Minutos de sabedoria: Rainer Maria Rilke

4 08 2025

Uma leitura interessante

Fritz Wagner (Alemanha,1896-1939)

óleo sobre tela, 31 x 26 cm 

 
“No fundo, e justamente nas coisas mais profundas e mais importantes, estamos absolutamente sozinhos.”

 

Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta. 

 

 

 

Rainer Maria Rilke (1875-1926)





Sobre a solidão, Rosa Montero, (trecho)

19 07 2025

Moça lendo, 1947

Francesc Domingo Segura (Espanha-Brasil, 1893-1974) 

óleo sobre tela, 73 x 60 cm 

 

 

“A característica essencial do que chamamos de loucura é a solidão, mas uma solidão monumental. Uma solidão tão grande que não cabe na palavra solidão e que não podemos nem imaginar se não estivemos lá. É sentir que você se desconectou do mundo, que não vão conseguir te entender, que você não tem #palavras para se expressar. É como falar uma língua que ninguém mais conhece. É ser um astronauta flutuando à deriva na vastidão negra e vazia do espaço sideral. É desse tamanho de solidão que estou falando. E parece que na dor verdadeira, na dor-avalanche, acontece algo parecido. Embora a sensação de desconexão não seja tão extrema, você tampouco consegue dividir nem explicar seu sofrimento.”

 

Em: A ridícula ideia de nunca mais te ver, Rosa Montero, tradução de Mariana Sanchez, Todavia: 2019





Resenha: A Fábrica, Hiroko Oyamada

18 07 2025

 

Faço questão de escrever minha avaliação sobre esse livro: ou a tradução não está boa, ou a escrita é falha. Não dá nem para decidir qual desses problemas é o maior. Sou leitora de muitos anos de literatura japonesa contemporânea e clássica.  Encontrei nesse campo livros fenomenais, mas esse foge dessa experiência, por completo.

Ler um livro em que chego ao final sem saber: 1) quem está narrando, 2) é um homem? 3) é uma mulher?  Não sei.  E de repente achar que foram mais de um narradores…  não faz sentido.  O livro não tem inicio nem fim claros.  Sei que deve ser um tipo realidade distópica.  Mas  distópico ficou o meu cérebro querendo saber exatamente por que?  Por que estava lendo esse texto? Um livro pequeno que pareceu interminável.

E ganhou prêmios!  E há resenhistas dando 5 estrelas!  Meu palpite: não leram  Dizer como a editora diz: uma literatura semelhante a do escritor checo Franz Kafka, mas atual e do Japão, é intencionalmente apontar para farsa. Tenho certeza de que se possível Kafka está revoltado em seu túmulo com essa comparação.  Não gastem o seu dinheiro com esse livro.  Li porque foi o livro escolhido por votação no meu grupo de leitura.  Todos os participantes não gostaram inclusive aqueles que, como eu, chegaram até o fim.  Porque a maioria abandonou no caminho.

O que ganhei com esse livro? Aprendi sobre um rodente sul-americano: núria.  Acho que poderia ter vivido o resto de minha vida sem conhecê-lo.  NOTA ZERO





Resenha: Línguas, Domenico Starnone

17 07 2025

Moça lendo à janela, 1928

Albert André (França, 1869-1954)

óleo sobre tela, 73 x 61 cm

 

 

 

Línguas, de Domenico Starnone, com tradução de  Maurício Santana Dias, foi o terceiro livro do autor que li. Posso dizer que gostei de sua escrita desde que o encontrei em Assombrações (2018) e Laços (2017). Gosto imensamente de sua voz narrativa: calma, nostálgica, reflexiva.  Sua escrita é de nuances. Ele não precisa abrir o jogo, contar tudo, tintim por tintim. Ele nos deixa espaço para imaginar e sonhar; ar para respirar e tempo para absorver o lugar, os sons, as memórias do autor que se imiscuem com as nossas.

Línguas é um pouco diferente dos outros que li.  Menos fluido. Tem breque. É uma obra em dois tempos. Primeiro vemos o delicioso despertar do primeiro amor de um menino de oito ou nove anos, em Nápoles.  Ele se apaixona por uma menina do edifício em frente ao dele. Ela é bem mais arrojada que ele, flerta com a morte, dançando no peitoril da varanda.  Ela é diferente. Diferente de tudo que ele conhece. Ela não é como ele, do sul da Itália. Vem do norte e por isso, para surpresa do apaixonado garoto, ela fala com outro sotaque, usa vocabulário diverso, demonstra maneira de se expressar inesperada.  A paixão dele, só aumenta.  É o fascínio do outro, do desconhecido.  Mas, para atrapalhar, no horizonte, há Lello, um amigo, que também se apaixona pela milanesa.  Com o triângulo amoroso formado, a briga pela atenção da menina se desenvolve.  Irão às vias de fato?  Deixo isso para descoberta do leitor…  Depois… temos a segunda parte dessa história. Os dois, que em criança haviam sido apaixonados por Emanuela, se encontram, são jovens adultos.  Continuam a não se gostar e nesse encontro, e só então, Lello, o rapaz que sabe tudo de tudo, revela o verdadeiro destino da jovem bailarina de Milão.

 

 

 

Além da fascinante arte narrativa de Starnone, aprecio as diversas referências à literatura clássica em suas obras.  Da mera alusão à mitologia greco-romana, aos contos medievais, vamos nos informando, circundando assuntos cujas menções ecoam e enriquecem o texto.  Em Línguas, a própria abertura, o primeiro parágrafo ele já se refere ao trágico mito grego de Orfeu e Eurídice.  A leitura atenta, já vislumbra, nas primeiras frases que abrem o texto, por causa dessa referência,  um desfecho trágico, uma morte, quem sabe?  

Entre os oito e os nove anos de idade, decidi encontrar a fossa dos mortos. Tinha acabado de aprender nas aulas de italiano da escola a fábula de Orfeu e Eurídice debaixo da terra, onde ela havia ido parar por causa de uma picada de cobra. Eu planejava fazer o mesmo com uma menina que infelizmente não era minha namorada, mas que poderia vir a ser caso eu conseguisse tirá-la das profundezas da terra, enfeitiçando baratas, gambás, ratos e musaranhos.” [7]

 

Domenico Starnone

Línguas apresenta reflexões sobre dois temas constantemente ligados na literatura e no nosso emocional: amor e morte. Desde da Grécia antiga, e até antes disso, a relação entre essas duas profundas experiências fascinou poetas, escritores e filósofos. Por isso, não é surpresa que Starnone os considere, mesmo ao falar do primeiro amor — aquela paixão emocional que nasce na infância dos personagens, vista pelos olhos de quando eram crianças. Mas o texto é mais rico ainda, como complemento há contrastes entre juventude e velhice, línguas faladas tão próximas umas das outras e ainda assim estranhas.  A riqueza do  texto encanta e seduz.

Esse é um livro que aflora a sensibilidade do leitor.  Não é repleto de fortes emoções ou de diálogos arrebatadores. Starnone é mais fino, dedica-se a tênues paralelos. As observações desse menino de nove anos são curiosas, engraçadas, trazem um leve humor para o texto, mas nem por isso deixam de ser perspicazes, deixam de elaborar complexos argumentos. Boa leitura.  Dessas que adicionam. Recomendo sem restrições. 

 





O escritor no museu: Stéphane Mallarmé

11 07 2025

Stéphane Mallarmé, 1876

Édouard Manet (França, 1832-1883)

óleo sobre tela, 27 x 36 cm 

Museu d’Orsay, Paris





Dia a dia…

26 06 2025

TERMINEI A LEITURA!


Marcel Proust

1° volume: Em busca do tempo perdido!!!


São sete volumes. Considerada a obra de ficção mais importante do século XX. Você já leu?





Resenha: “A contagem dos sonhos”, Chimamanda Ngozi Adichie

11 06 2025
ilustração por IA.

 

 

Este é o quarto livro de Chimamanda Ngozi Adichie que leio.  Como outros leitores que gostam de sua escrita esperei dez anos para essa nova produção.  Finalmente A contagem dos sonhos veio, trabalho pós pandemia, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Júlia Romeu.  É óbvio que não há falta de assunto para a autora, nunca houve, por tudo que já li dela, Chimamanda continua loquaz na sua escrita. 

A sensação que tive é que após alguns anos sem publicar, a autora tinha muito, muito mesmo, a dizer sobre mulheres e seus sonhos.  O livro é extenso.  Sinto que poderia ser dividido em dois excelentes romances com diferentes diretrizes.  Isso porque ele relata desejos, sonhos e o cotidiano de quatro mulheres que lutam para se realizar economicamente, profissionalmente, além de preencherem seus destinos de esposas, amantes, mães e filhas.  Não é um conjunto fácil de tarefas a concretizar.  Essa luta, a persistência na busca, a procura do preenchimento do sonho é a coluna dorsal da obra. Ela trata das expectativas frustradas, dos obstáculos do dia a dia, e mostra a quase impossível ideia de casar sonho com realidade.  

 

 

Não falta vontade, perseverança, educação ou dinheiro a três dessas mulheres: Chiamaka, Zicora e Omelogor, as três nigerianas.  O caso de Kadiatou já é diferente desde de seu nascimento.  Outra obra deveria ser escrita para ela. Originária da Guiné ela se faz adulta dentro  dos ditames  da educação muçulmana.  Traz consigo os limites de seu papel social que diferem daqueles das outras três personagens, quando emigra, acaba sofrendo consequências traumáticas pelas quais não é responsável. 

As quatro mulheres são apresentadas em sequência, e têm suas vidas levemente entrelaçadas. Chiamaka abre a narrativa. Ela é escritora-jornalista especializada em escrever colunas para revistas de viagem, vem de família rica, emigra para os EUA, não tem problemas financeiros e é apoiada pelos pais, mas não consegue encontrar um parceiro de vida adequado.  Zikora, a segunda que conhecemos, é amiga de Chiamaka e pode até ter sido apresentada ao leitor anteriormente, já que sua história apareceu como um conto independente, em 2020, Zikora, pela Amazon Original Stories.  Lá, é personagem principal.  Aqui, a mesma história: advogada de sucesso em Washington DC, que se vê igualmente lograda na escolha de um companheiro de vida. Quando engravida é deixada de lado pelo homem que ama. Foi durante o parto e nos dias subsequentes que conseguiu perceber as dificuldades que sua mãe teve, e consegue reconciliar seu desejo com o que sua mãe imagina para ela e o neto. Omelogor, é prima de Chiamaka, mas as duas não poderiam ser mais diferentes. Ela também se muda para os Estados Unidos para estudar. Tem muito sucesso no campo das finanças.  Mostra também seu lado de defensora das mulheres quando dá conselhos para homens, incentivando-os a agir de maneira mais ‘civilizada’ em seu blog.  Entra em controvérsias, mas é autêntica.  Das três nigerianas, ela é a personagem mais  tridimensional, suas faltas, pecados, erros de julgamento a fazem uma pessoa completa.  Talvez seja a mais interessante das nigerianas.

 

Chimamanda Ngozi Adichie

Finalmente, na sequência, temos a história de Kadiatou, comovente, triste, de grande poder dramático.  Sua relação com as outras mulheres retratadas é que ela foi empregada de Chiamaka, e vai para os EUA, asilada, procurando uma vida melhor para sua filha.  Essa história, completamente diferente das outras, até mesmo no tom, lembra um caso real que chegou às manchetes dos jornais por volta de 2011, quando de uma camareira de hotel foi abusada por um homem de negócios de alto nível, em Nova York. Para mim, essa história deveria ser um livro à parte.  Principalmente porque na seção final quando voltamos a saber de Chiamaka — cujo relato fecha o livro — percebemos ainda com maior precisão a diferença de tom usado nas três primeiras narrativas, e a dela.  E também os problemas que afetam Kadiatou serem de muito maior grandeza do que os enfrentados pelas outras.

O que as une é a constante procura do amor e da felicidade. Todas acabam frustradas pelos homens que escolhem, pelas escolhas que fazem ou pelas pressões sociais.  Com esse perfil fica óbvio que Chimamanda Ngozi Adichie continua dando voz às frustrações das mulheres que lutam contra o machismo, o racismo e desigualdades sociais. Tudo dentro do tradicional perfil de suas obras, que conquistaram, a cada publicação, milhares de leitores devotos. Mas neste livro acredito que ela poderia ter sido mais sucinta.  O livro é longo. E se arrasta em algumas passagens.  Para mim, sua melhor obra até hoje, mais redonda, mais completa, é Meio Sol Amarelo, narrativa de grande impacto.  Se você nunca leu Chimamanda Ngozi Adichie, recomendo que comece com Hibisco Roxo, o mais leve e mais direto de seus romances. Mas recomendo A contagem dos sonhos com as restrições mencionadas acima.

De cinco estrelas, no máximo eu lhe daria entre três e quatro.  Mas não há meios pontos nesse jogo.  Fico com quatro, em admiração por todo trabalho dessa escritora. 

NOTA: este blog não está associado a qualquer editora ou livraria, não recebe livros nem incentivos para a promoção de livros.





A morte de Roland, ou a Canção de Roland

10 06 2025

Batalha de Roncesvales, em 778: morte de Roland. c. 1455-1460

Jean Fouquet (França, ? – 1481)

Iluminura das Grandes Crônicas da França

Biblioteca Nacional da França, Paris

 

 

A Canção de Roland é um poema do século XI, talvez a mais antiga canção épica, que dá início à literatura francesa, mesmo tendo sido, na sua forma original, escrita em uma língua românica.  A obra inspirou muitas outras criações sobre a França e circulou por toda a Europa.  Ela narra a morte heroica de Roland, no campo de batalha de Roncesvales.  A batalha aconteceu no dia 15 de agosto de 778, e Roland, que era sobrinho de Carlos Magno, comandava o exército da retaguarda, formado pelos Doze Pares de França, um grupo lendário de cavaleiros associados a Carlos Magno.  Na tropa liderada por Roland os cavaleiros são: Roland, Olivier, Gérin, Gérier, Bérenger, Otto, Samson, Engelier, Ivon, Ivory, Anséïs e Girart de Roussillon.  Mas em outros poemas e lendas da época, esses cavaleiros poderiam ser outros.  Como há muitas versões da Canção de Roland, todas em manuscritos que deram por sua vez origem a outras tantas lendas, é difícil de precisar exatamente quem fazia parte desse exército ou aqueles cuja existência são pura lenda. 

Roland morreu numa batalha na região basca da França.  A tropa vinha da Península Ibérica onde lutava contra os sarracenos.  Dependendo da versão os autores do massacre de Roncesvales, podem ser tanto bascos quanto muçulmanos.  Sabe-se que essa batalha realmente ocorreu, está historicamente comprovada e em espírito pertence ao contexto das Cruzadas e da Reconquista cristã da Península Ibérica. 

 

A morte de Roland, 1462

Iluminura em de manuscrito

Autor desconhecido

Bruges, Flandres [Bélgica]

 

 

Uma coisa interessante é que a Canção de Roland teve grande popularidade no Brasil no século XIX. Isso graças a um livro de um médico português, Jerónimo de Moreira Carvalho, que escreveu em 1737, portanto no século XVIII, uma continuação da Canção de Roland: Segunda parte da História do Imperador Carlos Magno e dos doze pares de França. Esse romance de cavalaria se tornou leitura de grande sucesso no Brasil do século XIX.  Aliás, esse é um de dois portugueses que escreveram uma continuação de história de Carlos Magno.  O outro,  História nova do Imperador Carlos Magno, e dos doze pares de França de José Alberto Rodrigues, impressa em Lisboa em 1742.  Essa no entanto, não foi popular no Brasil. 

 

 





Julian Barnes lista seis livros favoritos

9 06 2025
ilustração Laurence Fellows

 

 

O escritor inglês e vencedor do Man Booker Prize em 2011, com o livro O sentido de um fim, deu à revista The Week, uma pequena lista de seus livros favoritos.  Foi uma lista diferente da que eu imaginaria, mas são obras muito boas.

1 – A viúva Couderc, George Simenon.  Infelizmente não encontrei a tradução para o português.  Foi publicado em 1942.  “Todos os anos, Simenon se irritava com aqueles “idiotas” de Estocolmo que  ainda não lhe haviam dado o Nobel de literatura.  Na época eu achava aquilo muito louco; agora acho bastante apropriado.  Seus romances duros são poucos e rigorosos, demonstrando profundo conhecimento da natureza humana.  Este é um dos melhores.”

2 – Rapazes de zinco de Svetlana Alexievich, publicado em 1989. “Alexievich ganhou o Nobel, como deveris, em 2015, por suas histórias polifônicas retratando o final do Comunismo Soviético.  Rapazes de zinco retrata as experiências terríveis dos soldados sovi[eticos no Afganistão.”

3 – O início da primavera [The beginning of Spring], Penelope Fitzgerald, publicado em 1988.  Não encontrei tradução para o português, mas achei em espanhol, inglês e italiano. “A história se passa na Rússia pré-revolucionária. Esse é o melhor das quatro grandes obras de Fitzgerald.  Irônico, inadequado, sábio, e terno ao mostrar os incompetentes. A obra de Fitzgerald tem uma graça moral que permanecerá e sobreviverá às obras mais espalhafatosas da nossa época.

4 – Persuasão, Jane Austen, publicado em 1817. Os meus três romances favoritos do século dezenove foram escritos por mulheres. Middlemarch Jane Eyre  são os outros dois.  Persuasão é o último romance de Austen, sombrio, irônico e intenso.  Imagine que mais ela poderia ter escrito se não tivesse morrido aos 41 anos. 

5 – Amours de voyage, de Arthur Hugh Clough, publicado em 1849.  “Um longo poema e também um pequeno romance — sobre amor, dúvida e viagem; sobre perder a chances oferecidas, sobre não entender o momento, analisar demais e covardia moral. Clough é contemplativo, argumentativo,  inteligente e extremamente moderno.

6 – Ethan Fromme, Edith Whaton, publicado em 1911.  “Wharton disse que “para escrever esse livro eu trouxe grande alegria e total conforto”.  Com a maioria das edições tendo próximo de 100 páginas, o livro combina a densidade de uma novelaem carater e tema com a simplicidade e força de um conto. Como muitos de seus livros, uma tragédia, para uma época não trágica. E ela escreveu o original em francês!

NOTA:  Você encontrará minha resenha sobre O sentido de um fim de Julian Barnes aqui neste blog.  Julian Barnes é um dos meus escritores favoritos.  Preparo nesse momento a lista do livros de mais gostei nesses primeiros 25 anos do século XXI e tenho dois livros de Barnes na minha lista. 





A frase musical, Marcel Proust

27 05 2025

Natureza morta com instrumentos musicais e livros, c. 1650

Bartholomeo Bettera (Itália, 1639-1699)

óleo sobre tela

Museu de Israel, Jerusalém

 

 

Que belo diálogo ouviu Swann entre o piano e o violino no começo do último trecho! A supressão das palavras humanas, longe de deixar ali reinar a fantasia, como se poderia crer, a tinha eliminado: jamais a linguagem falada foi tão inflexivelmente fatal, jamais conheceu a tal ponto a pertinência das perguntas, a evidência das respostas. Primeiro o piano solitário se queixou, como um pássaro abandonado da sua companheira; o violino escutou-o, respondeu-lhe como de uma árvore vizinha. Era como no princípio do mundo, como se ainda não houvesse senão os dois sobre a face da Terra, ou antes, era naquele mundo fechado a tudo o mais, construído pela lógica de um criador e onde para todo o sempre só os dois existiriam: aquela sonata. Era um pássaro? Era a alma ainda incompleta da pequena frase, era uma fada, esse ser invisível e choroso, cuja queixa o piano em seguida ternamente redizia? Seus gritos eram tão súbitos que o violino devia precipitar-se sobre o seu arco para os recolher. Maravilhoso pássaro! O violinista parecia querer encantá-lo, amansá-lo, capturá-lo. Já havia passado para a sua alma, já a pequena frase evocada agitava, como ao de um médium, o corpo verdadeiramente possuído do violinista.

 

Marcel Proust, em: No caminho de Swann, volume I da obra Em busca do tempo perdido, Marcel Proust, tradução de Mário Quintana.