

Com a queda da temperatura ontem, aqui no Rio de Janeiro, a leitura foi a distração óbvia. Voltei minha atenção para o livro The Two Eleanors of Henry III: The Lives of Eleanor of Provence and Eleanor de Montfort, [As Duas Leonors de Henrique III: A vida de Leonor da Provença e Leonor de Montfort] do historiador Darren Baker, [Pen & Sword History: 2019] que conta a vida dessas duas cunhadas,  a primeira, casada com Henrique III e a segunda,  irmã dele, casada com Simon de Montford, duas figuras importantíssimas nos acontecimentos do século XIII na Inglaterra.

Já estou chegando à metade do livro.  Mas o início, os primeiros parágrafos, é o que coloco aqui em tradução livre, que me levaram a pensar: “vale uma nota no blog”.  Muitas vezes quando dou minhas aulas de história da arte, quando sempre falo dos reis e rainhas (eram eles que mantinham os artistas trabalhando, comendo e vivendo), meus alunos se surpreendem com o número de herdeiros das cortes que morriam antes mesmo de chegarem à idade madura.  Aqui, a descrição que abre esse livro, surpreende. Hoje, muitos séculos mais tarde, às vezes esquecemos de como era difícil a vida mesmo daquelas senhoras ricas, membros das famílias mais nobres europeias do século XIII.

 

 

 

“Três rainhas na Inglaterra foram chamadas Leonor.  A primeira e mais famosa foi Leonor de Aquitânia. Ela teve dois maridos, ambos reis, dez filhos e participou de uma cruzada. A terceira foi Leonor de Castela, que teve só um marido, mas dezesseis filhos e também foi a uma cruzada. Depois de sua morte foi imortalizada com cruzes erguidas em sua memória.  Entre as duas estava Leonor da Provença.  Ela teve só cinco filhos, não participou de cruzadas e seu marido não podia se comparar aos maridos das outras duas Leonors. Pior ainda, foi considerada culpada por parecer ser uma monarca fraca e incompetente.”

 

(tradução Ladyce West)

 

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There have been three queens of England named Eleanor. The first and most famous of them was Eleanor of Aquitaine. She had two husbands, both of them kings, ten children, and went on crusade. The third was Eleanor of Castile. She had only one husband, but sixteen children and she too went on crusade. After her death, she was immortalised with memorial crosses erected in her memory. In between them was Eleanor of Provence. She had only five children, no crusade to her credit, and her husband could not compare to the husbands of the other two Eleanors. Worse, she was blamed for him being a seemingly weak and incompetent monarch.

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Essas jovens, e eram muito jovens, se casavam assim que chegavam à puberdade, com homens que não conheciam, prometidas por seus familiares, para garantir terras, tratados de paz e de não invasão e ainda tinham que ficar de sobreaviso, porque havia intriga, perigo de envenenamento, traição e muita gente querendo suas terras, seus domínios, o dote que permitira o casamento. Eram levadas para longe da casa natal, em geral para nunca mais voltarem, nem mesmo a ver seus familiares mais próximos, longe de todos com quem cresceram, frequentemente colocadas em lados opostos a irmãos, a parentes que consideravam família. A responsabilidade dessas meninas era grande. Com elas estavam as regras de muitos tratados de paz, as pequenas decisões que mostram poder. Jogavam, junto com seus maridos, e às vezes até mesmo contra eles, mas sempre pela sobrevivência, um grande jogo de xadrez político. E mais frequente do que imaginamos, essas rainhas consortes não foram destacadas por sua coragem. Suas biografias esquecidas, não registradas, porque afinal eram apenas mulheres. Até dias recentes só as conhecemos por anotações superficiais, marginália ou notas de rodapé, uma ou outra carta, uma ou outra nota em um diário, observações de seus padres confessores ou textos em geral repletos de inverdades. Por isso tem sido tão interessante ver no final do século passado e no primeiro quarto do século XXI, o esforço de muitos historiadores para refazerem as vidas dessas mulheres importantes na própria geografia econômica europeia.

Este livro abre com o casamento de Henrique III, rei da Inglaterra, também conhecido como Henrique de Winchester, (1207-1272) que subiu ao trono, aos nove anos de idade, após o falecimento de seu pai. Aos vinte e sete anos, ele se casa com Leonor da Provença, de doze anos de idade, em 20 de janeiro de 1236, na Catedral de Canterbury. Foi um casamento feliz. Diferente de muitos nessas circunstâncias. Trouxe cinco filhos e garantiu a subida de seu filho Eduardo I, também chamado de Eduardo Pernas Longas, ao trono quando Henrique morreu. Os Plantagenets garantiam assim, ainda por mais dois séculos, sua permanência o poder.

Árvore genealógica do século XIII na Inglaterra.  Estão representados Henrique II e seu filhos, da esquerda para a direita: Guilherme, Henrique, Ricardo, Matilde, Godofredo, Leonor, Joana e João.





Dia a dia…

24 08 2024

Ontem foi dia de encontro memorável: nós quatro, escritoras cariocas, que nem sempre moramos no Rio de Janeiro, nos encontramos para um excelente bate-papo, muito esperado e inspirador que durou um pouco mais de quatro horas.  Que venham mais.





Olhos verdes, poema de Vicente de Carvalho

23 08 2024
Ilustração de revista, anos 60.  Ignoro a autoria.

 

 

Olhos Verdes

 

Vicente de Carvalho

 

Olhos encantados, olhos cor do mar

Olhos pensativos que fazeis sonhar!

Que formosas cousas, quantas maravilhas

Em vos vendo sonho, em vos fitando vejo:

Cortes pitorescos de afastadas ilhas

Abanando no ar seus coqueirais em flor,

Solidões tranquilas feitas para o beijo,

Ninhos verdejantes feitos para o amor…

 

Olhos pensativos que falais de amor!

Vem caindo a noute, vai subindo a lua…

O horizonte, como para recebê-las,

De uma fímbria de ouro todo se debrua;

Afla a brisa, cheia de ternura ousada,

Esfrolando as ondas, provocando nelas

Bruscos arrepios de mulher beijada…

Olhos tentadores da mulher amada!

 

Uma vela branca, toda alvor, se afasta

Balançando na onda, palpitando ao vento;

Ei-la que mergulha pela noute vasta,

Pela vasta noute feita de luar;

Ei-la que mergulha pelo firmamento

Desdobrado ao longe nos confins do mar…

Olhos cismadores que fazeis cismar!

 

Branca vela errante, branca vela errante,

Como a noite é clara! como o céu é lindo!

Leva-me contigo pelo mar… Adiante!

Leva-me contigo até mais longe, a essa

Fímbria do horizonte onde te vais sumindo

E onde acaba o mar e de onde o céu começa…

Olhos abençoados, cheios de promessa!

Olhos pensativos que fazeis sonhar,

         Olhos cor do mar!

 

                  (Poemas e canções, 1908)





Trova da Lua

13 08 2024
Ilustração Helena Perez Garcia.

Exausta de solidões

de um céu escuro e vazio,

a lua busca emoções

no leito alegre do rio.

(Durval Mendonça)





Resenha: Crônicas minhas, de Nancy de Souza

11 08 2024

A modelo, 2023

Jean-Claude Götting (França, 1963)

acrílica sobre tela, 100 x 100 cm

 

 

 

Crônicas minhas de Nancy de Souza é para ser lido e degustado aos pouquinhos.  Porque depois de cada crônica a tendência do leitor é refletir sobre a vida, as mudanças que testemunhamos no do dia a dia; as emoções que algumas memórias nos trazem.  Essas crônicas são pequenas, mas acordam uma infinidade de considerações sobre o que é viver, como se transformar, e as consequências dessas transformações.

Houve momentos em que parei emocionada, como em “Carta ao meu tataraneto”, de onde trago o seguinte parágrafo:

Tente, meu tataraneto, me descobrir registrada no seu código genético e, falando com a sua voz, te dizer segredos de família que não conseguirá ouvir. Sinto, aqui e agora, uma tristeza enorme de me perder assim sem te ver, dentro de você, presa num emaranhado, dito DNA. Liberte-me sendo você mesmo, sorrindo alto como sorriam os meus e com sonhos ousados como foram os meus. Encontre-se comigo num mundo melhor, desvenda-me, desvendando-se a si próprio. [103]

 

 

 

 

E outras em que cheguei a dar um risinho divertido, como em “O sofá, os urubus e as termais”:

Depois de um ano fora, fazendo intercâmbio pela faculdade, minha filha responde ao meu questionamento: ‘Do que você sentiu mais falta aqui do Brasil?’. Sua resposta saltou ligeira, sem dificuldades, como que descoberta antiga e fascinante: ‘Do sofá.’ [41]

Todas essas crônicas, sem exceção, nos levam a ponderar sobre nossas experiências e trazem à tona memórias, algumas bem escondidas na sobreposição de eventos mais recentes.  Mas ter alguém narrando e comentando sobre a vida, ocorrências diárias, quase sempre começadas por gesto ou objeto banal, é muito prazeroso. Porque Nancy de Souza tem e teve uma vida, igual a de todos nós, repleta de pequenos incidentes, de decisões acertadas e outras não tão bem-sucedidas, de momentos que sabia serem importantes. O que a difere do resto de nós todos?  Excelente memória emotiva e factual, bom senso de humor, vários aprendizados adquiridos do mar ao piano, da artista plástica à escritora. Experiências, que transformou em pepitas de ouro para reflexão, como na emotiva despedida, no se desprender das cinzas de seu cão e companheiro, Benjamin James, em “Pó de estrela”.

A cada passo, me dava conta de que todo nosso corpo, ideias e lembranças, podem caber num pequenino saquinho plástico, pois somos pó, pó de estrela. Em explosões cósmicas colocamos os pés no mundo, caminhamos para cá e para lá, estudamos, aprendemos, lemos, nos esforçamos, com a ilusão de que seremos “sempre”. No entanto, aquele saquinho plástico balouçante em minhas mãos me dizia, sem dizer nada, que somos pó, pó de estrelas. [86]

 

 

Nancy de Souza

 

 

Há ainda uma característica dessas crônicas que gostaria de ressaltar.  Há tempos sinto falta na literatura brasileira contemporânea das histórias das pessoas comuns, de uma classe média que trabalha, estuda, quer avançar, quer se melhorar e melhorar o mundo à sua volta.  Tanto da nossa escrita se detém naquilo que é diferente, que é cruel, absurdo, no comportamento limítrofe, nas diferenças, no ódio! Tanta ênfase tem sido dada a extremos que a pessoa comum, que é assolada por dúvidas e decisões que a afetam e a outros também, parece ter desaparecido do nosso horizonte literário.  Nancy de Souza traz a ‘normalidade’ de volta ao palco e nos convida a esquadrinhar o que estamos fazendo com nossos hábitos cotidianos.

Crônicas minhas terá, por algum tempo ainda, um lugar na minha mesa de cabeceira, porque quero voltar a ler, ali e acolá, e ponderar.  Recomendo sem restrições.

 

NOTA: este blog não está associado a qualquer editora ou livraria, não recebe livros nem incentivos para a promoção de livros.





Autorretrato, poema de Mário Faustino

2 08 2024

Rapaz com capucho

Carlos Alberto Petrucci (Brasil, 1919 – 2012)

óleo sobre tela

 

 

Autorretrato

 

Mário Faustino

 

O mar reza por mim

Somente sua voz terrível é digna daquele

a quem retorno o mais triste dos homens

embora nunca tenha sido o pródigo

Sou apenas uma pobre criança

pela primeira vez diante de si própria

E que tenho medo

 

As imagens penetram a face intacta

e os ouvidos resistem à sinfonia

nada mudou apenas eu transbordo.

Também há quantos eu não escrevo poemas?

Há miríades de séculos irmão,

 

25/2/1948

 

Em: O homem e a sua hora e outros poemas, Mário Faustino, org. Maria Eugenia Boaventura, São Paulo, Companhia das Letras: 2009, p. 203





A longa lista do Prêmio Booker foi anunciada…

1 08 2024

 

 

Quem acompanha este blog por algum tempo, nestes dezesseis anos de postagens diárias, sabe que tenho gosto pelos premiados pelo Booker (prêmio de literatura).  Em geral tenho mais afinidade com os premiados pelo Booker do que pelos premiados pelo Pulitzer ou pelo National Book Critics Award, ambos americanos, ou do que o Nobel de literatura.  Nem todos os livros do Goncourt, (França) nem do Jabuti (Brasil) me agradam.  Não sei explicar exatamente as razões.  Talvez seja uma questão dos livros que li na minha formação… Mas não importa, sempre aguardo com ansiedade a longa lista dos finalistas do Booker, que saiu hoje, para o prêmio de 2024.  São treze, ao todo.  A baker’s dozen.  [Uma dúzia de padeiro]  Desses treze, a lista se reduzirá em seis e desses então teremos o vencedor do ano.  Tento ler o maior número possível deles todos, tarefa que se tornou mais fácil depois que pudemos comprar esses livros em suas versões eletrônicas e ler… ler… ler…   Aqui vai a lista que saiu hoje.  Há alguns nomes bastante conhecidos.  Rachel Kushner parece estar já há uns dois ou três anos nos lábios de qualquer pessoa interessada nos livros lidos do momento.  Apesar de interessante, ela não faz parte do meu grupo de grandes favoritos.

 

 

    Wild Houses by Colin Barrett 

    Headshot by Rita Bullwinkel

    James by Percival Everett

    Orbital by Samantha Harvey 

    Creation Lake by Rachel Kushner 

    My Friends by Hisham Matar

    This Strange Eventful History by Claire Messud

    Held by Anne Michaels

    Wandering Stars by Tommy Orange

    Enlightenment by Sarah Perry

    Playground by Richard Powers

    The Safekeep by Yael van der Wouden

    Stone Yard Devotional by Charlotte Wood

 

Há muito poucos desses escritores que conheço de outros livros.  Nenhum desses títulos já se encontra publicado no Brasil.  Mas conheço Rachel Kushner, Percival Everett, e Anne Michaels e conheço de nome, sem nunca ter lido, Hisham Matar, Claire Messud. 

 

E vocês?  Gostam do Booker?  Preferem os escritores no Nobel?  Do Goncourt?  Do Jabuti?    Conhecem alguns desses escritores selecionados entre os melhores para serem finalistas do prêmio deste ano?





Depois da reforma a Folger Shakespeare Library, reabre!

29 07 2024
Missal de Etiènne de Longwy, 1490.  Foto, cortesia da Folger Shakespeare Library.

 

 

Depois de quatro anos de obras de expansão ao custo de oitenta milhões de dólares, a Biblioteca Shakespeariana Folger na cidade de Washington DC abre novo espaço para exposições de livros raros, com a exposição de uma coleção particular de livros e manuscritos raros. 

 

De humani corporis fabrica, 1543 de Andreas Vesalius. Foto, cortesia da Folger Shakespeare Library.

 

A nova sala de exposições mostra na abertura, cinquenta e duas obras da coleção de particular de Stuart e Mimi Rose, que celebra a eterna procura pelo conhecimento da humanidade.  A exposição leva o nome de Marcas do Tempo [Imprints in Time].  A exposição estará aberta até o dia 5 de Janeiro de 2025.  Se você pretende passar alguns dias nos EUA, e gosta de livros, essa exposição é para não perder.

 

Americanum no. 1, 1494 de Cristóvão Colombo. Foto, cortesia da Folger Shakespeare Library.

 

 

O Senhor dos Anéis, [The Lord of the Rings], J.R.R. Tolkien,1954–55. Foto, cortesia da Folger Shakespeare Library.





O cacto, poema de Manuel Bandeira

29 07 2024

Mandacaru, 1951

Dimitri Ismailovitch, (Ucrânia-Brasil, 1892-1976)

crayon e pastel sobre papel, 54 x 36 cm

 

 

 

O Cacto

 

Manoel Bandeira

 

Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:

Laocoonte constrangido pelas serpentes,

Ugolino e os filhos esfaimados.

Evocava também o nosso seco Nordeste, carnaubais, caatingas…

Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.

 

Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.

O cacto tombou atravessado na rua,

Quebrou os beirais do casario fronteiro,

Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,

Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas privou a cidade de iluminação e energia:

 

– Era belo, áspero, intratável.

 

Petrópolis, 1925

 

Em: Libertinagem, Manuel Bandeira, Global Editora, São Paulo, 2013





A preguiça, poesia infantil de Martins D’Alvarez

27 07 2024
Ilustração anônima, alegoria da Preguiça.

 

 

A preguiça

 

Martins D’Alvarez

 

A preguiça ficou doente

Com preguiça de comer.

Preguiça não quis remédio

Com preguiça de beber.

 

Preguiça não sai de casa

Preguiça de levantar!

Preguiça não se espreguiça

Preguiça de esticar.

 

Preguiça tem tal preguiça

De sarar e de viver,

Que preguiça só não morre

Com preguiça de morrer.

 

Em: No mundo da lua, Martins D’Alvarez, Editora Casa de José de Alencar, UFC:2000